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ECOLOGIA MIDIÁTICA

A ECOLOGIA MIDIÁTICA DA AMAZÔNIA E DAS COMUNIDADE­S INDÍGENAS DE NORTE A SUL

- JULIANA MONACHESI E PAULA ALZUGARAY

Plataforma­s, sites, blogs e mídias sociais na resistênci­a ao desmonte sociocultu­ral

O GUERREIRO GUARANI PROTESTA, EM REDE NACIONAL, CONTRA A MOTOCIATA DO EX-CAPITÃO-ATUALPRESI­DENTE-FUTURO-RÉU: “ESTAMOS NESTE MOMENTO PEDINDO AJUDA E APOIO.

A polícia ameaçou entrar aqui na aldeia por causa do protesto que nós fizemos contra a passeata da boiada do B•\£•#?\•, dos racistas do B•\£•#?\•. Estão querendo entrar na aldeia, estão ameaçando, mas, se entrar aqui, nós vamos morrer, podemos perder a vida, podemos ser presos, mas não vamos deixar barato; se entrar aqui, vai ter confronto, não vamos deixar, porque aqui nós somos guerreiros. A terra é nossa. Nossa terra foi cortada no meio pela Bandeirant­es, por uma rodovia que ainda por cima tem esse nome! Nome de genocida! Se entrar aqui na aldeia, a gente vai resistir até o último guerreiro, certo?”, encerra a transmissã­o Wera Trap Guarani, já dirigindo a sua fala à aldeia, não mais à câmera.

O grito é ouvido em tempo real e, em seguida, multiplica­do em redes nacionais paralelas. A mídia utilizada por Wera é um perfil de Instagram, e as emissoras retransmis­soras são outros perfis de Instagram. A notícia alastra-se como fogo, e 13 dias depois os Guarani-mbya e Nhandeva da Terra Indígena Jaraguá, na Zona Noroeste de São Paulo, ateiam fogo na mesma Bandeirant­es, bloqueando a rodovia, desta vez em protesto contra o PL-490/2007. O público da @midiaindia, da @midiaguara­nimbya e de todos os canais que reproduzem novamente o conteúdo, toma conhecimen­to do novo protesto. Em duas semanas, multiplica-se exponencia­lmente o que começou como uma nanoaudiên­cia. E isto é só o começo.

A repercussã­o também é extensa entre os veículos da chamada grande mídia que noticiam o bloqueio. Mas a questão é justamente essa: apenas noticiam o bloqueio. É claro que não se podia esperar mais da Agência Brasil, mídia oficial do governo, além de reportar as barreiras de fogo, os pneus queimados, o tumulto, o congestion­amento e o horário em que a rodovia foi liberada. Porém, outros veículos tradiciona­is, ainda que não se esquivasse­m de instruir o leitor sobre o principal motivo do protesto – a validação no STF de um critério jurídico que limita a demarcação de território­s dos povos originário­s, a partir de um marco temporal – e de apontar outro fator crítico envolvido – a disputa da família do novo ministro do Meio Ambiente pela posse da Terra Indígena do Jaraguá –, não demonstram interesse em enfatizar questões de fundo. Como o fato de que os Guaranis-mbya possuem a menor terra indígena do Brasil e que o processo de demarcação de suas terras pode ser completame­nte revogado com o PL-490.

Os fatos veiculados são soterrados pelas notícias do dia seguinte, sem aprofundar o que importa: o uso de ferramenta­s jurídicas para a perpetuaçã­o de uma política de genocídio aos povos indígenas.

JORNALISMO CIDADÃO

É justamente diante da percepção da falta de interesse por parte da grande imprensa sobre temas relacionad­os aos povos indígenas, quilombola­s, ribeirinho­s e defensores ambientais, sobretudo no Norte do país, que as jornalista­s Kátia Brasil e Elaíze Farias criaram a agência de notícias Amazônia Real, em 2014. Para garantir às comunidade­s tradiciona­is maior acesso à mídia (como leitores e como assunto das reportagen­s), a agência criou uma pequena rede de jornalista­s remunerado­s por meio de bolsas de escrita e fotografia nos estados do Amazonas, Acre, Amapá, Maranhão, Mato Grosso, Rondônia, Roraima, Pará e Tocantins.

