BAGARAY-BANG INDIAN LAND
NUM GIRO PELAS FLORESTAS AO REDOR DO GLOBO, REUNIMOS OBRAS QUE SÃO EXPRESSÃO DA CULTURA COMUNITÁRIA, DE SABERES ANCESTRAIS E DOS ANSEIOS COMPARTILHADOS POR CURA E REPARAÇÃO
A PALAVRA QUE INTITULA A PRESENTE CURADORIA EDITORIAL SIGNIFICA CURA.
Tomamos emprestado o termo Wiradjuri de um dos segmentos da 22ª Bienal de Sydney, que aconteceu no ano passado na Austrália, mas foi pouco visitada por causa da pandemia. Algumas das obras apresentadas ali, entretanto, já nasceram icônicas, como é o caso de Shadow on the Land, an Excavation and Bush Burial (2000), de Nicholas Galanin, artista Tlingit e Unangax do Alasca. Projetada como a sombra da estátua do capitão James Cook, localizada no Hyde Park, na capital de Nova Gales do Sul, a intervenção realizada em Cockatoo Island representa uma cena do crime, com a sombra escavada na terra cercada por grades de isolamento amarelas. Cook, um capitão da Marinha Real Britânica do século 18 que navegou para a área da Grande Barreira de Corais da Austrália e invadiu muitas ilhas do Pacífico, é um símbolo nacional no país que, assim como outros “heróis” coloniais, o artista gostaria de ver enterrado. Em entrevista à revista New York, Galanin conta que entrou em contato com diversos artistas nativos durante suas pesquisas para a obra da Bienal de Sydney: “Compartilhamos lutas coloniais semelhantes contra o racismo, o apagamento e outras disparidades implementadas e defendidas pelos governos coloniais. A conversa em torno de monumentos e estátuas que hoje representam a história unilateral de homens brancos, principalmente, responsáveis por genocídios, estupros, comércio de escravos etc. tem ocorrido entre nossas comunidades. A sombra sobre a terra pode ser aplicada a quase todas as grandes estátuas coloniais em terras indígenas ou aborígenes e se encaixa bem nos movimentos sociais maiores que acontecem em todo o mundo”, defendeu, referindo-se ao levante Black Lives Matter, em 2020.
Galanin é especialista em criar obras-statement. Neste ano, convidado a participar do Desert X, na Califórnia, concebeu uma intervenção na paisagem que emula o letreiro de Hollywood, afirmando que aquela terra é indígena. Essa dupla afirmação, de que os indígenas são os donos originários da terra e de que os monumentos coloniais devem tombar, permeia as inquietações de criadores nativos que select reúne nas páginas a seguir, num giro pelo globo em busca de outras florestas, onde também se erguem vozes ancestrais em defesa das mesmas como única salvação para um planeta que agoniza sob pestes, aquecimento global e extinção de espécies dos mundos vegetal e animal. Outra característica comum entre artistas aborígenes australianos e canadenses, indígenas norte-americanos e guatemaltecos é a criação artística como expressão comunitária. Ainda que circulem com a assinatura de seus autores, as obras são sempre expressões da cultura de um povo, de saberes transmitidos pelos ancestrais e dos anseios compartilhados por cura e reparação.
