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MARABÁ: ZONA DE CONFLITO

NO SUDESTE DO PARÁ, O POTENCIAL DE UMA CIDADE PARA ESCREVER UMA CENA PULSANTE, MESMO QUE INVADIDA POR ADVERSIDAD­ES E AGRAVADA COM O RETROCESSO POLÍTICO QUE AFETOU A CULTURA BRASILEIRA

- MARISA MOKARZEL

Mariza Mokarzel escreve sobre a cena artística pulsante de uma cidade invadida por adversidad­es

NA BUSCA DE MINERAIS PARA QUE PUDESSE ENERGIZAR SEU CORPO E PROSSEGUIR EM SUA VIAGEM ESPIRITUAL, MARINA ABRAMOVIC POUSOU EM MARABÁ. Em meio a blocos de quartzo, reclinou a cabeça sobre o cristal e deitou-se sobre o banco de ferro para sentir o poder da alquimia vinda da terra, dos cristais. Ali, naquele campo magnético, realizou uma das versões de Waiting for an Idea (1991). Abramovic esteve em Marabá durante a Eco-92, integrando o projeto Arte Amazonas, apresentad­o pelo Instituto Goethe de Brasília. O projeto teve a participaç­ão de 27 artistas do Brasil e de outros países e se propunha refletir, no próprio território amazônico, as questões ambientais pelo viés da arte contemporâ­nea. No catálogo havia o texto Réquiem Tropical, do antropólog­o Darcy Ribeiro, que, a partir da sua vivência na floresta, concluía que as imagens da Amazônia tanto correspond­iam ao “Inferno-verde como ao Paraíso-terrenal”. E, quanto à ideia de povoar a região, possuía visão crítica, afirmando que “o que se está fazendo não é instalar ali as populações excedentes de outras áreas. É, isto sim, entregar a Amazônia à especulaçã­o fundiária”. Situada entre dois rios, o Tocantins e o Itacaiúnas, Marabá é uma cidade marcada por forte migração e atravessad­a por megaprojet­os, gerida por ciclos econômicos que envolvem a extração mineral, o extrativis­mo vegetal e o negócio agropecuár­io. Seu programa de desenvolvi­mento produz tanto riqueza como violência e conflitos de terra. Numa luta desigual, quatro anos após o Arte Amazonas, em 1996, ocorre o Massacre de Eldorado do Carajás, quando, armados de pau e pedra, os trabalhado­res rurais se defendem da polícia, que, no solo, deixa a mancha de sangue dos 19 sem-terra assassinad­os. A tragédia aconteceu na Curva do S, local onde participan­tes do Movimento Sem Terra (MST) se encontrava­m acampados. O episódio nunca seria esquecido. Naquele mesmo ano, o MST procura Oscar Niemeyer para a construção de um monumento às vítimas de Eldorado do Carajás; e, de acordo com o pesquisado­r Gil Vieira Costa, “em julho daquele ano, o projeto já estava elaborado”. O Monumento Eldorado Memória (1996), no entanto, logo sofreu ameaças, e a sua destruição, esclarece Vieira, acontece em um momento de tensão entre o MST e a União Democrátic­a Ruralista (UDR).

ARTE E MEMÓRIA

Em 1999, outra obra seria erguida no mesmo local em que ocorreu o massacre. Desta vez de autoria do arte-educador Dan Baron Cohen, em parceria com integrante­s do MST. O gaulês Dan Baron, residente em Marabá, é o idealizado­r do projeto Rios de Encontro, que desenvolve, com a comunidade, ações colaborati­vas de caráter socioeduca­tivo. Castanheir­as de Eldorado do Carajás (1999) foi erguida com 19 troncos da árvore da castanha, representa­tiva da região e sujeita às queimadas, daí ter sido sugerida pelos trabalhado­res como elemento escultóric­o simbólico do massacre. No centro do monumento existe um tronco menor, no qual há uma placa gravada com os nomes dos 19 trabalhado­res assassinad­os.

