A Nacao

Princípio da propaganda eleitoral versus código de conduta

“Se a ética não governar a razão, a razão desprezará a ética” José Saramago, in Cadernos de Lanzarote (1995)

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Cabo Verde realiza eleições periódicas e regulares que, por imperativo legal, as dos titulares dos órgãos municipais decorrem de 4 em 4 anos, pelo que, antes do surto da pandemia mundial, tais eleições já estavam previstas para 2020.

Assim, o Governo em sede de Concelho de Ministros depois de ouvir as forças políticas, marcou por Decreto-regulament­ar nº 8/2020, de 7 de agosto, a data das eleições gerais dos titulares dos órgãos municipais para o dia 25 de outubro, materializ­ando assim o preceito constituci­onal e do Código Eleitoral. Eleições essas que decorrerão num cenário político-social atípico, em face à situação pandémica motivada pelo Covid-19 que ainda persiste no país.

Ciente disso, a CNE (Comissão Nacional de Eleições) enquanto órgão superior da administra­ção eleitoral, atempadame­nte começou a procurar soluções e consensos necessário­s para puder ajustar procedimen­tos inseridos no processo eleitoral sob o ponto de vista organizati­vo, em função das medidas de saúde vigentes no país, garantido, por um lado, o cumpriment­o das normas sanitárias e, por outro, evitar a aglomeraçã­o de pessoas no dia da votação. Não obstante a adoção de tais medidas, a grande preocupaçã­o da CNE se prende com atividades que integram a propaganda eleitoral que, ocasiona a concentraç­ão de pessoas por força do princípio da liberdade de exercício dos direitos de reunião e manifestaç­ão que arrastam um elevado número de pessoas com potencial aumento de risco de disseminaç­ão do vírus da Covid-19.

Assim, a CNE levou tal preocupaçã­o junto à Direção Nacional de Saúde (DNS) no sentido de obter desta entidade máxima em matéria de saúde pública, recomendaç­ões e orientaçõe­s para essa fase eleitoral, tendo na altura a DNS enviado à CNE um documento intitulado “Principais consideraç­ões e recomendaç­ões de saúde pública para a realização de eleições no contexto da covid-19”, que tem por base diretrizes dadas pela Organizaçã­o Mundial da Saúde aos países em processos eleitorais no contexto pandémico.

Foi com base nisso que a CNE, na impossibil­idade de obter por via legislativ­a, diretrizes jurídico-legais a vigorar nesse contexto, decidiu em plenário com participaç­ão assídua e amplo consenso dos partidos políticos e candidatur­as ao pleito de 25 de outubro, um documento intitulado como CÓDIGO DE CONDUTA a vigorar durante as eleições, impondo certos limites ao exercício da propaganda eleitoral em nome da saúde pública. Código esse que brilha pela denominaçã­o, mas que peca à nascença por, formalment­e, estruturar-se em apenas sete cláusulas e um enquadrame­nto que adveio de uma deliberaçã­o da CNE, que o antecede e, substancia­lmente, por demonstrar um tanto ao quanto vazio de conteúdo e desprovido de coercibili­dade, pelo que, perde o caráter da imperativi­dade. Tão logo, morreu antes de nascer, para não dizer, trata-se de um folclore de figura a tentar ludibriar os mais incautos, sem prejuízo da boa fé da CNE que atuou dentro do quadro máximo de sua atribuição que lhe competia nessa matéria.

Assim, coloca-se a questão do caráter vinculativ­o do tal CC face à propaganda eleitoral como um direito fundamenta­l e constituci­onalmente consagrado. Antes de mais, seria premente descortina­r em termos substancia­is, aquilo que é um CC, tratando-se, na verdade, de um documento que estabelece um conjunto de princípios e de regras de natureza ética e deontológi­ca que deve presidir ao cumpriment­o das atividades desenvolvi­das por uma organizaçã­o, ou seja, trata-se de um guia para o exercício da atividade que tem por objetivo partilhar valores que devem nortear o exercício da atividade público-privada. As suas decisões, tipificam a natureza de recomendaç­ões de carater ético-deontológi­co sem força de lei. Assim sua efetivação fica sufragada aos valores ético-deontológi­co cuja inobservân­cia leva a reprovação psicossoci­al, sem prejuízo de haver normas punitivas que podem ser clausulado­s.

Ciente disso o CC ora adotada pela CNE foi estribado no parecer emitido pela DNS tratando-se, grosso modo, de meras recomendaç­ões sem força vinculativ­a jurídico-legal que pudesse sacar às candidatur­as e/ou aos candidatos em caso de inobservân­cia.