O artista Wiradjuri Brook Andrew, curador da 22ª Bienal de Sydney, batizou o evento com a palavra NIRIN, que significa borda em sua língua materna. A bienal tratou de expor que os “estados urgentes de nossas vidas contemporâneas estão carregados de ansiedades do passado não resolvidas e camadas ocultas do sobrenatural”, nas palavras de Andrew, por meio de trabalhos de comunidades indígenas e da diáspora, que em geral estão longe do “centro” do mundo da arte. Na América Latina, assistimos recentemente à 22ª Bienal de Arte Paiz, na Cidade da Guatemala, abordar com igual protagonismo a arte de povos originários, e em breve teremos a Bienal de São Paulo, cuja lista de participantes traz a maior representatividade de artistas indígenas da história da exposição. Com curadoria-geral da chilena Alexia Tala, a exposição reúne, entre os convidados, aproximadamente, 50% de artistas nativos. “Eu os chamo de artistas do altiplano, porque moram nas montanhas e nas planícies”, diz Alexia Tala à select. “Trata-se de artistas indígenas produzindo arte contemporânea, não são artistas populares fazendo artesanato, ainda que eu tenha incluído também alguns nomes da arte popular. Existe uma tradição de arte naïf na Guatemala, especialmente numa área que se chama Comalapa. Já os artistas do altiplano são pesquisadores e pensadores importantes, trabalham sobre suas próprias histórias, suas próprias vivências e suas próprias cosmovisões. O que existe de comum é que suas obras invariavelmente aludem a uma cosmovisão própria, uma experiência própria de vida na comunidade”, diz a curadora.
MANUEL CHAVAJAY E O ANIMISMO NA COSMOVISÃO MAIA
Artista tz’utujil originário de Sololá, na Guatemala, Manuel Chavajay optou por morar e trabalhar em Patzununá (San Pedro La Laguna) para estar perto de sua família e da comunidade. No período em que viveu na Cidade da Guatemala, criou o coletivo Canal Cultural, para seguir trabalhando em projetos comunitários. Na ação que resultou na videoperformance Oq Ximtali (2017), o artista reflete sobre a relação de sua comunidade com o Lago Atitlán. Ele convidou um grupo de pescadores e pediu-lhes que amarrassem seus respectivos barcos uns aos outros e então tentassem remar. A imagem, vista de cima, assemelha-se a uma planta e evoca também uma padronagem circular encontrada nos güipiles tecidos pelas mulheres nos povos indígenas, como uma clareira que forma a imagem do sol e brilha intensamente no meio do lago. Como artista maya-tz’utujil, Chavajay busca construir imagens de denúncia e reivindicação de sua cultura. Sua história pessoal, como a de grande porcentagem de habitantes da Guatemala (com 60% de sua população indígena), é atravessada pelas violências do conflito armado. De acordo com Alexia Tala, “a obra do artista permeia a cosmovisão indígena e os imaginários do sagrado, ao apresentar as consequências da modernização desenfreada”. Para a instalação feita especialmente para a Bienal da Guatemala, Retaal K’aslemaal (2021), o artista reuniu objetos em processo de degradação retirados do fundo do Lago Atitlán para questionar sua origem a partir de noções de arqueologia. “Possíveis oferendas à mãe água ou resíduos de um acidente em uma canoa, fazendo um paralelo entre a mudança que o tempo opera nos objetos e a mudança que as doenças operam em nossos corpos, evocando a noção animista da cosmovisão maia”, conclui a curadora.
BENVENUTO CHAVAJAY
Primo de Manuel Chavajay e nascido também em San Pedro La Laguna, Benvenuto carrega, tatuado em suas costas, o documento de identidade de um atleta guatemalteco famoso, Doroteo Guamuch Flores. Até 2015, data da obra do artista, o vencedor da Maratona de Boston de 1952, verdadeiro herói nacional na Guatemala por este feito, era conhecido como Mateo Flores, por uma dificuldade ao noticiarem o nome do maratonista em jornal norte-americano.
Com a latente recusa às origens, o país de Doroteo Guamuch viu por bem adotar o nome embranquecido. Após o trabalho de Chavajay, o Estádio Mateo Flores mudou de nome. Em sua obra para a Bienal na Guatemala, Benvenuto encomendou um retrato seu a um pintor de San Pedro Sacatepéquez, que “adaptou” suas feições tz’utujil. Ao lado da tela, ele exibe o decreto de 1876, que tentou ladinizar a população indígena da região, bordado em ponto cruz.
