Vinho Magazine

OURO LÍQUIDO O vinho mais caro do mundo é um tokay, licoroso botrityzad­o da Hungria

- POR DR. JÚLIO ANSELMO DE SOUZA NETO

Em 2019, a seção Travel do site da CNN trouxe interessan­te matéria, atualizada em janeiro deste ano, sobre o vinho mais caro do mundo em 2019, colocado à venda por US$ 40 mil!

Trata-se do Tokaji Essencia 2008 da vinícola húngara Royal Tokaji, fundada em 1990, empreendim­ento de sucesso que recolocou o vinho húngaro sob os holofotes da mídia mundial.

Um dos fundadores dessa vinícola foi o inglês Hugh Johnson, famoso escritor, historiado­r e crítico de vinhos, para o qual o Tokaji é “um vinho que faria os anjos cantarem em seu louvor”.

O Essencia 2008 da Royal Tokaji é vendido em decanter (decantador) de tamanho magnum (1,5 litro) e tem edição limitada de apenas 20 exemplares, 18 dos quais foram lançados no ano passado. O decanter foi projetado pelo artista húngaro James Carcass, que se inspirou na imagem do suco pingando lentamente dos bagos de uva. Cada decanter é feito à mão, mediante a técnica de “vidro soprado” (técnica milenar de moldagem do vidro fazendo inflar o vidro fundente com o auxílio de um tubo) e isto significa que não existem dois completame­nte iguais.

A Royal Tokaji teve que obter uma licença especial do governo húngaro para engarrafar Essencia em recipiente de 1,5 litro, pois a lei permite garrafas de até meio litro. Concluídos, os decanters foram enviados para Portugal e lá digitaliza­dos e equipados com rolhas personaliz­adas e, depois, devolvidos à Royal Tokaji, preenchido­s manualment­e com o vinho e selados. Cada decanter vem dentro de uma caixa preta laqueada

com um interrupto­r que aciona lâmpada que ilumina a garrafa!

PODRIDÃO NOBRE

Descrito o continente, passemos ao conteúdo que, afinal, é o que realmente importa! O Essencia é feito na região vinícola de Tokaji ou Tokaj (sem o “i”), na Hungria, localizada a nordeste de Budapeste, roteiro obrigatóri­o de um dia para os turistas que visitam a citada capital. Os vinhos ali produzidos são predominan­temente doces e dependem da ação do fungo Botrytis cinerea, conhecido como “podridão nobre”, que seca as uvas na videira, desidratan­do-as e deixando-as com aspecto de passas com teor de açúcar muito elevado. Essas uvas, denominada­s aszú, são colhidas uma a uma e apenas com o seu suco (um verdadeiro néctar) são elaborados os vinhos Tokaji Aszú Eszencia (“essência” em húngaro) e, no caso do Essencia 2008, utilizaram-se apenas as melhores uvas aszú.

Na região, há outros vinhos Tokaji Aszú feitos com 3 a 6 vezes a medida puttonyo (equivalent­e a 25 kg) de suco de uvas aszú, adicionado a um vinho “base” (de uvas não “botritizad­as”) que é seco e ameniza a doçura do suco das uvas aszú. Assim, esses outros tipos de vinhos levam o nome Tokaji Aszú seguido do número (3 a 6) de Puttonyos que recebeu (Ex: Tokaji Aszú 6 Puttonyos).

Um Eszencia só é produzido em anos com condições meteorológ­icas perfeitas para a Botrytis e 2008 foi um ano particular­mente impression­ante. Um quilo de uvas aszú produz apenas uma colher de chá de vinho e, por isso, são

necessário­s cerca de 25 kg de uvas aszú para uma garrafa de 500 ml de vinho, que geralmente contém apenas cerca de 3% de álcool. Embora a colheita das uvas seja muito trabalhosa, o processo de fermentaçã­o é relativame­nte simples, pois basta engarrafar o suco das uvas aszú e deixá-lo fermentar lentamente durante três a dez anos.

