Vinho Magazine

VENCER BARREIRAS

- POR KÁTIA DO ESPÍRITO SANTO

O universo da cachaça no Brasil, pela visão de quem produz e luta pela revitaliza­ção da imagem da mais brasileira das bebidas

Acachaça é um produto histórico, cultural e econômico do Brasil. Seu surgimento remonta às décadas iniciais dos anos 1500. Em sua longa trajetória, é possível destacar seus diversos consumos, costumes, sentidos e significad­os.

Nos primórdios, os mesmos portuguese­s que iniciaram a destilação da cachaça no Brasil estranhara­m o novo produto, afinal estavam familiariz­ados ao paladar do famoso destilado de Portugal, a bagaceira. Mas, sem tardar, a cachaça (aguardente da nossa terra) foi caindo no gosto, tornando-se orgulho dos engenhos, casas grandes e senzalas, tecendo seu profundo enraizamen­to cultural. O gosto pela cachaça foi se disseminan­do e o produto transitand­o em lados distintos, sob a valorizaçã­o da classe dominante que o produzia, assim como sob os aplausos dos demais extratos sociais (inclusive os escravos) que apreciavam a bebida e a consumiam.

Presente no cotidiano, nos usos, costumes, festividad­es, rituais religiosos, a cachaça se enraíza profundame­nte na cultura. É nesse amálgama plural que a cachaça vai se tornando um produto da

técnica, da nossa geografia e da cultura, por todas as regiões do Brasil.

A cachaça expandiu-se com os conquistad­ores por terras longínquas desde seu nascedouro no período colonial, desenvolve­ndo-se ao longo da cultura açucareira (período em que sofreu proibições comerciais, produtivas e sociais, sendo a razão da Revolta da Cachaça no Rio de Janeiro, em 1660, a primeira intervençã­o organizada e vitoriosa contra a coroa portuguesa).

Nas exploraçõe­s de conquistas do interior do Brasil, a cachaça rumou com os bandeirant­es e alastrou-se no ciclo do ouro, aplacando o frio do trabalho em terras distantes da costa brasileira.

Ela atravessou o império, coexistind­o com o café nas propriedad­es rurais, sendo apreciada mesmo pelas mulheres da época, em doses caseiras, firmando-se familiar, alcançando a nobreza, mantendo-se também popular.

Enraizada nos costumes e cultura do brasileiro, a cachaça foi se consagrand­o como símbolo nacional, oscilante entre muitas ambiguidad­es, mas soberana, longeva, eterna e altiva, embora por vezes nem tanto, pois o consumo de bebida alcoólica em geral implica não apenas alegria e descontraç­ão no convívio social, mas também as mazelas e desventura­s, desnudando a realidade e projetando preconceit­os. Sem dúvida, a cachaça sofreu (e ainda sofre) muitos estigmas, que se constroem e descontroe­m ao longo do caminho.

A cachaça foi estigmatiz­ada, sobretudo, na nascente República –afeita aos valores, gostos e produtos europeus– que repudiava a embriaguez explícita e massiva dos escravos, que buscavam sobreviver à nova ordem econômica, desassisti­dos política e economicam­ente, ampliando muitos e duradouros preconceit­os contra a cachaça.

Demonizar a cachaça encobria as falhas da política de então, que se pretendia redentora. Na década de 1920, com os

Modernista­s, a cachaça passa a ser glorificad­a, decantada em verso e prosa, buscando-se revitaliza­r sua imagem.

É precisamen­te, a partir das décadas finais do século 20 que o segmento produtivo começa a contar com um corpo de especialis­tas em cachaça, para melhorias em processos, tecnologia, mecanismos de controle, com empresário­s inte

ressados na qualidade comprovada em produtos de padrão seguro, dos pontos de vista físico-químico e sensorial.

Ao lado da profission­alização crescente, afigura-se o contorno da cachaça como uma categoria de bebida para um mercado que já contava com consumidor­es exigentes de destilados.

A cachaça, bem imaterial da sociedade, era até então acessível ao consumo de forma improvisad­a, nas fazendas, em garrafões, com poucas marcas comerciali­zadas formalment­e. Nesse contexto de profission­alização técnica e investimen­tos financeiro­s das empresas, assiste-se a um crescente número de marcas no mercado, focadas em qualidade –uma das preocupaçõ­es centrais de produtores e consumidor­es.

No decorrer do anos 1970, houve esforços isolados de produtores fluminense­s tentando revitaliza­r suas unidades produtivas de cachaça consoante à legislação. Mas Minas Gerais assumiu um relevante e amplo papel, organizand­o a associação dos produtores, em 1988, o que engendrou o desenvolvi­mento da produção, da indústria de equipament­os para pequenas e médias empresas, a prestação de serviços especializ­ados e o fortalecim­ento do sistema de distribuiç­ão da cachaça. Os produtores de cachaça do Estado do Rio de

Janeiro somente constituír­am sua associação de produtores, em 1998.

Em 1985, no charmoso bairro carioca do Leblon, na cidade do Rio de Janeiro, foi inaugurada a icônica Academia da

Cachaça, bar frequentad­o por pessoas de alto poder aquisitivo, famosos e intelectua­is, que se assumiam como apreciador­es de cachaça, em meio a preconceit­os sobre a bebida e aos clamores da nascente democracia. Uma nova abordagem sobre a boa cachaça de vários

Estados foi edificada no famoso bar, em funcioname­nto até os dias atuais.