ANTONIO PICHILLÁ: PRÁTICAS TÊXTEIS COMO DEPÓSITO DE MEMÓRIA
Pichillá trabalha com sua mãe, que é tecelã, e os dois criaram juntos uma obra têxtil de grandes dimensões com as cores do milho. O milho é muito importante na cultura maia e o artista usa as suas quatro cores para construir a instalação Viento (2020), exibida na 22ª Bienal de Arte Paiz. “Aqui os limites da percepção são ampliados, permitindo que o têxtil seja assumido como uma experiência completa, que visa dar conta do quadro histórico e cultural dos tz’utujil, ao mesmo tempo que faz com que as práticas têxteis sejam vistas como depositárias de uma extensa memória, a partir da qual é importante repensar nosso presente”, escreve Alexia Tala no ensaio do catálogo da Bienal. A produção de Antonio Pichillá está intimamente ligada à cultura a que pertence, a etnia maia-tz’utujil, que evoca por meio de diversos elementos que nos falam de saberes ancestrais herdados, buscando transmitir a densidade cultural contida na tradição têxtil. “Para além dos têxteis, com os quais tem experimentado nos formatos bidimensional e instalativo, trabalha também com uma série de objetos sagrados, glifos e teares, que monta para realçar sua presença objectual ou os utiliza como parte importante de seus vídeos”, completa Tala.
CARACTERÍSTICA COMUM ENTRE ARTISTAS ABORÍGENES AUSTRALIANOS E CANADENSES, INDÍGENAS NORTE-AMERICANOS E GUATEMALTECOS É A CRIAÇÃO ARTÍSTICA COMO EXPRESSÃO COMUNITÁRIA. AS OBRAS SÃO SEMPRE EXPRESSÃO DE ANSEIOS COMPARTILHADOS POR CURA E REPARAÇÃO
O MANIFESTO DE NICHOLAS GALANIN SOBRE A TERRA INDÍGENA
“Entidades coloniais, a Constituição e o governo atual dos EUA referem-se coletivamente a pessoas indígenas do território continental do país como índios. As deturpações de Hollywood sobre os povos indígenas refletem e tentam justificar a política norte-americana. O termo índio é uma recusa em reconhecer a soberania e uma tentativa de apagar a diversidade de mais de 500 nações distintas que preexistiam à invasão do continente pelos europeus. Terras indígenas e comunidades indígenas permanecem únicas, resi
lientes, complexas e bonitas; apesar de mais de 500 anos de ocupação por violentos estados colonizadores. Never Forget (2021) recusa-se a legitimar a ocupação dos colonos e reformula uma palavra de redução genérica para apelar à ação coletiva. É um convite monumental aos proprietários de terras: buscar lideranças indígenas para o relacionamento com a terra, centralizar o conhecimento indígena na criação de práticas sustentáveis, contribuir com iniciativas reais de aluguel e transferir títulos de terras e direitos para nações e comunidades indígenas.”
REBECCA BELMORE CONSTRÓI MEGAFONE PARA MITIGAR A VIOLÊNCIA
Artista Anishinaabe e membro da Lac Seul First Nation, Rebecca Belmore utiliza o próprio corpo para retratar o sofrimento e a invisibilidade das comunidades indígenas no Canadá. Seus trabalhos têm como foco comunidades negligenciadas ou suprimidas, frequentemente tematizando a opressão colonialista, o meio ambiente e os direitos indígenas. Feridas abertas da história de conflitos entre nativos e colonizadores no Canadá são recorrentes em sua trajetória: dos eventos que ocorreram em Thunder Bay, Ontário, onde vários adolescentes das Primeiras Nações desapareceram e foram encontrados afogados no Rio Mcintyre [O Corpo d’água (2019), exposto na 16ª Bienal de Istanbul] ao genocídio de mulheres indígenas em Vancouver [Vigil (2002)]; passando pela Crise Oka, que começou em março de 1990, com a decisão do prefeito da vila franco-canadense de Oka de expandir um campo de golfe de 9 para 18 buracos, gerando protestos da comunidade Kanien’kehá:ka (Mohawk), cujos direitos à terra foram sequestrados desde 1700. As mulheres Mohawk formaram uma linha para proteger as árvores que cresciam em torno dos cemitérios de seus ancestrais. Esse escudo humano se transformou em um protesto de 78 dias, abafado pelo governo australiano. A resposta de Belmore foi construir um megafone monumental, que itinerou pelo país, no ano da “celebração” dos 500 anos da chegada de Colombo, para ser usado por diferentes povos indígenas. [Ayum-ee-aawach Oomama-mowan: Speaking to Their Mother (1991)].
