VINUM QUAE SERA TAMEN
Novas moléstias fúngicas ameaçam o mundo do vinho
Jancis Robinson, célebre MW (Master of Wine) inglesa, escritora e crítica de vinhos, deu o primeiro alerta em seu site, com o artigo “Esca” and Friends (“Esca” e Amigos) em janeiro de 2013. Recentemente, em agosto de 2018, o também inglês Andrew Jefford, jornalista e escritor de vinhos, voltou ao assunto no seu artigo The New, Deadly Disease Threatening the Wine World (A nova e mortal doença ameaçando o mundo do vinho) no Financial Times.
Os dois tratam de uma doença das videiras, temível e fatal, causada por fungos: a GTD, em inglês Grapevine Trunk Disease (em português DTV, Doença do Tronco da Videira).
Atualmente, são reconhecidas quatro variantes da DTV:
1. Esca ou, em inglês, Black Goo (“gosma negra”), causada pelos fungos Phaeoacremonium aleophilum, Phaeomoniella chlamydospora e/ou Fomitiporia mediterrânea;
2. Eutypa ou Eutipiose ou, em inglês, Dieback (Morte Retrógrada, pois há morte das pontas das folhas ou raízes para trás) ou “Podridão-Descendente”, causada pelo fungo Eutypa lata;
3. BDA, do inglês Black Dead Arm (Braço Morto Preto) ou Podridão-branca ou Seca-do-Ramo, causada pelos fungos Botryosphaeria dothidea e/ou Lasiodiplodia theobromae;
4. BFD, do inglês Black Foot Disease (Doença do Pé-preto), causada pelos fungos Cylindrocarpon destructans, Cylindrocarpon liriodendri e Cylindrocarpon macrodidymum.
Em seu artigo de 2013, Jancis Robinson afirma que, na Borgonha, Denis Bachelet, produtor de Gevrey-Chambertin, relatou que suas videiras estavam morrendo a uma taxa entre 10% e 20% ao ano por Esca. Também Eric Rousseau, do Domaine Armand Rousseau, contou-lhe que uma proporção significativa de suas videiras de 50 anos tinha que ser substituída a cada ano. No Rhône, Paul-Vincent Avril, do Clos des Papes, disse-lhe que seus preciosos vinhedos também vêm perdendo cerca de 100 videiras por hectare a cada ano por causa da Esca.
Segundo Jancis, a Esca até agora tem mais probabilidade de afetar videiras velhas (com pelo menos 10 anos de idade) do que jovens. É grave, porque videiras velhas (aclimatadas às condições locais, com sistemas radiculares profundos e rendimentos baixos) dão vinhos mais complexos e de melhor qualidade do que as videiras jovens. Por isso há em muitos rótulos os dizeres “Old Vines”, “Vieilles Vignes” ou “Videiras Velhas”.
Não obstante, é cada vez maior a incidência de Esca em videiras jovens. Ela está associada a uma substância colorida conhecida como “gosma negra” . Tanto o tronco como as folhas podem desenvol
ver estranhos padrões de descoloração, geralmente listras ou manchas. As folhas e os caules murcham de repente, no meio da fase de crescimento, há queda dos cachos de uvas e a videira sofre apoplexia ou morte súbita. Após os primeiros sintomas, é impossível prever a rapidez com que a videira morre, mas pode acontecer de repente, em questão de dias, principalmente no meio de um verão seco e depois de um período chuvoso.
A “morte retrógrada” e o “braço morto preto” se tornaram mais evidentes recentemente. Segundo o Institut Français de la Vigné et du Vin, a explicação para o aumento da incidência de Esca e BDA seria a ocorrência de uma primavera excepcionalmente úmida seguida por temperaturas muito altas no início do verão (como em 2012) que estressaria as videiras, deixando-as vulneráveis e acarretando perdas de até 50% do vinhedo.
Nenhuma variedade de uva é imune às DTV e sabe-se que as variedades Cabernet Sauvignon e Sauvignon Blanc, autóctones de Bordeaux, são particularmente suscetíveis a essas doenças.
Para piorar, as DTV já começam a infestar variedades que antes não eram consideradas propensas, como a Pinot Noir e a Chardonnay da Borgonha, especialmente de videiras plantadas na década de 1980. Segundo Andrew Jefford, também são muito suscetíveis a Chenin Blanc (do Vale do Loire), a Grenache e a Syrah (ambas do Vale do Rhône) e, ainda, a Ugni Blanc (Cognac).
Apesar do monitoramento e identificação dos fungos associados às DTV, pouco se sabe sobre sua propagação.
