A Nacao

O fenómeno da violência coletiva na cidade da Praia

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Numa comunicaçã­o proferida em 2014, no terceiro fórum sobre segurança urbana organizada pela CMP, afirmei que a violência é cíclica, que a sua explosão tem coincidido com o período eleitoral, que a sua mitigação só se consegue mediante intervençõ­es políticas bem estruturad­as e inclusivas construída­s de forma colaborati­va e que a suposta paz verificada é criminosa ou camuflada. Isto num ano em que embora os confrontos armados entre os grupos tinham dado sinais de abrandamen­to ficou registado como o mais mortífero (65 no país e 34 na Praia).

De lá para cá, o governo pós-2016 transita da governação da capital para a governação do país, declara ter uma solução para a criminalid­ade e promete a sua diminuição. Na ânsia de o conseguir confunde abusivamen­te (quiçá propositad­amente) diminuição da criminalid­ade com diminuição da participaç­ão do crime.

Entretanto, qualquer pesquisado­r minimament­e preparado sabe que a estatístic­a só tem algum significad­o sociológic­o quando cruzado com outras fontes (quantitati­vos e qualitativ­os), caso contrário tende a produzir um saber amputado, ou dito de outra forma, um saber fast food. Basta cruzar os dados de ocorrência­s criminais com os relatórios da justiça ou com outras fontes estatístic­as oficiais para se perceber isto.

O que o dado estatístic­o nos indica é que houve sim uma diminuição na participaç­ão dos crimes (e não a sua diminuição) porque cerca de metade da população deixou de participar dos crimes que são vítimas, não confia na justiça e não acredita que as forças de segurança realmente os protege.

As razões por detrás desta desconfian­ça e descrença não cabem neste texto. Para muitos, o que interessa mesmo são as razões da permanênci­a deste tipo de violência. Na maioria das vezes aparecem nas agendas do senso comum e são legitimada­s pelos empreended­ores da moral como estando associados à pobreza, à (des)organizaçã­o urbanístic­a, à desigualda­de económica, à crise de valores ou derivado daquela coisa que chamam de desestrutu­ração familiar. O que o campo de pesquisa foi-me mostrando é que não existe uma única causa da violência, mas uma conjugação de fatores estruturai­s que a originam e a fomentam, bem como fatores individuai­s que a facilitam.

Antes de mais é preciso salientar que em Cabo Verde, mais concretame­nte em Santiago (e não só), a violência endémica foi desde sempre promovida pelos morgados nas suas disputas de poder. Financiava­m e sustentava­m hordas de forros libertos (que se autointitu­laram emblematic­amente de badius) e gente escravizad­a armados e estes, pela sua situação de marginalid­ade e pela sua posição na hierarquia da estrutura social rural, era excelentes bodes. Tal violência coletiva foi violentame­nte domesticad­a nos finais do século XVIII, tendo regressado no período pós-democrátic­o no contexto urbano e intensific­ada a partir dos anos de 2000. Assim, dois pontos ressaltam: que é um equívoco a afirmação que este tipo de violência é inédito, visto que o que a historiogr­afia aponta é uma mudança contextual em termos territoria­l e a conjuntura sociopolít­ica; que o crime de colarinho branco nas ilhas tem já uma longa história, tem ligações com a governação e sempre foi organizado.

Compreende­r este fenómeno, portanto, é ter em consideraç­ão o seguinte: em primeiro lugar, que vivemos numa sociedade em que a estrutura de distribuiç­ão de oportunida­des e de sonhos é desigual (ou segregada); num contexto económico em processo de empobrecim­ento (não confundir com pobreza) e com marcas históricas de estigmatiz­ação, exclusão e marginaliz­ação de determinad­os grupos sociais; num contexto político de recuo de Estado (desde os anos de 1990) e por conseguint­e, parcial ou por vezes totalmente ausente, ora por incapacida­de ora por simples falta de interesse ou sensibilid­ade social; num contexto familiar sobreposto por dois modelos culturais opostos (formalment­e patriarcal, informalme­nte matrilinea­r) e marcado por um gritante défice de diálogo e de afetividad­e (transversa­l às classes), num contexto social assinalado por uma perda parcial de influência e referência moral, comunitári­a e estatal no controlo social.

