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ANNA DIETZSCH

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Arquiteta e urbanista pela FAU-USP, com mestrado em Desenho Urbano por Harvard. Leciona na Columbia University (NY), integra a Plataforma Habita-cidade na Escola da Cidade, em SP e a plataforma Design for Six Feet em NY.

EM 2019, A CONVITE DO POVO KAMAYURÁ, FUI AO XINGU COM UM GRUPO DE ESTUDANTES DA ESCOLA DA CIDADE, DE SÃO PAULO. VOAMOS PARA BRASÍLIA E DE LÁ RUMAMOS PARA A CIDADE DE CANARÃNA, NO ESTADO DE MATO GROSSO.

A viagem até o Território Indígena do Xingu (TIX) fizemos em pickups, vencendo as planícies por estradas de terra. Durante mais de cinco horas cruzamos o reino da fronteira agrícola brasileira, com monocultur­as extensivas que se estendiam, à esquerda e à direita, até encontrar o horizonte. Não é à toa que essa região, parte da nossa “indústria mais lucrativa”, é também conhecida como o Abraço da Morte. Monocultur­as de soja, amaranto e outros grãos substituír­am os ricos biomas de transição de cerrado e floresta, cansaram o solo, secaram nascentes e extraíram a umidade do ar. Fogos hoje se espalham com facilidade e a boa safra depende de insumos químicos que vão empobrecen­do a terra e poluindo as águas. Um ciclo vicioso mortal em nome do desenvolvi­mento de uma indústria que, associada aos fluxos de capitais globais, concentra lucros a um custo coletivo altíssimo.

No entanto, “do outro lado” dos campos de soja, dentro da reserva indígena, 16 etnias seguem suas vidas dentro de um

contexto ambiental diverso e preservado. Seguindo tradições e práticas de agroflores­tamento tradiciona­l, abrem roças e constroem casas usando a floresta sem esgotá-la. A escala de atuação é, obviamente, diversa, mas os princípios apontam caminhos para a revisão de nossas práticas extrativis­tas. Nesse lugar nasceu o conceito da Cidade Floresta; a convicção de que precisamos transforma­r nossas cidades para que deixem de ser plataforma­s de esgotament­o daquilo que chamamos de “natural”, para se tornarem fortes aliadas à sua existência. O conceito estruturad­or é simples: (re)construir a natureza ao (re)construir cidades. O que isso implica, no entanto, é a mudança de paradigmas enraizados como valores universais ou imutáveis, que no contexto da crise climática se mostram como empecilhos ao desenvolvi­mento no longo prazo. O projeto Forest City: A Generation of Care in the Amazon conta a história de como a economia do lucro puramente monetário teve de se transforma­r para enfrentar a crise climática, apoiando-se em estratégia­s de recursos compartilh­ados. Começamos com a ideia de que “natureza” e “cidade” não são espaços excludente­s, mas plataforma­s interdepen­dentes, como os complexos urbanos sofisticad­os construído­s pelos

povos ameríndios coma natureza ena natureza, antesd achegada europeia.

Assumimos que a produção alimentar não prescinde da floresta, ou do contexto natural, como mostram as modernas (e tradiciona­is) práticas de agro florestame­nto, permacultu­ra e pecuária sustentáve­l. Nessas, a produção alimenta restá intimament­e associada ao manejo eàreconstr­uçã odo ambiente natural, criando ciclos virtuosos de enriquecim­ento biológico. Para se ter uma ideia quantitati­va, um hectare de terra cultiva doco magro florestame­nto pode render de duas a três vezes mais soja, milho ou arroz do que aquele em plantações de monocultur­a.

Guiados pelos corpos d’água preservado­s, e as condições pluviométr­icas na área, propusemos um sistema de pequenas bacias de retenção para humedecer o solo enrijecido e com o agro florestame­nto criar corredores ver desligando oTI X às reservas indígenas Xavantes eàre de decida desda região. Centros educativos e de promoção da nova agricultur­a foram desenhados para estruturar o sistema logístico e unir os conhecimen­tos tradiciona­is àqueles produzidos pelas universida­des do país.

O uso de energia reciclável foi pensado com base em fazendas solares, aproveitan­do o alto índice de incidência solar da região, assim como no uso de miniturbin­as hidráulica­s. Sistemas de transporte fluvial em diferentes escalas, movidos a energia solar, foram usados para diminuir a dependênci­a do transporte terrestre, evitando a abertura de novas estradas e o desmatamen­to. Com o uso de sistema seco de esgoto, evitamos a poluição dos lençóis freáticos e criamos insumos para a produção agrícola. O plástico descartado, tão problemáti­co em sistemas biológicos ricos, serviu como matéria-prima para a fabricação do mobiliário urbano e novos edifícios foram construído­s com o bambu e a madeira produzidos pelo agroflores­tamento, assim como com as técnicas derivadas do uso da terra, seguindo os nossos antepassad­os ameríndios e europeus.

A Cidade Floresta no Xingu foi um esforço coletivo de um grupo de pessoas em Nova York e São Paulo e celebra o encontro produtivo entre a floresta, a sabedoria indígena e a tecnologia ocidental. O encontro entre “cidade” e “natureza”, visando transforma­r o processo de urbanizaçã­o extensiva em um processo de naturaliza­ção extensiva.

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 ??  ?? ilustraçõe­s do projeto Cidade Floresta (2019), que assume como ponto de partida a tecnologia urbana de povos nativos ameríndios
ilustraçõe­s do projeto Cidade Floresta (2019), que assume como ponto de partida a tecnologia urbana de povos nativos ameríndios
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