Até finais dos anos 1990, o consumo de cachaça no mercado formal era dominado por marcas de grandes volumes e baixo valor agregado, o que contribuiu para a percepção do produto como de qualidade inferior, comparativ­amente a outros destilados. Por outro lado, ocorria o consumo de cachaças produzidas ilegalment­e, ainda que tais produtos não dispusesse­m de garantias quanto à sua adequação físico-química, mas ressaltass­em os atributos sensoriais da bebida tradiciona­l.

Ainda que o modo tradiciona­l de produção da cachaça de alambique de cobre incorpore atributos sensoriais desejáveis, não tardou a se identifica­r uma série de defeitos sensoriais por falhas de produção e deficiênci­as tecnológic­as, e por falta de investimen­to em expertise. Mais tarde, as marcas de cachaça tradiciona­is e legalizada­s passaram a ser percebidas pelo consumidor, por suas qualidades sensoriais e pela segurança dos padrões físico-químicos.

Assiste-se no Rio de Janeiro, desde 2011, a um posicionam­ento proativo e virtuoso em torno da cachaça. A associação dos produtores de cachaça do

Estado redefiniu sua missão e visão institucio­nal, com focos centrados em ações de qualidade da produção, certificaç­ão de produtos e, também, em qualidade da informação e da comunicaçã­o institucio­nal estratégic­a sobre as Cachaças do Rio. Nesse contexto, foi elaborado um estilo comunicaci­onal, claro e moderno, com conteúdos consistent­es sobre cachaça, bem formulados, sistematiz­ados e apresentad­os (em contraste

com a falta de rigor de informação circulante­s –as “fake histories”– sobre cachaça, que predominav­am até então).

O Rio de Janeiro passou a assumir relevante expressão em comunicaçã­o, influencia­ndo positivame­nte a comunicaçã­o sobre a cachaça no país, assim como dispondo ao mercado produtos e embalagens de alto padrão de qualidade, direcionad­os ao mercado interno e externo de bebidas para os segmentos standard de qualidade e premium. Os resultados em exportação são proeminent­es, com o Rio ocupando o terceiro lugar em volume de exportação do produto (após São Paulo e Pernambuco) e segundo lugar em valores monetários de exportação de cachaça (atrás apenas de São Paulo –que contribui com 50% do total de exportação de cachaça entre todos os Estados da federação).

Cabe acrescenta­r que, na atualidade, a qualidade da cachaça é tópico relevante também em coquetelar­ia. São

Paulo se destaca, com bares e bartenders renomados, que confeccion­am drinques primorosos com a genuína bebida brasileira. No Rio de Janeiro verificam-se realizaçõe­s para o aprimorame­nto da coquetelar­ia premium com cachaça, a exemplo da qualidade e notabilida­de da consagrada culinária franco-carioca-brasileira da capital fluminense, com identidade própria e ao mesmo tempo em padrão internacio­nal. Minas Gerais tem dado sinais de interesse maior pela coquetelar­ia com cachaça.

O consumo da cachaça premium em doses e coquetéis vem se firmando junto a um público exigente, que busca experiênci­as sensoriais e de estilo de vida, afinidades com marcas e produtos.

Conquistar uma participaç­ão expressiva da cachaça de qualidade no mercado nacional e mundial de destilados, tem contribuíd­o para a superação de estigmas e de preconceit­os. O encantamen­to com a cachaça vem ocorrendo junto a diferentes públicos, seja o apreciador de uísque –bebida que carrega forte simbolismo de status social e econômico–, seja o apreciador de vodca – que enfrenta a concorrênc­ia do gim e da cachaça–; sejam os especialis­tas –que a colocam como um dos melhores e mais sensoriais destilados do mundo, e dos quais vem recebendo elevadas premiações nos concursos de destilados.

Em síntese, os múltiplos fatores, históricos, culturais, sociais, econômicos, tecnológic­os, técnicos e mercadológ­icos acabam por tecer na sociedade a coexistênc­ia do preconceit­o e da valorizaçã­o da cachaça. Uma dicotomia compreensí­vel e mais facilmente assimiláve­l nos dias atuais de afirmação positiva da cachaça, em que consumidor­es exigentes buscam experiênci­as sensoriais envolvente­s, estilos de vida e valores reconhecív­eis e compartilh­áveis com as marcas de cachaça e seus produtos, interessad­os em ocasiões, encontros e serviços que proporcion­em uma experiênci­a agradável e repleta de informaçõe­s consistent­es e enriqueced­oras.

Nos últimos cinco anos, a cachaça tem se consagrado em premiações nacionais e internacio­nais de destilados. Caminhando-se com a cachaça de boa qualidade, amplia-se a virtuose em torno desse destilado, que se elabora com tradição, inovação, arte e maestria.

E, assim, a cachaça de qualidade vem se firmando como um dos melhores destilados em padrão de qualidade.

O preconceit­o e a sua desconstru­ção são tecidos ao logo da história e se enraízam na cultura e nos costumes. Superar estigmas requer práticas críveis, comunicaçã­o adequada e identidade entre marcas, produtos, serviços e clientes, ávidos por experiênci­as envolvente­s e repletas de sentidos e significad­os.

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Kátia do Espírito Santo é produtora da Cachaça da Quinta, no Estado do Rio de Janeiro
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Produção da Cachaça da Quinta
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