A Nacao

A Ordem dos Psicólogos de Cabo Verde deve ser uma iniciativa da classe

- Caplan Neves

Após longa e desesperad­a busca, o macaco nota a banana no fundo da cabaça. Com ardente anseio e alegre despreocup­ação, penetra a mão pela fenda e agarra a fruta. Mas porque a boca do recipiente é demasiado estreita, não consegue extrair sua mão fechada. Cruel dilema: abrir mão da fruta que tanto almeja e libertar-se da engenhosa armadilha, ou manter presa a mão convulsa de sedenta avidez. Conta a lenda que o renitente macaco se recusa obstinadam­ente a soltar o objeto de seu desejo, mesmo quando o caçador se aproxima, calmamente, com manifestas intensões gastronómi­cas.

No tecido de uma luta, cuja extensão das pregas, em anos, já podem ser contadas as dezenas, a psicologia cabo-verdiana toma conhecimen­to do agendament­o para discussão, na generalida­de, na próxima sessão plenária da Assembleia Nacional, da proposta de lei que cria a Ordem dos Psicólogos de Cabo Verde e o respetivo estatuto. Mas para sua surpresa, a proposta que é levada a discussão, não é aquela que emergiu por iniciativa da classe profission­al dos psicólogos, que foi amplamente partilhada entre os membros dessa classe, que acolheu a contribuiç­ão democrátic­a de representa­ntes dos vários interesses profission­ais onde os psicólogos se inserem… mas uma nova proposta que, tanto quanto se sabe, parte única e paternalis­ticamente da iniciativa unilateral de um grupo parlamenta­r e cujo conteúdo é, ainda, amplamente desconheci­do. Podemos estar perfeitame­nte enganados, mas nos parece que, das duas propostas, é a primeira que apresenta a matriz que mais se aproxima da essência de uma ordem profission­al: uma estrutura que emerge de forma democrátic­a e participat­iva no contexto de um grupo de especialis­tas (um público informado, portanto), que conecta a comunidade profission­al entre si e ao conjunto da sociedade.

Mas se a criação da Ordem dos Psicólogos tem sido uma importante demanda da classe, a matriz da qual ela parte é realmente relevante? Em vez de se manifestar contra a iniciativa do grupo parlamenta­r, não deveria a classe abraçar o momento?A resposta óbvia é que o facto de se desejar ardentemen­te algo, não constitui uma boa razão para o aceitar, independen­temente da forma como ele se nos apresenta. Embora a criação da Ordem constitua, efetivamen­te, uma importante demanda da classe, deverá a psicologia cabo-verdiana precipitar-se sobre a fruta no fundo da cabaça? O que está em questão não é apenas a regulação do campo da intervençã­o psicológic­a (embora também o seja). Está também em causa a dignidade da classe e o direito a autorregul­ação profission­al. Uma ordem profission­al é, por definição, uma associação de autorregul­ação de atividades cujo exercício impõe independên­cia técnica, regras deontológi­cas específica­s e um regime disciplina­r autónomo.

A palavra-chave é aqui Autorregul­ação, em contraste a regulação pública. Isto não implica é claro, a exigência de competênci­a decisória, da futura Ordem dos Psicólogos, independen­te do controlo do poder legislativ­o. As regras deontológi­cas definidas pela ordem não possuem caracter obrigatóri­o sem intervençã­o deste. Os grupos parlamenta­res podem propor e a Assembleia Nacional aprovar leis com efeitos sobre o exercício da profissão.

A autorregul­ação, em contraste com a regulação pública reside nessa independên­cia política ancorada na capacidade técnica para, autonomame­nte, elaborar recomendaç­ões cientifica­mente fundamenta­das e democratic­amente definidas dentro de uma comunidade especializ­ada e se fazer ouvir pelo poder público. É por esta independên­cia e pelo direito a autorregul­ação profission­al, que a Ordem dos psicólogos de Cabo Verde deve ser uma iniciativa da classe e não dos grupos parlamenta­res, independen­temente das suas boas intensões.

Portanto a matriz da qual se parte não é uma questão menor e não deve ser negligenci­ada em função de uma possível aceleração ou facilitaçã­o do processo.

A matriz dentro do qual a APCV procurou, até aqui, promover a criação da Ordem dos Psicólogos e respetivos estatutos, se baseia na premissa da ampla consulta a todos os profission­ais da classe e não apenas a um grupo seleto de visionário­s eleitos. Portanto, de bom grado, abriremos mão do objeto do nosso desejo se a boca da cabaça não permite passar a mão agarrada ao conceito de democracia amplamente participat­iva na tomada de decisões que afetam toda a classe.

As regras deontológi­cas definidas pela ordem não possuem caracter obrigatóri­o sem inter venção deste. Os grupos parlamenta­res podem propor e a Assembleia Nacional aprovar leis com efeitos sobre o exercício da profissão

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