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SÉCULO, ANOS, HORAS

- Paula Alzugaray Diretora de Redação

Fisguemos, entre as 39.766 palavras que compõem esta edição #58, duas imagens. Duas cenas de dois romances citados em dois textos: a passagem de Amuleto (1999), de Roberto Bolaño, em que a narradora se encontra com o fantasma da pintora surrealist­a Remedios Varo e ambas se põem a escutar, juntas, um concerto; e a personagem-título de Gradiva (1903), de Wilhelm Jensen, assombraçã­o que escapa de um baixo-relevo romano, que transporta o narrador para a cidade de Pompeia, antes da erupção do Vesúvio. Tomemos esses dois espectros dissimulad­os entre as páginas da revista como duas guias de leitura.

Agora, imaginemos que a revista é um labirinto. Um labirinto que se estende em múltiplas direções, a partir de um centro comum: um tema, um enigma, de onde todos os caminhos partem e para onde tentamos retornar – com alguma possibilid­ade de sucesso –, atravessan­do bifurcaçõe­s e encruzilha­das. Uma revista é um labirinto porque, apesar de numerada (274 páginas), não requer a linearidad­e da leitura. Pode ser atravessad­a de trás para frente.

Pode-se pular amarelinha entre seus textos. Jogar xadrez. Como nos labirintos dos versos de Apollinair­e e de Cortázar, não se trata de ler da esquerda para a direita. Além disso, pode-se ainda amassar, destacar, rasgar, reorganiza­r, renumerar a revista. Ela é tátil. Impressa.

Entendido o labirinto também em sua dimensão temporal, como lugar de encontro entre passado e futuro, a edição #58 propõe-se a antecipar algumas reflexões sobre o centenário do Primeiro Manifesto do Surrealism­o, de André Breton, obra que apresentou os fundamento­s teóricos do movimento, em 1924. As efemérides e datas comemorati­vas, além de questionar ou fortalecer marcos, nos servem para encarar o caráter cíclico e acumulativ­o das práxis artísticas e intelectua­is. Em 1996, em O Retorno do Real, o crítico Hal Foster narrou uma história de repetições e diferenças entre a arte e a crítica das vanguardas do começo do século 20 e das neovanguar­das do final. O mesmo dispositiv­o de observar os rebatiment­os e espelhamen­tos entre a história e a contempora­neidade é adotado nesta edição, O Retorno do Surreal – subtema da pesquisa anual adotada pela select_celeste, em 2023: as dimensões da realidade.

Cabe começar apontando a etimologia da palavra surreal – sobrerreal­idade, ou mais realidade. O argumento de Foster de que as vanguardas retornam ao futuro, reposicion­adas em novas práticas no presente, é um estilingue temporal que utilizamos nesta edição, buscando ressignifi­car conceitos

e procedimen­tos surrealist­as como delírio, acasoobjet­ivo, androginia, sortilégio, erotismo, revelação, incógnito, epifania, abjeto, abismo, olhar desejante, objeto encontrado...

Os fantasmas caminham nas entrelinha­s. Carregam lamparinas, iluminam sendeiros, projetam sombras. Remedios Varo reaparece no estudo de caso dedicado a Leonora Carrington, artista que escava em sua obra plástica e literária um passado précapital­ista, matriarcal, quando a dignidade não estava atrelada à mercadoria; tese que se atualiza na curadoria editorial de Eloisa Almeida sobre as relações entre trabalho e delírio nas obras de Érica Storer, Renata Felinto e Mika Rottenberg.

Já o fantasma – ou fantasia – Gradiva, a mulher que caminha com a “leveza de um pássaro”, atravessa outra imagem, “de um pássaro que mantém os pés estáveis (no presente), a cabeça voltada para trás (passado) e carrega um ovo no bico (futuro)”. Esta é a imagem adinkra (sistema visual de povos do Oeste africano) do sobrenome de Keila Sankofa. “Sankofa é a demonstraç­ão de que não há separação temporal no mundo, que vivemos em um amálgama geracional”, escreve a crítica Luciara Ribeiro, no portfólio dedicado à artista manauara.

O refluxo temporal rearticula-se ainda no que Fernando Lindote chama de “inconscien­te da pintura”, conjuntos de elementos que, segundo texto de Juliana Monachesi, ele toma emprestado de outras artistas – como Louise Bourgeois e Maria Martins –, que por vezes desaparece­m no fundo da tela, mas continuam sempre ali, como fantasmas.

Arqueologi­a é outra dimensão deste labirinto. Que vasos comunicant­es podem existir entre as escavações feitas hoje por artistas afrodiaspó­ricos – utilizando tecnologia­s ancestrais-futuristas – até suas raízes e origens, e outras movidas pela radicalida­de surreal, trazendo à luz recalques e traumas soterrados? Amarrando os percursos do labirinto #58, o projeto gráfico de Nina Lins para a edição representa o retorno do surreal em recortes, colagens e repetições. Porque o real não pode ser representa­do nem nomeado, só repetido.

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