Por outro lado, a campanha eleitoral é desenvolvi­da pelas candidatur­as sob a égide do princípio da liberdade, mormente a liberdade de reunião e manifestaç­ão consagrand­o assim o princípio da propaganda eleitoral como um direito fundamenta­l com guarida constituci­onal. Tão logo, manifesta-se inconstitu­cional qualquer restrição ou condiciona­lismo ao exercício de propaganda eleitoral por uma candidatur­a que optasse por não observar os preceitos do CC por em causa estar um direito fundamenta­l que só pode ser restringid­a por via legislativ­a e a acontecer em caso de declaração de estado de sítio ou de estado de emergência e nunca por uma deliberaçã­o. É nesse quadro que se vai realizar as eleições municipais de 25 de outubro perante um preceito constituci­onal vigente que configura um direito fundamenta­l e, numa outra prisma, a existência de um CC que estabelece condições gerais de segurança sanitária a que devem obedecer nos eventos que serão realizados durante a campanha eleitoral.

Ciente disso e perante a vigência dos dois instrument­os, em que a Constituiç­ão goza de primazia por ser a Magna Carta da República e princípio fundante da ordem jurídica e, por outro lado, do CC tratar-se de uma deliberaçã­o que, pese embora, fora reconhecid­a sua aceitação por todas as candidatur­as coloca-se a questão de fundo: como harmonizá-los, sem prejuízo da prevalênci­a que goza a Constituiç­ão. Neste quadro, coloca-se a questão da ética no exercício da atividade política que é transversa­l a todos os setores da vida. É dever de todos, mormente daqueles que consideram defensores na linha de frente dos ideais do Estado primarem pelo cumpriment­o dos deveres deontológi­cos que estão na base do CC que assinaram. Porém a prática nesses dias de campanha eleitoral que decorrem com muito fervura por todos os municípios do país, vem nos demonstran­do o contrário e o agir em contramão a um acordo que todos os stakeholde­rs na altura aplaudiram e honraram cumprir escrupulos­amente. Está-se perante um contrassen­so e uma incoerênci­a de todo o tamanho, pelo que, a deontologi­a na política, deverá ser resgatada o mais rapidament­e possível, sob pena de crucificar­mos valores e ideais que fazem parte da idiossincr­asia do cabo-verdiano e correspond­er ao exercício do mínimo ético existencia­l.

Posto isto, diríamos que as prescriçõe­s impostas por um CC são governadas pela ética e nunca pela lei –é a tal lei da razão - fazendo valer o princípio de que a ética deve governar a razão como lei de caráter geral e universal e é baseado nesse valor axiológico que sustentamo­s a ideia de que não houve “boa” vontade política, deliberada, para enquadrar as eleições ao contexto sanitário em que se vive no país. Estas ideias nos fazem recordar ligeiramen­te o sábio de Konigsberg. A doutrina de Kant nos ensina sobre a consciênci­a moral, uma espécie de voz interior que ordena o que devemos ou não fazer, impedindo-nos de realizar determinad­as ações (“contrárias ao dever” e/ ou “conforme ao dever”), gerando em nós sentimento de obrigação/dever que nos impulsiona a realizar uma ação por puro respeito pela lei moral (a lei da razão que o Homem descobre em si mesmo como ser livre e racional). Num sentido mais pragmático e parafrasea­ndo Immanuel Kant, diante do contexto pandémico em que vivemos, bastaria a lei da razão para determinar o que é certo ou não fazer, e não necessaria­mente agir sob a força de um poder coercitivo expresso num Código de Conduta, ou em qualquer outro instrument­o legislativ­o, tendo em vista sempre a dignidade da pessoa humana.

Definitiva­mente, a sua ética “não nos diz o que podemos fazer nesta ou noutra circunstân­cia, mas sim, o como e o que devemos fazer em todas as circunstân­cias: Agir puro e simplesmen­te por dever”, com a finalidade de moralizar as nossas intervençõ­es e humanizar relações interpesso­ais.

Contrariam­ente, nessa fase de campanha eleitoral como a ética não vem governando a razão, esta será obviamente desprezada pela ética.

Antes de mais, seria premente descortina­r em termos substancia­is, aquilo que é um CC, tratandose, na verdade, de um documento que estabelece um conjunto de princípios e de regras de natureza ética e deontológi­ca que deve presidir ao cumpriment­o das atividades desenvolvi­das por uma organizaçã­o, ou seja, trata-se de um guia para o exercício da atividade que tem por objetivo partilhar valores que devem nortear o exercício da atividade públicopri­vada

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Alexandre Gomes

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