EMILY KARAKA E ILTJA NTJARRA MANY HANDS ART CENTRE NA PINACOTECA
A artista neozelandesa de ascendência maori Emily Karaka é conhecida há 40 anos por suas pinturas suntuosas e coloridas que refletem seu envolvimento de longa data nas questões relacionadas ao movimento Māori Land Rights and Treaty Claims. Na 22ª edição da Bienal de Sydney, suas obras foram expostas na Art Gallery of New South Wales, em meio à tradicional pinacoteca oitocentista que caracteriza os museus nacionais. A série de trabalhos trata da luta política em andamento sobre uma disputa de terra em Ihumātao, onde manifestantes Māori contestaram um projeto de desenvolvimento habitacional em uma área sagrada e um sítio arqueológico, pedindo a devolução da terra. Junto de seu grupo Ahiwaru, Karaka participou das manifestações e retratou, nas pinturas, partes dessa história. No mesmo espaço expositivo, obras do coletivo Iltja Ntjarra / Many Hands Art Centre, dirigido por descendentes e parentes de Albert Namatjira, que mantêm forte a tradição da aquarela de Hermannsburg para as gerações futuras. Representando histórias do país, de deslocamentos e de lutas por habitação, 14 artistas do grupo criaram pinturas sobre sacolas, que também foram instaladas em outros pontos do evento.
OS WARLPIRI DA AUSTRÁLIA CENTRAL E PATRICK WATERHOUSE AGENCIAM NOVAS REPRESENTAÇÕES
Os Warlpiri da Austrália Central possuem uma relação traumática com a fotografia. No fim do século 19, o cientista britânico Walter Baldwin Spencer (1860-1929) estabeleceu-se como professor de Biologia na Universidade de Melbourne e envolveu-se num ambicioso projeto de expedições pelo interior do país, patrocinadas pelo empresário australiano William Horn, para pesquisar os modos de vida dos povos aborígenes. Em suas viagens, conheceu Frank Gillen, com quem desenvolveu um método de trabalho que ficou conhecido como “pesquisa de campo” e que influenciou profundamente a nascente ciência antropológica e passou a ser adotado como modelo de estudo das culturas encontradas nas margens do império colonial. Aos 37 anos, Patrick Waterhouse começou a fotografar e colaborar com artistas Warlpiri, estabelecendo-se no centro de arte Warlukurlangu Artists, Território do Norte, perto de Alice
Springs. “Eu queria criar uma situação em que as pessoas com quem estava trabalhando tivessem um encontro com a fotografia novamente e uma chance de mudar a dinâmica do poder”, afirmou o artista e atual editor da revista Colours, em entrevista ao British Journal of Photography. Foi em uma matéria para a Colours que Waterhouse viajou para a Austrália pela primeira vez, em 2011, e, conhecendo o uso hoje questionável da fotografia etnográfica praticada por Spencer, decidiu que queria oferecer às pessoas daquela comunidade agência sobre suas próprias representações. “Baldwin Spencer e Gillen foram os pais fundadores da noção de trabalho de campo em antropologia, e seu uso da fotografia foi um aspecto fundamental de sua prática”, diz Waterhouse. Dessas inquietações nasceu o projeto colaborativo Restricted Images, em que Waterhouse devolve as fotografias que realizou dos aborígenes australianos e pede a eles que restrinjam e alterem as imagens por meio do processo de sua tradicional pintura pontilhista.