Até o início deste século, as videiras costumavam ser tratadas com arsênico, mas a vigente proibição desta conduta pode ter contribuído para o aumento na incidência. Elas não estão mais limitadas à França, e se tornaram comuns na Itália e Espanha, onde são tão familiares que alguns produtores espanhóis desenvolveram uma maneira folclórica de lidar com elas. Os troncos de videira são fendidos ao meio, as duas metades são separadas com uma grande pedra para fazer com que os fungos agressores sequem. Então, o broto do ano seguinte é retirado de um novo ramo que brota abaixo da junção.
Segundo J. Robinson, para o diretor da Câmara de Agricultura do Médoc (sub-região de Bordeaux muito afetada), Mickaël Anneraud, as características dos porta-enxertos podem ser a chave. Ele notou que, mesmo em parcelas contíguas, videiras com 25 a 40 anos de idade foram menos afetadas do que aquelas de 20 anos, quando os porta-enxertos comumente usados se tornaram muito menos vigorosos. Anneraud acha que valeria a pena pesquisar uma possível ligação com o vigor da videira.
Outra causa provável seria a má higie
nização das mudas nos viveiros que as vendem, devida ao uso crescente do “enxerto ômega”, feito mecanicamente de modo a economizar o trabalho dos viveiristas. O “enxerto ômega” (que consiste em fazer corte em forma da letra grega “Ω” nos ramos do enxerto e do porta-enxerto e, a seguir, uni-los, encaixando um ramo no outro) teria maior probabilidade de promover DTV do que o tradicional “enxerto inglês” (greffe anglaise) feito à mão. Jefford escreve que o consultor de viticultura Richard Smart disse que “as DTV têm dois vilões: o viticultor complacente e o comércio de mudas criadas em viveiros, pois as DTV são espalhadas fundamentalmente pelos viveiristas. Ao plantar um vinhedo, quase invariavelmente as videiras estão infectadas”. O presidente da federação de viveiristas da França, David Amblevert, contesta: “o problema é latente nos vinhedos e não no novo material vegetal”.
A OIV (Organização Internacional da Vinha e do Vinho) sugere que hoje cerca de 20% dos vinhedos do mundo estejam afetados, o que implica em vasto programa de replantio nos próximos anos, significando cinco anos de perda de produção, e despesas colossais. Outras soluções incluem reenxerto, renovação do tronco (criação de um novo tronco a partir de uma brotação pequena) e cirurgia corretiva: todas são trabalhosas, mas pelo menos não se perde produção por cinco anos. Higiene rigorosa durante a poda é vital, especialmente a proteção de ferimentos ocasionados pela poda, mas ainda está longe da prática padrão.
De acordo com Jancis, a nova técnica de poda desenvolvida na Itália pode evitar a disseminação dos fungos relevantes, pois há teoria que diz ser a poda e não os próprios fungos que provocam as doenças. Alguns cortadores injetam um desinfetante no momento da poda da videira. No entanto, Jefford diz que todo esse trabalho é em vão se os viveiros não garantirem mudas não-contaminadas.
Para John Dyson, da vinícola Williams Selyem, em Russian River, na Califórnia, “muitos replantios nos anos 80 foram feitos apressadamente e agora precisam ser refeitos. Quando os produtores replantam com material infectado, eles ficam chocados, pois é um ultraje incompreensível. A grande questão é que o mundo dos vinhos finos depende de um pequeno número de locais de destaque, que são replantados repetidas vezes. Portanto, se a terra de alta qualidade para a plantação de vinhas for infectada, sempre haverá perigo para novas plantações e replantio. Esse é o verdadeiro desafio.”
Segundo Jefford, “há uma solução que o mundo do vinho prefere não ouvir: reprodução para obter maior resistência a doenças”.
O pesquisador em viticultura, Tim Martinson, disse na revista Wines & Vines que “cultivares clássicos de uvas para vinho se espalharam por todo o mundo, mas sua genética está ‘congelada’ na Idade Média. Isso está em contraste com outras culturas hortícolas e agronômicas. Se a criação de frutos tivesse parado nos anos 1600, pêssegos teriam o tamanho de cerejas, melancias teriam seis pequenas bolsas de polpa vermelha divididas por tecido branco e bananas teriam sementes grandes. As tradicionais castas de uvas para vinho –por maravilhosas que sejam– são insensíveis à melhoria?”. Jefford diz ainda que “é compreensível a cautela dos produtores de vinho em relação às novas variedades, pois as uvas para vinhos finos são uma cultura muito valiosa. No entanto, muitos pesquisadores acreditam que a criação de clones, plantas e porta-enxertos resistentes a doenças é o único meio de longo prazo para controlar a DTV e outras doenças, além de ser a chave para usar menos produtos químicos nos vinhedos.” Ele encerra seu artigo, com importante interrogação e sábia afirmação: “Portanto, devem os produtores, viveiristas e legisladores adotar novas variedades? Este é o dilema do vinho dos nossos tempos”.