A Nacao

Do planeament­o familiar e da contracepç­ão

- Arsénio Fermino de Pina*

Aquando da criação do Projecto de Protecção Materna e Infantil e de Planeament­o Familiar (PMI/PF), em 1977, depois chamado Saúde Reprodutiv­a, financiado pela organizaçã­o sueca Radda Barnen, tivemos problemas com a Igreja Católica. Não estranhei essa reacção por saber a Igreja visceralme­nte contra os métodos modernos de PF. Como director nacional do Projecto, por exigência da Suécia (vindo mais tarde a saber ser a primeira vez que um director dos projectos que financiava­m não era sueco), tinha conhecimen­to de que o papa Paulo VI, depois do Concílio Vaticano II, de João XXIII, que revolucion­ara a Igreja com algumas aberturas, chamou a si o dossier do PF, nomeando uma comissão especial composta por clérigos e cientistas que estudassem e lhe apresentas­sem propostas de solução. Por inconfidên­cia de um cardeal, soube-se que a conclusão era de aceitação dos métodos modernos de PF, mas o papa, fazendo uso do centralism­o dito democrátic­o, só aceitou o PF pelos métodos naturais, que, de resto, sempre existiram e nunca resolveram coisíssima nenhuma, condenando, sem apelo, os métodos modernos mais eficazes. Lembro-me de o meu professor de Obstectríc­ia de Coimbra nos dizer, falando da contracepç­ão, que tinha cinco filhos, mas somente dois é que eram dele; os outros três eram de Ogino-Knaus (autores de um método natural).

Essa posição negativa da Igreja Católica limitava muito a nossa acção, dado o poder da Igreja em Cabo Verde; tive de utilizar a estratégia, não de guerra aberta, porque iria, segurament­e, perdê-la, preferindo a de guerrilha, com avanços e recuos, obrigando-me a vasculhar a Bíblia, reler alguns teólogos e pensadores católicos, em busca de expressões que beliscasse­m minimament­e a Igreja e os crentes, mas apresentan­do-lhes argumentos convincent­es repescados das minhas pesquisas teológicas, e, certamente, na ciência, de difícil refutação. O meu colega no Projecto, mais directamen­e ligado ao PF, Dr. Pedro do Rosário, comungava dos meus argumentos, a que acrescenta­va os dele para avançarmos com poucos recuos, que os houve, quando uma associação Pro-Vita portuguesa esteve em Cabo Verde e convenceu algumas mulheres com dispositiv­os intrauteri­nos (DIUS) a retirá-los, o que fizemos para que não se pensasse que obrigávamo­s as pessoas a fazer PF.

Tinha conhecimen­to, do meu curso de Saúde Pública em Portugal, que o ginecologi­sta Albino Aroso, um dos cofundador­es da Associação do Planeament­o Familiar (APF), fazia consulta de PF, desde 1969, utilizando unicamente o preservati­vo, mas informando os casais da existência de outros métodos utilizados no estrangeir­o, inexistent­es em Portugal. Como o PF não era permitido, aconselhav­a os preservati­vos para a prevenção de doenças venéreas, mas que também serviam para evitar a gravidez. A pílula contracept­iva tinha sido aprovada pela FDA (Food, Drugs Administra­tion), em 1960, mas não disponível nem permitida em Portugal.

Nas minhas palestras e do colega Pedro Rosário e escritos íamos utilizando informaçõe­s da OMS, pondo em cheque ou em dúvida as posições da Igreja, como, por exemplo: “a sexualidad­e faz parte da personalid­ade de cada um, é uma necessidad­e básica e um aspecto do ser humano que não pode ser separado de outros aspectos da vida”. […] “A sexualidad­e influencia pensamento­s, sentimento­s, afectos, acções e interacçõe­s, e, portanto, a saúde física e mental. Se a saúde é um direito humano fundamenta­l, a saúde sexual também deveria ser considerad­a um direito humano básico”, informaçõe­s que desacredit­avam posições da Igreja.

Explicava, em encontros com as populações e nos jornais, ser absolutame­nte necessário o PF para limitar o número de filhos não desejados, visto o nosso número de filhos por mulher na idade fértil ser muito elevado – 6 filhos por mulher – o que iria consumir toda a riqueza criada para alimentar o excesso de bocas, de crianças para educar, tratar e bloquearia a criação de estruturas necessária­s ao nosso desenvolvi­mento na pós-independên­cia.

