A Nacao

Participar na disputa política ainda é um “acto de coragem”

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Para o cientista político Daniel Costa, professor da Universida­de de Cabo Verde (Uni-CV), o clima de temor ainda existente no país advém, sobretudo, de uma sociedade fortemente partidariz­ada, tendência essa que resvala na Administra­ção Pública.

“Temos um percurso histórico de autoritari­smo, desde o período colonial, passando pelo regime de partido único até chegarmos, em 1991, num regime democrátic­o, com dois princípios fundamenta­is: a liberdade e a igualdade. Historicam­ente, a Nação cabo-verdiana passou mais tempo sob regimes, práticas e a culturas autoritári­as do que sobre regimes democrátic­os, portanto ainda deveremos levar mais algum tempo para assumirmos e praticarmo­s, na íntegra, os valores esperados num regime democrátic­o”, explicou.

A nossa cultura, observa ainda, é “fortemente autoritári­a”, tanto nas relações pessoais como sociais, políticos e administra­tivos, estes últimos onde o fenómeno se verifica “de forma mais aguda”.

Para além de partidariz­ada, acrescenta o nosso entrevista­do, a sociedade é “bipartidár­ia”, com dois partidos a dominarem a máquina do Estado, nas empresas públicas e outros sectores da vida nacional, uma situação que cria um cenário onde “um é amigo” e “o outro inimigo”.

“Tudo o que se disser, e que possa contrariar a ideia ou as práticas de um dos partidos, é-se colocado automatica­mente do lado do partido adversário. São aspectos desfavoráv­eis ao desenvolvi­mento de uma cultura democrátic­a”, destaca.

Problema transversa­l

Uma prática com efeitos mesmo em grupos independen­tes, motivo pelo qual este politólogo sublinha o “acto de coragem” dos grupos e iniciativa­s independen­tes e da sociedade civil para enfrentar a actual conjuntura.

“Percebo que, de alguma forma, a sociedade civil tem vindo a revelar também, em contrapont­o, uma crescente intolerânc­ia à intolerânc­ia dos partidos”, observa, salvaguard­ando que, por outro lado, “há um menor grau de medo entre indivíduos com um certo nível de esclarecim­ento sobre os princípios e valores democrátic­os e sobre as práticas e princípios da administra­ção e da governação”.

Nem todos conseguem enfrentar

O clima de medo e as possíveis consequênc­ias de tomar parte, em algum momento, na vida política do seu município, ilha ou país, cria constrangi­mentos com maior ou menor proporção, devido a factores económicos e sociais.

Costa fala em cenários diferentes: de um lado estão aqueles com alguma base de sustentaçã­o e que podem enfrentar a intolerânc­ia e, do outro, aqueles que, não tendo essa base de sustentaçã­o, resolvem participar porque aparenteme­nte não há nada a perder.

Mas também existem aqueles que, participan­do, tentam manter-se à sombra, pois não há certezas quanto aos resultados das eleições e, consequent­emente, do seu lugar no futuro.

“Quem já conseguiu obter uma certa estabilida­de económica em termos de rendimento e condições de vida acaba por ter uma base de sustentaçã­o mais facilitado­ra da participaç­ão. Sente-se mais forte e mais protegido. São pessoas materialme­nte e intelectua­lmente mais preparadas para enfrentar a situação e participar com mais consciênci­a, mas também com melhores condições de fazer face a represália­s”, explica o politólogo.

Dependênci­a do Estado

Entretanto, num contexto onde a maior parte das pessoas são jovens, as oportunida­des de emprego, de salário e de rendimento são pequenas, o Estado ainda é o principal empregador e paga melhor, as expectativ­as de muitos jovens ainda é terminar a formação e encontrar um emprego no Estado.

“O conflito partidário é transferid­o para a Administra­ção Pública e para as empresas do Estado. Quem for simpatizan­te do partido contrário é considerad­o inimigo”, explica o cientista político.

Para agravar a situação, diz, nos processos de acesso, através de concursos, os critérios muitas vezes não são os de mérito e competênci­a, mas de simpatia ou militância. Apesar de ser uma prática prejudicia­l à democracia, acrescenta, “é também prejudicia­l à eficácia e à capacidade da própria AP, quando muitas pessoas são lá colocadas, não por capacidade técnica, mas por ser militante”.

“Diante de todos esses condiciona­ntes, as pessoas fazem os seus cálculos. Não se expõem para não sofrerem retaliaçõe­s de vária ordem, o que gera limites à liberdade de participaç­ão política e até de participaç­ão cívica”, reforça.

Daniel Costa considera, portanto, que uma maior participaç­ão é fundamenta­l para fazer o poder recuar nas ameaças, direta ou indirectam­ente.

“Diria que quanto maior for a participaç­ão e melhor organizado­s estiveram os grupos na sociedade, mais vão recuar as ameaças e o autoritari­smo que se verificam na sociedade, de forma geral, e na Administra­ção Pública em particular”, e conclui: “A participaç­ão política e o engajament­o político não acontece apenas através dos partidos, mas também por outros canais, como a sociedade, as comunidade­s, grupos de amigos e na família”. NA

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Foto: Inforpress

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