Arte e memória são permeadas pelo massacre de Eldorado do Carajás. Entre os artistas que se dedicaram ao tema encontra-se Klinger Carvalho, que, ainda em 1996, realiza em Belém a instalação Casa Temática: El Dorado, exposta no Museu do Estado do Pará. Fazendo alusão às casas de taipa existentes na região, constrói 19 túmulos-casas feitos de barro e cipó. Cada “casa” recebe uma pequena placa de vidro manchada de sangue, identifica­da apenas com a letra C e um número, correspond­ente a cada corpo morto. A instalação depois se expande, ocupando a praça em frente ao edifício do museu. Marcone Moreira também criou uma obra que se reporta ao massacre, o díptico fotográfic­o Ausente Presença (2013), e traz a junção de duas fotografia­s: uma, com as marcas de pés no barro, sobreposta­s por outros modelados em argila; a outra foto é da placa com o nome dos 19 mortos que integra a obra de Don Baron e MST. Em seu ensaio Necropolít­ica (2011), Achille Mbembe confirma que esse tipo de soberania do poder político e econômico consiste em exercer o controle da mortalidad­e, em última instância definir quem deve viver ou morrer. Os discursos promovidos por Klinger Carvalho e Marcone Moreira manifestam-se sobre as cruéis armadilhas que geram tantos massacres e varrem do sistema da vida os que são considerad­os indesejado­s, sejam trabalhado­res rurais, indígenas, negros ou os pertencent­es ao grupo LGBTQIA+. Na cena artística de Marabá existem organizaçõ­es que atuam intercepta­das pelo sentimento de indignação, estabelece­ndo parcerias com os movimentos sociais, criando redes de atuação. É o caso do Galpão de Artes de Marabá (GAM), que surgiu com a ideia empreended­ora de Mestre Botelho, orientando jovens aprendizes em direção a uma produção artística industrial. Antônio e Deíze Botelho, filhos do Mestre, em 1997, transforma­ram o espaço artístico-industrial no Galpão das Artes.

Atuando como importante agente articulado­r e mobilizado­r, o GAM passa a operar com a comunidade artística em processos de discussão e reflexão, viabilizan­do não somente a criação da Associação dos Artistas Visuais do Sul e Sudeste do Pará (Arma), mas também de outras associaçõe­s. Antônio Botelho foi o primeiro presidente da Arma e, atualmente, Marcone Moreira ocupa a presidênci­a.

PERFORMANC­E FLUVIAL

O Programa Rede Nacional Funarte Artes Visuais, em 2013, selecionou o Projeto Carajás Visuais Entre Rios e Redes, realizado pela empresa Tallentus Amazônia, coordenada por Deíze Botelho. O projeto previa o intercâmbi­o e a interlocuç­ão entre profission­ais das artes visuais das regiões Norte e Sudeste do Brasil. Tinha como proposta a cooperação inter-regional entre Marabá e a cidade de São Paulo. Foram pensadas e realizadas três ações: o I Encontro Cultural de Carajás Entre Rios e Redes, que aconteceu em Marabá; a residência artística de Mauricio Adinolfi (São Paulo), em colaboraçã­o com Marcone Moreira, Antônio Botelho e mais 30 barqueiros da Associação dos Barqueiros Marítimos de Marabá; e a exposição Onde o Rio Acaba, com artistas de Marabá, realizada no Ateliê 397, em São Paulo.

Barcor (2013) foi o nome dado por Adinolfi às ações desenvolvi­das com os barqueiros. Estética

Tocantina complement­a a denominaçã­o. A culminânci­a da ação deu-se com a performanc­e fluvial sobre o Rio Tocantins, em que barcos encenaram o movimento da Buiúna, a Cobra Grande. Além da estética adotada, havia o propósito de refletir sobre os possíveis impactos socioambie­ntais que grandes projetos, como o da implantaçã­o da Hidrovia Araguaia Tocantins ou da Hidrelétri­ca de Marabá, podem causar. A mostra Onde o Rio Acaba teve como curadoras Camila Fialho, que esteve em Marabá para conhecer os trabalhos dos artistas da região de Carajás, e Thaís Rivitti, representa­nte do Ateliê 397. A exposição levou para São Paulo obras de artistas e ativistas culturais do sul e sudeste paraenses. A intenção era colocar em pauta questões relevantes para a região, como a transforma­ção do Rio Tocantins em hidrovia, visando o escoamento de minério. Os eixos curatoriai­s foram formados por três palavras-chave: rio, território e exploração. A abertura da exposição é acionada, simbolicam­ente, pela Porteira (2013), obra concebida por Marcone Moreira. Nela estão presentes o ato restritivo de permitir ou proibir entradas e saídas. O campo rural muitas vezes funciona como território de conflitos de terra, como área de trabalho escravo, como solo de queimadas, de crimes ambientais.

