ECOLOGIA MIDIÁTICA
A ECOLOGIA MIDIÁTICA DA AMAZÔNIA E DAS COMUNIDADES INDÍGENAS DE NORTE A SUL
Plataformas, sites, blogs e mídias sociais na resistência ao desmonte sociocultural
O GUERREIRO GUARANI PROTESTA, EM REDE NACIONAL, CONTRA A MOTOCIATA DO EX-CAPITÃO-ATUALPRESIDENTE-FUTURO-RÉU: “ESTAMOS NESTE MOMENTO PEDINDO AJUDA E APOIO.
A polícia ameaçou entrar aqui na aldeia por causa do protesto que nós fizemos contra a passeata da boiada do B•\£•#?\•, dos racistas do B•\£•#?\•. Estão querendo entrar na aldeia, estão ameaçando, mas, se entrar aqui, nós vamos morrer, podemos perder a vida, podemos ser presos, mas não vamos deixar barato; se entrar aqui, vai ter confronto, não vamos deixar, porque aqui nós somos guerreiros. A terra é nossa. Nossa terra foi cortada no meio pela Bandeirantes, por uma rodovia que ainda por cima tem esse nome! Nome de genocida! Se entrar aqui na aldeia, a gente vai resistir até o último guerreiro, certo?”, encerra a transmissão Wera Trap Guarani, já dirigindo a sua fala à aldeia, não mais à câmera.
O grito é ouvido em tempo real e, em seguida, multiplicado em redes nacionais paralelas. A mídia utilizada por Wera é um perfil de Instagram, e as emissoras retransmissoras são outros perfis de Instagram. A notícia alastra-se como fogo, e 13 dias depois os Guarani-mbya e Nhandeva da Terra Indígena Jaraguá, na Zona Noroeste de São Paulo, ateiam fogo na mesma Bandeirantes, bloqueando a rodovia, desta vez em protesto contra o PL-490/2007. O público da @midiaindia, da @midiaguaranimbya e de todos os canais que reproduzem novamente o conteúdo, toma conhecimento do novo protesto. Em duas semanas, multiplica-se exponencialmente o que começou como uma nanoaudiência. E isto é só o começo.
A repercussão também é extensa entre os veículos da chamada grande mídia que noticiam o bloqueio. Mas a questão é justamente essa: apenas noticiam o bloqueio. É claro que não se podia esperar mais da Agência Brasil, mídia oficial do governo, além de reportar as barreiras de fogo, os pneus queimados, o tumulto, o congestionamento e o horário em que a rodovia foi liberada. Porém, outros veículos tradicionais, ainda que não se esquivassem de instruir o leitor sobre o principal motivo do protesto – a validação no STF de um critério jurídico que limita a demarcação de territórios dos povos originários, a partir de um marco temporal – e de apontar outro fator crítico envolvido – a disputa da família do novo ministro do Meio Ambiente pela posse da Terra Indígena do Jaraguá –, não demonstram interesse em enfatizar questões de fundo. Como o fato de que os Guaranis-mbya possuem a menor terra indígena do Brasil e que o processo de demarcação de suas terras pode ser completamente revogado com o PL-490.
Os fatos veiculados são soterrados pelas notícias do dia seguinte, sem aprofundar o que importa: o uso de ferramentas jurídicas para a perpetuação de uma política de genocídio aos povos indígenas.
JORNALISMO CIDADÃO
É justamente diante da percepção da falta de interesse por parte da grande imprensa sobre temas relacionados aos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e defensores ambientais, sobretudo no Norte do país, que as jornalistas Kátia Brasil e Elaíze Farias criaram a agência de notícias Amazônia Real, em 2014. Para garantir às comunidades tradicionais maior acesso à mídia (como leitores e como assunto das reportagens), a agência criou uma pequena rede de jornalistas remunerados por meio de bolsas de escrita e fotografia nos estados do Amazonas, Acre, Amapá, Maranhão, Mato Grosso, Rondônia, Roraima, Pará e Tocantins.
Hoje, a Amazônia Real conta com mais de 40 profissionais em sua rede, o que possibilita coberturas de fôlego, como a série Ouro do Sangue Yanomami, sobre a extração ilegal de ouro na terra indígena de Roraima, que reúne reportagens, denúncias e registros em fotografia e vídeo alarmantes da devastação pelo garimpo criminoso nesta que denominam de a “quarta grande corrida do ouro desde os anos 1970”, que envolve poderosas joalherias.
A agência alinha-se à lógica de outras publicações indepen
dentes da Amazônia, como O Boto, que funciona como um site comunitário, sediado em Alter do Chão, no sudeste do Pará, reunindo e respostando notícias locais produzidas por uma rede de colaboradores que inclui jornalistas independentes, jornalistas antifascistas e entidades de grupo como o Comitê Popular de Santarém. O site possui ainda um “banco de pautas”, uma espécie de reunião de pauta digital, para conversas sobre assuntos que podem virar reportagens investigativas, ensaios e perfis biográficos.
