A VIDA BOA DE SERRA DO NAVIO
MONTAGEM DO GRUPO FRÊMITO DE TEATRO DISCUTE CONTRADIÇÕES E MODOS DE VIDA A PARTIR DE ARQUEOLOGIA DOCUMENTAL DA DO NAVIO, NO AMAPÁ
O amapaense Grupo Frêmito escava os resquícios de um empreendimento monumental e seus impactos no tecido social
PERCEBE AQUELA SERRA GRANDE, EM FORMATO DE NAVIO?
Foi ali que tudo começou. Foi lá, no meio do território do Amapá, na Floresta Amazônica, que, na década de 1940, um caboclo encontrou uma pedra cinzenta. A descoberta de uma imensa quantidade de manganês fez tudo mudar. A mineradora chegou, a cidade operária inteira se ergueu. Uma miragem de cidade. Um oásis construído, enquanto a visão do navio ia se apagando aos poucos no horizonte e avançava o come-terra da mineradora, que depositava manganês contaminado no solo. O legado para a região: inúmeros casos de intoxicação crônica por arsênio. A Serra do Navio é um vulto de vida e morte que atravessa a biografia amapaense. Como lembrança, revisão e denúncia, o Grupo Frêmito de Teatro, de Macapá, desenterra essa narrativa, com todas as suas contradições.
O Grupo Frêmito faz parte de uma nova leva de artistas do Amapá que lutam para superar o contexto de precariedade e marginalidade que é produzir arte nas periferias do Brasil. Estes jovens artistas trazem contrapontos necessários para uma cena artística amazônica que, superando o regional e o folclórico, mobiliza identidades, potências, dilemas e as crises de quem navega entre ruas, pontes, rios, asfaltos e matas, no século 21. “Somos uma microtrupe composta de corpos amazônicos, mestiços e dissidentes que dedicam suas vidas pro teatro”, diz Otávio Oscar, produtor, diretor e fundador do Frêmito, juntamo com os atores Raphael Brito e Wellington Dias. O grupo iniciou em 2017 com o espetáculo Lugar da Chuva, nome que dizem ser a tradução da palavra Ama’pá.
“O nosso foco nesses primeiros anos de trabalho está sendo de retomada, de resgate. Estamos mergulhando em um processo urgente de ‘dessalgar’ a subjetividade colonial desse teatro eurocêntrico e sudestino que aprendemos nas universidades”, diz o diretor macapaense, formado em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo. O procedimento de construção do espetáculo partiu do objetivo de Oscar de revisitar a história da cidade de Serra do Navio, onde sua mãe nasceu. “É um legado contraditório que acabei herdando”, diz à select. Mas não foi só a vida do diretor que acabou impactada por esse episódio. De acordo com ele, foi no ciclo do manganês, por meio dos lucros e impactos gerados por essa mineradora, que o Amapá ganhou aos poucos uma identidade própria enquanto estado, se separando do Pará, se modernizando e se urbanizando.
OS CABOCLOS SOMOS NÓS
Na primeira etapa de desenvolvimento da peça, o grupo mergulhou em uma arqueologia documental, coletando objetos de memória e registros encontrados na internet, como textos, depoimentos, fotos, vídeos, reportagens e pesquisas acadêmicas sobre o episódio. Iniciativa adotada por muitos grupos para ter um primeiro feedback do público, a primeira abertura de processo foi nomeada pelo grupo como Serra do Navio (Canteiro de Obras) e realizada por videoconferência. A abertura teve participação da atriz convidada Carla Thaís e narrações da cineasta Rayane Penha, enquanto os dois atores se revezavam nas telas entre frames e imagens documentais. As quatro vozes narram o episódio por diferentes perspectivas. A imagem idílica de uma cidade cenográfica é construída conforme a obra avança. Em determinada cena, a música Vida Boa, do amapaense Zé Miguel, atravessa o espectador. Um portal parece se abrir para a utopia de um outro modo de vida possível em Serra do Navio. Que momentos foram vividos nesse lugar? O que sobrou da história oficial? O que sobrou da vida que margeou essa cidade fantasma? E quem são os caboclos se não nós mesmos? Essas são algumas das perguntas levantadas no espetáculo, onde tudo corre para um desfecho que aponta a urgência por um outro modo de vida. A narrativa envolvente, assustadora e simbólica mantém o encanto da cena, mesmo mediada pelo streaming.
Para o Grupo Frêmito, Serra do Navio fez parte de um empreendimento intencional de mutação da subjetividade amazônica. Em sua lógica organizacional, a cidade construída pela empresa buscava transformar indígenas e caboclos em operários e consumidores – ou simplesmente em pobres –, reprogramando existências, entendendo a natureza como um recurso a ser explorado e não como um lugar de pertencimento para o ser humano. “Em nossa visão (a questão dos modos de vida) é central. É isso que vai definir o futuro das florestas, dos rios e das comunidades amazônicas”, diz o diretor.
Depois de Serra do Navio (Canteiro de Obras), o grupo volta para a sala de ensaio. “Partimos para a escuta dos exmoradores, ex-funcionários, pessoas afetadas, descendentes e moradores atuais da cidade, mergulhando nas histórias orais e nessas micronarrativas que orbitam em torno da história maior”, diz Oscar. O grupo também planeja uma vivência in loco em Serra do Navio, uma arqueologia emocional e concreta em busca de evidências e rastros do ciclo do manganês. “A experiência do documento bruto revelou-se muito dura para a poética cênica. Surgiu esse desejo por mais estados líquidos, líricos e fluviais”, completa. É que na distópica paisagem da Serra do Navio, as crateras deixadas pela exploração do minério podem transmutar-se em grandes lagos para a imaginação.