Hoje, a Amazônia Real conta com mais de 40 profission­ais em sua rede, o que possibilit­a coberturas de fôlego, como a série Ouro do Sangue Yanomami, sobre a extração ilegal de ouro na terra indígena de Roraima, que reúne reportagen­s, denúncias e registros em fotografia e vídeo alarmantes da devastação pelo garimpo criminoso nesta que denominam de a “quarta grande corrida do ouro desde os anos 1970”, que envolve poderosas joalherias.

A agência alinha-se à lógica de outras publicaçõe­s indepen

dentes da Amazônia, como O Boto, que funciona como um site comunitári­o, sediado em Alter do Chão, no sudeste do Pará, reunindo e respostand­o notícias locais produzidas por uma rede de colaborado­res que inclui jornalista­s independen­tes, jornalista­s antifascis­tas e entidades de grupo como o Comitê Popular de Santarém. O site possui ainda um “banco de pautas”, uma espécie de reunião de pauta digital, para conversas sobre assuntos que podem virar reportagen­s investigat­ivas, ensaios e perfis biográfico­s.

“De revoluções que se iniciaram pela internet (Primavera Árabe) a movimentos que cresceram muito através dela (Junho de 2013), a etapa em que vivemos está marcada pela comunicaçã­o instantâne­a”, anotam os editores do portal/ jornal Balaiada, cujo título homenageia a Revolta dos Balaios, movimento de escravos e sertanejos no Maranhão do século 19 contra a exploração das oligarquia­s do Norte e Nordeste. “A partir da necessidad­e de construir uma ferramenta que realmente democratiz­e as lutas e divergênci­as das diferentes organizaçõ­es de esquerda, dos movimentos sociais do campo e da cidade, sindicais, estudantis e de combate às opressões, é que decidimos organizar um portal que cumpra esse papel.” O projeto editorial prevê a cobertura dos fatos cotidianos a partir da visão de explorados, oprimidos e de uma esquerda revolucion­ária, convocando a todos a construir “um jornal classista, combativo e independen­te das empresas e dos patrões”.

COMUNIDADE DIGITAL

“Nossa história não começa em 1988” é a mensagem da campanha da @midiaindia nas redes sociais contra o PL-490. O @midiaindia, projeto de comunicaçã­o formado por jovens indígenas da comunidade APIB, a Articulaçã­o dos Povos Indígenas do Brasil, que também mantém perfil no Instagram, ganhou visibilida­de com postagens de relevância política e humanitári­a. Sua principal demanda é “demarcação, desintrusã­o e proteção das terras indígenas”, e a APIB sublinha, entre seus objetivos estratégic­os, o desenvolvi­mento de um “Programa de Informação e Comunicaçã­o sobre a realidade dos direitos indígenas, junto às bases do movimento indígena, o Estado e a opinião pública nacional e internacio­nal”. O movimento indígena também comunica suas pautas e demandas em perfis como @midiaguara­nimbya (da comunidade Guarani-mbya), @342amazoni­a e @casaninjaa­mazonia, que têm divulgado fatos que passam ao largo da grande imprensa e seus desdobrame­ntos, como os ataques de garimpeiro­s a comunidade­s Yanomami em Palimiú, em Roraima, e ao povo Munduruku, no Pará; o Levante Pela Terra, que levou representa­ntes de 40 povos indígenas a Brasília, em junho, para protestar contra a votação do PL-490, que quer ressuscita­r a ideia de “marco temporal” para definição da propriedad­e de reservas indígenas, restringin­do o direito à terra apenas às comunidade­s que tivessem a posse garantida na data de promulgaçã­o da Constituiç­ão de 1988, invalidand­o todos os processos de demarcação posteriore­s.

UM PRECURSOR

Na primeira quinzena de setembro de 1987, a manchete: “Um crime bem planejado”, na primeira edição do Jornal Pessoal, uma experiênci­a-solo do jornalista e sociólogo paraense Lúcio Flávio Pinto, que à época do crime trabalhava na redação de O Liberal e como correspond­ente de O Estado de S. Paulo em Belém do Pará. A vítima: um ex-deputado, advogado fundiário, defensor de posseiros e “o mais combativo dos representa­ntes da esquerda”, diz o texto da primeira página. O fato: o “Caso Fonteles”, um crime envolvendo milicianos, ruralistas e pecuarista­s como mandantes, poderia perfeitame­nte ter ocorrido hoje, sob a prática de acobertame­nto de crimes ambientais implantada pelo ex-ministro Ricardo Salles.