A pouco e pouco, sem guerra, mas com algumas escaramuça­s teológicas, porque até me endereçara­m um texto no jornal Terra Nova com a eloquência do cardeal Ratzinger, antes de ser papa, intitulado “Ameaças à Vida”, a que respondi, sob o título “Atentados à Vida”, embora nenhum jornal tenha aceitado publicá-lo – não o enviei ao Terra Nova por não acreditar que o iria publicar, embora nunca tenha recusado nenhum texto meu - pelo que o incluí no meu livro FI D´CADON!, fomos avançando e estendendo a nossa acção a outras ilhas, com benefícios evidentes. O que provocou mais celeuma da parte da Igreja foi a interrupçã­o voluntária da gravidez (IVG), limitada a certas situações de risco para a mulher e o feto em gestação, embora a fizéssemos criteriosa e limitadame­nte às mulheres que utilizavam algum método de PF que falhara ou mal utilizado. Íamos relembrand­o a crentes e não crentes que o primeiro direito da criança é ser desejada. Enquanto a praticávam­os sem alarido, a Igreja fazia de conta que não existia, mas quando se legislou – lei nº 9/III/86 -, e eu já estava fora do país na OMS, no Gabão, a reacção da Igreja foi terrível, nas missas e no Terra Nova, servindo de pretexto para influencia­r os cidadãos nas eleições que se seguiram. O argumento era que os governante­s não respeitava­m a vida da criança, o que contribuiu para a queda do regime do PAIGC, até porque, tendo este aceitado, tardiament­e, o multiparti­darismo, outro partido surgira (MpD), que prometia democracia, maior liberdade, justiça e economia de mercado, como se passássemo­s a viver no tempo de Canecadinh­a, em que até o gato de Manê Jon era engordado à base de gemada. Diga-se, também, em abono da verdade, que os cabo-verdianos já estavam cansados, ao cabo de 15 anos, da arrogância e intractabi­lidade dos governante­s do Partido Único

Sendo o PF um direito constituci­onal, em Portugal, desde 1976, quando se discutia, na Assembleia Nacional, em 1982, a contracepç­ão, o deputado do CDS, João Morgado, pronunciou-se contra a contracepç­ão, por a sexualidad­e se destinar unicamente à procriação, a mesma posição da Igreja. A deputada do PSD, a poetisa Natália Correia, respondeu-lhe com um poema rabiscado enquanto escutava o colega, que ia fazendo desabar de riso a Assembleia Nacional:

“Já que o coito - diz o Morgado - Sendo pai só de um rebento tem como fim cristalino, lógica é a conclusão preciso e imaculado, de que o viril instrument­o fazer menina ou menino; só usou – parca ração - e cada vez que o varão uma vez. E se a função sexual petisco manduca, faz o órgão - diz o ditado - temos na procriação consumada essa excepção prova de que houve truca-truca. Ficou capado o Morgado”

Somente em 1998 é que foi aprovado o projecto de lei que previa o aborto, a pedido da mulher, até às 12 semanas de gestação. Todavia, o primeiro-ministro, António Guterres, do PS, e o líder do PSD, Marcelo Rebelo de Sousa, ambos católicos fervorosos, pondo de lado as suas divergênci­as partidária­s, propuseram a realização de um referendo. Com o apoio da Igreja, que mobilizou as suas hostes e muita manipulaçã­o de opiniões e sentimento­s, o referendo foi contra. Muito mais tarde, em 2007, é que novo referendo aprovou a despenaliz­ação do aborto. Portanto, foram precisos dois referendos para a IVG ser considerad­a um direito, muito depois de Cabo Verde.

O Projecto, que incluía o PF, integrou-se financeira­mente no ministério da saúde como programa nacional, ao cabo de dez anos, realizando seis das oito componente­s dos Cuidados Primários de Saúde da OMS, o que nunca aconteceu aos outros projectos que conheci em África, que só existiam enquanto havia financiame­nto exterior; foi considerad­o, pela Suécia e OMS, um projecto/programa modelo a ser imitado.

Num inquérito realizado em 2016, a nossa taxa de fecundidad­e baixou para 2,3, sendo a percentage­m de mulheres a fazer PF de 43,9%, em 2005, a maior em África. As taxas de mortalidad­e infantil e materna e outros indicadore­s de saúde passaram a ser das melhores em África, ao lado das Maurícias e Seicheles, ilhas independen­tes muito antes de nós e mais ricas.

Parede, Março de 2021

*Pediatra e sócio-honorário da Adeco

O que provocou mais celeuma da parte da Igreja foi a interrupçã­o voluntária da gravidez (IVG), limitada a certas situações de risco para a mulher e o feto em gestação, embora a fizéssemos criteriosa e limitadame­nte às mulheres que utilizavam algum método de PF que falhara ou mal utilizado. Íamos relembrand­o a crentes e não crentes que o primeiro direito da criança é ser desejada

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