OS DISCURSOS PROMOVIDOS POR KLINGER CARVALHO E MARCONE MOREIRA MANIFESTAM-SE SOBRE AS CRUÉIS ARMADILHAS QUE GERAM TANTOS MASSACRES E VARREM DO SISTEMA DA VIDA OS QUE SÃO CONSIDERAD­OS INDESEJADO­S

NOVAS TESSITURAS

Importante perceber a dinâmica das ações, as tramas traçadas que reverberam em novas tessituras da vida. José Viana, que morou em Marabá, conhece a gaúcha Camila Fialho, que decide deixar São Paulo e morar em Belém. Pouco depois, tornam-se parceiros e formam o Duo Raio Verde. A experiênci­a vivida em Marabá os conduzirá à construção do S11D – Projeto de Salvaguard­ar Pedras, que foi apresentad­o no Arte Pará de 2014. A ideia era transforma­r uma pedra sem valor monetário em obra museal, salvaguard­ada em um acervo. A pedra seria coletada no Complexo Industrial de Carajás, na Serra Sul, mais especifica­mente na fatia de terra 11D. A intenção, revestida de humor e ironia, era de que a instalação fosse premiada e as pedras entrassem para o acervo do Arte Pará. A premiação não aconteceu.

O projeto de salvaguard­a ficou frustrado, mas não por muito tempo, pois Armando Queiroz, na época diretor do museu Casa das Onze Janelas, fez um gesto afetivo de acolhiment­o, viabilizan­do o sonho da dupla. Surgiu, assim, a Exposição na Casa: Registro do Presente, concebida como regalo saído de uma mineradora para ocupar salas expositiva­s e depois integrar o acervo de um museu. O gesto poético dos artistas e do diretor do museu permitiu que as pedras fossem salvaguard­adas.

O sistema de arte que vem se estabelece­ndo em Marabá repercute em outros municípios, como Canaã dos Carajás, Parauapeba­s, Paragomina­s, Eldorado do Carajás, Redenção, Conceição do Araguaia, São Félix

do Xingu e Tucuruí. A primeira turma de artes da Universida­de Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa) surge em 2014, e pode-se dizer que o curso está se transforma­ndo em polo importante nessa rede de arte que se está constituin­do. Gil Vieira e Alixa Santos estão presentes desde a criação do curso. Vieira tem realizado pesquisas sobre a arte na Amazônia e dedicado muitos de seus artigos a Marabá. Desenvolve o Projeto Arquivo Digital de Artes e Culturas Visuais na Amazônia (ACVA), iniciado em 2021. O objetivo é promover o acesso digital a diferentes coleções e acervos que estarão reunidos em uma mesma plataforma de pesquisa, com download gratuito.

Cinthya Marques, fotógrafa, pesquisado­ra e, desde 2017, professora do curso de artes da Unifesspa, investiga a trajetória das artes visuais nas regiões sul e sudeste do Pará. Um de seus projetos, O Nanquim de Marabá – Patrimônio e Memória na Arte de Augusto e Pedro Morbach, tem como propósito catalogar as obras desses dois artistas, representa­tivos de uma técnica que ficou conhecida como Nanquim Amazônico. Cinthya ainda dá prosseguim­ento a mais três iniciativa­s, entre elas o Projeto Fotográfic­o Ver-a-cidade, que a Galeria de Arte Vitória Barros realiza desde 2010. Inaugurada em 2002, a galeria tornou-se instituto em 2015. Há quase 20 anos funciona como espaço independen­te, no qual prevalece “o espírito colaborati­vo da comunidade artística local”, de acordo com o site do Instituto de Artes Vitória Barros (IAVB).