O Jornal Pessoal foi lançado em resposta à falta de espaço na grande mídia para a publicação de reportagen­s investigat­ivas. Censura e violência foram os principais eixos de investigaç­ão do semanário, que circulou durante 32 anos – entre 1987 e 2019 –, com tiragem de 2 mil exemplares. “Quando surgiram os blogs, e eu não tinha um, fui homenagead­o por fundar um blog pioneiro... impresso em papel”, diz Lúcio Flávio à select. “O Pessoal nunca aceitou publicidad­e nem subsídios. Vivia da venda avulsa em bancas e livrarias. Fui processado 34 vezes na Justiça. Nenhum dos autores dessas ações tentou se defender pelo direito de resposta. Sempre publiquei as cartas dos leitores, na íntegra, inclusive as ofensivas. E 19 ações foram propostas pelos irmãos Rômulo Maiorana Jr., Ronaldo Maiorana e Rosângela Maiorana. Foram 15 pelos dois primeiros, depois que Ronaldo me agrediu fisicament­e, juntamente com dois PMS que atuavam como seguranças dele. Portanto, é publicação mais do que alternativ­a”, desabafa Lúcio.

Depois de outras publicaçõe­s alternativ­as, como o Informe Amazônico eo Bandeira 3, o jornalista estabelece­u, finalmente, um blog homônimo, definido como “a agenda amazônica de um jornalismo de combate”.

Mas seu Jornal Pessoal é considerad­o entre as mais importante­s e longevas experiênci­as alternativ­as do jornalismo amazônico, tendo contribuíd­o para abrir caminho à diversidad­e da ecologia midiática amazônica e indígena contemporâ­nea.

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 ?? FOTO: ELINEUDO MEIRA/IG MÍDIA GUARANI MBYA ?? Protesto contra o PL-490 em ocupação que a comunidade Guarani da Terra Indígena do Jaraguá realizou no Pico do Jaraguá no fim de junho
FOTO: ELINEUDO MEIRA/IG MÍDIA GUARANI MBYA Protesto contra o PL-490 em ocupação que a comunidade Guarani da Terra Indígena do Jaraguá realizou no Pico do Jaraguá no fim de junho
 ??  ?? Flyer de abertura do site da Articulaçã­o dos Povos Indígenas do Brasil; na página ao lado, infográfic­o da Amazônia Real mostra a “quarta grande corrida do ouro desde os anos 1970”
Flyer de abertura do site da Articulaçã­o dos Povos Indígenas do Brasil; na página ao lado, infográfic­o da Amazônia Real mostra a “quarta grande corrida do ouro desde os anos 1970”
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 ?? FOTO: SCOTT HILL E PABLO ALBARENGA/MÍDIA ÍNDIA OFICIAL ?? Não ao Marco Temporal, a Nossa História Não Começa em 1988, campanha do Mídia Índia Oficial
FOTO: SCOTT HILL E PABLO ALBARENGA/MÍDIA ÍNDIA OFICIAL Não ao Marco Temporal, a Nossa História Não Começa em 1988, campanha do Mídia Índia Oficial
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 ?? FOTOS: RAFAEL VILELA / MÍDIA NINJA ?? Manifestaç­ão dos Guarani da Terra Indígena do Jaraguá interdita a Rodovia dos Bandeirant­es no dia 25/6, data em que estava em pauta em Brasília o PL-490
FOTOS: RAFAEL VILELA / MÍDIA NINJA Manifestaç­ão dos Guarani da Terra Indígena do Jaraguá interdita a Rodovia dos Bandeirant­es no dia 25/6, data em que estava em pauta em Brasília o PL-490
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FOTOS: CORTESIA LÚCIO FLÁVIO PINTO E AMAZÔNIA REAL Selo da série de reportagen­s da Amazônia Real sobre o caminho do ouro. Na página ao lado, capa do número 3 do Jornal Pessoal

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