“De revoluções que se iniciaram pela internet (Primavera Árabe) a movimentos que cresceram muito através dela (Junho de 2013), a etapa em que vivemos está marcada pela comunicação instantânea”, anotam os editores do portal/ jornal Balaiada, cujo título homenageia a Revolta dos Balaios, movimento de escravos e sertanejos no Maranhão do século 19 contra a exploração das oligarquias do Norte e Nordeste. “A partir da necessidade de construir uma ferramenta que realmente democratize as lutas e divergências das diferentes organizações de esquerda, dos movimentos sociais do campo e da cidade, sindicais, estudantis e de combate às opressões, é que decidimos organizar um portal que cumpra esse papel.” O projeto editorial prevê a cobertura dos fatos cotidianos a partir da visão de explorados, oprimidos e de uma esquerda revolucionária, convocando a todos a construir “um jornal classista, combativo e independente das empresas e dos patrões”.
COMUNIDADE DIGITAL
“Nossa história não começa em 1988” é a mensagem da campanha da @midiaindia nas redes sociais contra o PL-490. O @midiaindia, projeto de comunicação formado por jovens indígenas da comunidade APIB, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, que também mantém perfil no Instagram, ganhou visibilidade com postagens de relevância política e humanitária. Sua principal demanda é “demarcação, desintrusão e proteção das terras indígenas”, e a APIB sublinha, entre seus objetivos estratégicos, o desenvolvimento de um “Programa de Informação e Comunicação sobre a realidade dos direitos indígenas, junto às bases do movimento indígena, o Estado e a opinião pública nacional e internacional”. O movimento indígena também comunica suas pautas e demandas em perfis como @midiaguaranimbya (da comunidade Guarani-mbya), @342amazonia e @casaninjaamazonia, que têm divulgado fatos que passam ao largo da grande imprensa e seus desdobramentos, como os ataques de garimpeiros a comunidades Yanomami em Palimiú, em Roraima, e ao povo Munduruku, no Pará; o Levante Pela Terra, que levou representantes de 40 povos indígenas a Brasília, em junho, para protestar contra a votação do PL-490, que quer ressuscitar a ideia de “marco temporal” para definição da propriedade de reservas indígenas, restringindo o direito à terra apenas às comunidades que tivessem a posse garantida na data de promulgação da Constituição de 1988, invalidando todos os processos de demarcação posteriores.
UM PRECURSOR
Na primeira quinzena de setembro de 1987, a manchete: “Um crime bem planejado”, na primeira edição do Jornal Pessoal, uma experiência-solo do jornalista e sociólogo paraense Lúcio Flávio Pinto, que à época do crime trabalhava na redação de O Liberal e como correspondente de O Estado de S. Paulo em Belém do Pará. A vítima: um ex-deputado, advogado fundiário, defensor de posseiros e “o mais combativo dos representantes da esquerda”, diz o texto da primeira página. O fato: o “Caso Fonteles”, um crime envolvendo milicianos, ruralistas e pecuaristas como mandantes, poderia perfeitamente ter ocorrido hoje, sob a prática de acobertamento de crimes ambientais implantada pelo ex-ministro Ricardo Salles.
O Jornal Pessoal foi lançado em resposta à falta de espaço na grande mídia para a publicação de reportagens investigativas. Censura e violência foram os principais eixos de investigação do semanário, que circulou durante 32 anos – entre 1987 e 2019 –, com tiragem de 2 mil exemplares. “Quando surgiram os blogs, e eu não tinha um, fui homenageado por fundar um blog pioneiro... impresso em papel”, diz Lúcio Flávio à select. “O Pessoal nunca aceitou publicidade nem subsídios. Vivia da venda avulsa em bancas e livrarias. Fui processado 34 vezes na Justiça. Nenhum dos autores dessas ações tentou se defender pelo direito de resposta. Sempre publiquei as cartas dos leitores, na íntegra, inclusive as ofensivas. E 19 ações foram propostas pelos irmãos Rômulo Maiorana Jr., Ronaldo Maiorana e Rosângela Maiorana. Foram 15 pelos dois primeiros, depois que Ronaldo me agrediu fisicamente, juntamente com dois PMS que atuavam como seguranças dele. Portanto, é publicação mais do que alternativa”, desabafa Lúcio.
Depois de outras publicações alternativas, como o Informe Amazônico eo Bandeira 3, o jornalista estabeleceu, finalmente, um blog homônimo, definido como “a agenda amazônica de um jornalismo de combate”.
Mas seu Jornal Pessoal é considerado entre as mais importantes e longevas experiências alternativas do jornalismo amazônico, tendo contribuído para abrir caminho à diversidade da ecologia midiática amazônica e indígena contemporânea.