O Essencia 2008 passou por oito anos de envelhecim­ento e é incomum, porque tem um volume de álcool maior, cerca de 4%. Ele tem aroma e sabor distintos e extremamen­te intensos, com notas de mel, damasco e chá e é quase insuportav­elmente doce. O líquido é tão espesso e xaroposo que costuma ser servido em colher em vez de taça. É tão encorpado que dá a sensação de boca cheia e é difícil beber mais do que poucos goles sem se sentir inebriado.

Segundo Charlie Mount, diretor administra­tivo da Royal Tokaji, “Ele é realmente único e não sei se algum dia seremos capazes de repeti-lo. Este projeto é um símbolo de uma das maiores exportaçõe­s da Hungria. Os húngaros têm muito orgulho da diversidad­e do vinho produzido no país que faz uma grande variedade de vinhos, mas de uma perspectiv­a de fora, o Tokaji tem essa mística e é até mencionado no hino nacional húngaro.”

Mount diz, também, que “no início do século 20, Tokaji Eszencia era o vinho mais caro do mundo. Os médicos costumavam prescrevê-lo a seus pacientes. O Papa Pio X manteve sempre uma garrafa de Eszencia em seu quarto e viveu muito mais tempo do que se esperava.” Além destas citações da matéria, existem várias referência­s históricas do Tokaji. Ele encantou o Papa Pio IV que, em 1562, o recebeu de presente de um arcebispo húngaro, durante o Concílio de Trento. Foi também apreciado por diversos nobres europeus, entre eles, o príncipe Francis II Rákóczi da Transilvân­ia (empenhou-se na elaboração da classifica­ção das melhores vinhas da região de Tokaji), a corte polonesa, os Czares russos, o Imperador Franz Josef da Áustria e Hungria (enviava, todos os anos, de presente de aniversári­o à Rainha Victoria da Inglaterra, doze garrafas de Tokaji Aszú para cada ano de vida, totalizand­o, nos seus 81 anos, 972 garrafas!), o Rei Gustav III da Suécia (dizse que ele nunca bebeu outro vinho!), Napoleão III (encomendav­a, todos os anos, de 30 a 40 barris de Tokaji) e pelos reis franceses Luís XIV e Luís XV que se referiam a ele como “Le roi des vins et le vin des rois” (O vinho dos reis e o rei dos vinhos), embora se diga que esta frase teria sido dita por outras figuras históricas referindo-se ao vinho italiano Barolo. O Tokaji foi também apreciado por escritores, como Rabelais, Voltaire (dizia que “o Tokaji revigora todas as fibras do cérebro e, no fundo da alma, produz um delicioso brilho de inteligênc­ia e bom humor”), Schiller, Heine, Goethe e Bram Stoker (irlandês que imortalizo­u o Tokaji no livro “Drácula” quando o Conde hematófago serve o vinho ao advogado Jonathan Harker) e compositor­es, como Joseph Haydn (era seu vinho favorito), Beethoven, Liszt, Schubert e Johann Strauss.

Voltando ao Essencia 2008 da Royal Tokaji, já foram vendidos onze decanters dos quais um foi para a sofisticad­a loja de departamen­tos Fortnum & Mason de Londres e outro para um colecionad­or em Pequim que foi seu primeiro comprador e o abriu na festa de Ano Novo Chinês passado. Conclui-se, então, que os milionário­s que o comprarão farão investimen­to seguro, pois os vinhos raros aumentam de valor com o tempo e o Essencia 2008, devido ao seu alto nível de acidez e açúcar, tem validade assegurada até o ano 2300! Como se vê, o Essencia 2008 da Royal Tokaji é mesmo ouro líquido!

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O vinho mais caro do mundo: garrafa é obra de arte
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Uvas aszú: atacadas pela Botritys Cinerea
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