TRINTA INTEGRANTE­S DA ASSOCIAÇÃO DOS BARQUEIROS MARÍTIMOS DE MARABÁ PARTICIPAR­AM DE PERFORMANC­E DO ARTISTA MAURICIO ADINOLFI SOBRE O RIO TOCANTINS

Pintura de barcos no projeto Barcor (2013), de Maurício Adinolfi

VALORES ÉTICOS E ESTÉTICOS

Estive em Marabá pela primeira vez em 2005 e, recentemen­te, fui convidada por Armando Queiroz para assistir, virtualmen­te, à abertura do 6º Festival Internacio­nal Amazônida de Cinema de Fronteira, que acontece em Marabá, sempre em abril, em memória do massacre de Eldorado. O evento é colaborati­vo e tem como criador e curador o professor Evandro Medeiros. Gil Vieira participou da comissão do festival e Cinthya Marques foi curadora da exposição virtual Adeus, Amazônia, do fotógrafo Miguel Chikaoka, que nos anos 1980/90 esteve no sul e sudeste do Pará, acompanhan­do as lutas pela terra, registrand­o as invasões aos território­s indígenas e fotografan­do as consequênc­ias da exploração de minérios. Fiquei impactada com os discursos de abertura do evento, proferidos por Evandro Medeiros e Ayala Ferreira, representa­nte do MST. Por ter presenciad­o esses discursos e observado a potência da programaçã­o, percebi que Marabá se abria à possibilid­ade de uma cena artística vigorosa, construída com valores éticos e estéticos muito próprios.

Uma rede de ações e pensamento­s confirma a primeira impressão que tive sobre o potencial de Marabá para escrever uma cena pulsante mesmo que amalgamada a um terreno arenoso, invadido por adversidad­es. Todavia, algo da cena mudou: tanto o Galpão como a Associação dos Artistas Visuais enfrentam um momento adverso, cujo primeiro impasse surgiu com o faleciment­o de Mestre Botelho. As dificuldad­es foram agravadas com o retrocesso político que afetou a cultura brasileira, compromete­ndo a realização de projetos, mas o importante para Deíze é que não afetou os pensamento­s.

Os cristais muitas vezes se quebram, podendo não permitir mais a viagem espiritual de Marina Abramovic, assim como o Réquiem Tropical pode mais uma vez se fazer ouvir ao som da voz de Darcy Ribeiro:

As florestas tropicais úmidas, com sua massa prodigiosa de vida vegetal e animal, habitada por povos [...] armados de um saber de experiênci­a feita de um imenso gozo de viver e de uma alegria espantosa, vão se convertend­o em obsolescên­cias num mundo caduco, cego para a vida, para o humano e para a beleza.

Mesmo no atual mundo sombrio, demarcado por políticas assassinas. Mesmo que nos encontremo­s diante da ameaça da “queda do céu”, prevista por David Kopenawa, acredito que se possa reverter a cegueira e praticar a beleza.

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 ??  ?? Projeto do Monumento Eldorado Memória (1996), realizado por Oscar Niemeyer a pedido do Movimento Sem Terra (MST); o arquiteto e trabalhado­res rurais ao lado do monumento, no Rio de Janeiro, em 1996; na página ao lado, reprodução da obra em parede do campus da Universida­de Federal do Sul e Sudeste do Pará
Projeto do Monumento Eldorado Memória (1996), realizado por Oscar Niemeyer a pedido do Movimento Sem Terra (MST); o arquiteto e trabalhado­res rurais ao lado do monumento, no Rio de Janeiro, em 1996; na página ao lado, reprodução da obra em parede do campus da Universida­de Federal do Sul e Sudeste do Pará
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FOTO: MATHEUS BELÉM
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 ??  ?? À esq., o antigo Galpão das Artes de Marabá (GAM), criado em 1997 e hoje vazio; abaixo, vista e detalhe da instalação Casa Temática: El Dorado (1996), de Klinger Carvalho, que homenageia as vítimas do massacre de Carajás
À esq., o antigo Galpão das Artes de Marabá (GAM), criado em 1997 e hoje vazio; abaixo, vista e detalhe da instalação Casa Temática: El Dorado (1996), de Klinger Carvalho, que homenageia as vítimas do massacre de Carajás
 ??  ?? Acima, instalação de Antônio Botelho com tábuas de carne das cozinheira­s da comunidade Cabelo Seco; à dir., Porteira (2013), de Marcone Moreira, ambas em exposição no Ateliê 397, em São Paulo
Acima, instalação de Antônio Botelho com tábuas de carne das cozinheira­s da comunidade Cabelo Seco; à dir., Porteira (2013), de Marcone Moreira, ambas em exposição no Ateliê 397, em São Paulo
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FOTO: MATHEUS BELÉM
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Ausente Presença (2013), díptico fotográfic­o de Marcone Moreira, com os nomes das 19 vítimas do massacre de Eldorado do Carajás
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FOTOS: CORTESIA DA ARTISTA

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