A Nacao

Uma ilha à beira do “colapso”

- João Almeida Medina

Mais de 26 mil pessoas, que dependem directa ou indirectam­ente do turismo na ilha do Sal, estão à míngua e muitas só se aguentam graças aos rendimento­s do lay-off. Mas já temem o fim desse mecanismo de compensaçã­o salarial, cuja validade vai até 31 deste mês, pois, tal deixará milhares de famílias sem qualquer rendimento. Diante disso, a Câmara do Turismo demonstra preocupaçã­o e faz previsões cautelosas.

Um ano depois da chegada da covid-19 ao país, o quadro social e económico da ilha Sal já pouco nada tem a ver como o panorama que antes tinha. As ruas desertas, hotéis, bares e restaurant­es vazios ilustram a desolação.

Sandra Reis, uma das três funcionári­as que trabalham na única loja que vende produtos exclusivam­ente made in Cabo Verde na pedonal de Santa Maria, demonstra apreensão de quem assiste as vendas despencare­m e teme perder o emprego.

Conta que numa “época normal”, antes da pandemia, por esta altura do ano costumava vender cerca de 10 mil escudos por dia em produtos aos turistas. Hoje mal consegue facturar mil escudos.

“Há dias que nós vendemos só 200 escudos. Dou graças ao meu patrão que nos mantém a trabalhar. Reduziu o nosso turno para quatro horas diárias, mas, ao menos, temos algo ao fim de mês. O problema é que se a situação não mudar, tudo fica difícil para nós, para o patrão e para os artesãos que nos fornecem os produtos. Já pedimos aos artesãos que não nos mandem mais produtos porque não os conseguimo­s vender”, explicita Sandra Reis.

Bastante mais desanimada mostra-se Marie Pierre, nascida em Dacar, filha de pais cabo-verdianos e que há 13 anos aluga equipament­os a turistas, vende voltas à ilha, postais e outros souvenires de Cabo Verde.

“Desânimo total”

“Venho agora para não ficar em casa. Só para ver, em três semanas vendi três postais. Nada mais, desânimo total. Nunca vi nada assim, nem a crise de 2008 afectou-nos tanto. Não sei até quando vou aguentar”.

Relatos idênticos repetem-se não só em Santa Maria como em outros pontos turísticos da ilha do Sal.

O gerente do espaço Buracona, que costumava receber mais de 600 turistas por dia no local, com picos de 900 pessoas/dia, disse manter ali aberto apenas por “teimosia e sentido de responsabi­lidade”.

Teixeira explica que nesses meses de pandemia recebem em média 50 pessoas por dia, a maioria nacionais, que não pagam nada para lá entrar.

Os estrangeir­os costumam pagar 5 euros na entrada para visitar esse ponto turístico – um dos mais badalados da ilha- e desde que deixaram de visitar o Sal, Teixeira perdeu a sua fonte de receita e teve de dispensar 52 dos 63 funcionári­os que empregava. Mantém 11 a trabalhar, mas não sabe até quando.

Buracona tem recebido alguns turistas estrangeir­os às segundas e terças, sobretudo polacos e checos que são os poucos que visitam Sal por esta altura. Não passam de 200 a 300.

“Mas são tão poucos que a receita nem dá para pagar as despesas com o combustíve­l que gastamos aqui”, expressa Teixeira.

Taxistas rondam por “lay-off de 5%”

Emerson, taxistas de Santo Antão que há 18 anos escolheu a ilha do Sal para viver, diz-se combalido com a queda brusca de fretes nos últimos meses.

“Custumo dizer que estamos numa espécie de lay-off de 5%. Ou seja, rondamos para ganhar 5% daquilo que ganhavámos antes”, afirma Emerson, que trabalha por conta própria. Ele consegue manter-se porque tem alguns clientes que lhe dão um ou outro frete.

Situação pior está Railson Fortes. Salense de 35 anos, costumava receber um salário a rondar 30 mil escudos por mês, mas no último o seu rendimento não chegou a 10 mil escudos.

“A coisa está tão má que o patrão já nem consegue pagar-me o salário. Então, nós decidimos que eu deveria trabalhar e no fim do mês dividimos o rendimento por três partes: uma para mim, outra para as despesas do carro e a restante ficaria para ele. Ao fim das contas, fiquei com 9 mil e 600 escudos”. Railson esboça um sorriso amargo para disfarçar o desânimo.

Alcindo, taxista que adquiriu o próprio carro há menos de um ano, mostra-se apreensivo porque, tal como os colegas, viu tudo despencar.

“Antes, num dia podia arrecadar 10 mil escudos ou mais, agora se conseguir 2 mil já me dou por satisfeito”, concretiza esse santantone­nse da Ribeira Grande. Teme agora não ter meios para amortizar a dívida no banco e perder a única fonte de renda, o seu táxi. Por ora, faz uso da moratória para pendurar o crédito.

Elevada dependênci­a do turismo

Não há um taxista que não reclame da má situação do Sal. Como dizem, na ilha, quando não há turista, tudo pára. Aliás, Sal está a sofrer as consequênc­ias de o facto da economia local ter elevada dependênci­a de único sector: turismo.

Por isso, quando os turistas pararam de vir, cerca de 11 mil de pessoas, quase um terço dos 35 mil residentes na ilha até 2020, arrumaram os seus pertences e rumaram a ilhas, sobretudo São Vicente, Santo Antão e São Nicolau.

Não há como pagar a renda no Sal, onde um quarto pode custar até 20 mil escudos por mês, quando os membros da família perdem os salários ou passam a receber 70% por conta do lay-off.

Com o passar dos meses, sobretudo em Dezembro, quando os voos charters começaram a trazer turistas da Polónia e da República Checa, alguns regressara­m ao Sal por convocatór­ia dos seus patrões.

Mas há quem não arrisque. Preferem manter nas ilhas onde conseguem uma vaga na agricultur­a ou outro sector. Muitos regressara­m ao campo. A vida no Sal é muito cara para se aventurar, sem que haja sinais claros de que o turismo voltou a alguma normalidad­e.

Muita apreensão

Estima-se que mais de 12 mil trabalhado­res, cujos empregos estavam diretament­e ligados ao turismo, foram afetados pela crise no sector. No total, são mais 26 mil empregos directos e indirectos que ficam em causa porque os turistas sumiram com a pandemia e tardam em dar sinais efectivos de que regressam.

Tanto assim é que a taxa de ocupação nos hotéis neste período em que os europeus costumam buscar o clima bom da ilha para fugir ao inverno rigoroso não passa de 10 a 30 %. Em boa parte dos estabeleci­mentos, a cada 10 reservas, sete ou mais são cancelados.

Em finais de Fevereiro, muitos nem sequer arriscavam uma previsão da chegada efectiva e continuada dos turistas à ilha. Outros falam em Outubro ou Novembro, dependendo do nível de vacinação e do modo como a pandemia afectar os europeus de rendimento médio ou baixo, que responde por mais de 95% da procura turística em Cabo Verde.

Diante desse quadro, é quase unanimidad­e na ilha de que se em finais deste mês não houver a renovação do lay-off especial para o turismo, haverá problemas sociais graves no Sal.

As famílias vão perder as fontes de renda. Milhares de casais que trabalham nos hotéis devem ficar à míngua e já há sinais de que muitos passam por dificuldad­es tremendas. Recorrem a pequenas lojas de pessoas próximas para pedir fiado na esperança de que dias melhores podem vir. O problema é que não se vislumbram esses dias e os donos das mercearias estão, também eles, a ficar sufocados.

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Sandra Reis
Marie Pierre Sandra Reis

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