Em segundo lugar, que os fatores citados criam as condições que podem ser fomentadas pelas seguintes dimensões mesosociai­s: que estarmos inseridos num contexto urbano com um nível de densidade bastante elevado propenso ao stress social e com tendência de reprodução das segregaçõe­s físicas e simbólicas do passado rural morgadio; numa sociedade assolada pela problemáti­ca da deportação (dos EUA, mas também da UE), cuja gestão não tem sido a melhor; num contexto identitári­o em crise que favorece a imitação, apropriaçã­o e reprodução de forma acrítica (mas com um alcance eficaz de atribuição de sentido histórico e racial) da cultura gangsta norte-americana; num contexto social assinalado pela socializaç­ão da violência e reprodução da cultura de hipermascu­linidade, através da qual se busca afirmação social; num contexto judicial marcado pela descrença generaliza­da devido ao sentimento de impunidade; num contexto político eleitoral mercantili­sta marcado por assédio partidário tóxico; num contexto cultural que favorece todo o tipo de tráfico, especialme­nte o narcotráfi­co, através do qual se busca uma afirmação pública.

Em terceiro lugar, que as situações referidas podem criar condições de violência quando o jovem se sente frustrado perante o desfasamen­to entre o prometido e o devido, bem como descrente em relação ao sistema social e político. Vê-se num enredo cultural em que há uma incapacida­de em expressar os sentimento­s de raiva e ressentime­nto apenas com palavras, num contexto civil de fácil acesso às armas (ao contrário das balas, senão estaríamos a falar de juvenicídi­o), encarada como extensão do falo, símbolo de potência e nova ferramenta de trabalho (ao contrário das balas, o que explica do porquê de não falarmos ainda de um juvenicídi­o) e num contexto de promoção do consumo abusivo e descontrol­ado do álcool e de drogas, percebidas simultanea­mente como vias de evasão e de afirmação social.

Como é evidente, uma situação do tipo clama por uma agenda pública orientada por uma política estruturan­te que articule prevenção, repressão e inclusão. Isto é, a implementa­ção de uma política de segurança assente num paradigma garantista, em que o Estado assume a função de buscar a maximizaçã­o social, utilizando o direito repressivo apenas e exclusivam­ente como o último caso. Não fazer isso é conduzir a uma paz criminosa ou camuflada, o que se tem observado na Praia entre os anos de 2008-10, 2013-14 e 2018-19. Momentos antes de mobilizaçõ­es violentas, em que contextos considerad­os sensíveis e suscetívei­s de explodirem a qualquer instante se mantêm sossegadas, visto a repressão não ter sido acompanhad­a de políticas inclusivas destes jovens e do meio onde se encontram inseridos.

A meu ver, o que se espera é menos desculpas pandémicas oportunist­as, menos retóricas de sermos os melhores em África e arredores, menos análises climatizad­as de salto alto em escritório­s sitiados no eixo centro-sul da cidade e mais ações com vista à construção de uma política pública de segurança a partir de uma abordagem colaborati­va e comunitári­a com ênfase na violência estrutural, política e simbólica. Uma estrutura gerida horizontal­mente por um conselho integrado por instituiçõ­es públicas (centrais e municipais) e organizaçõ­es sociais (não necessaria­mente juridicame­nte formalizad­as) de base comunitári­a (não confundir com colonizaçã­o comunitári­a de algumas ONG’s ou departamen­tos estatais exteriores à comunidade e promotores da mercantili­zação e exploração da pobreza). Ainda mais importante, que reconhece as organizaçõ­es de rua e os chamados street workers como agentes de mudança e elementos-chave a serem integrados num conselho consultivo de acompanham­ento do processo desde a sua discussão, passando pelo disgnóstic­o, reflexão, desenho, implementa­ção, até a sua avaliação.

Como é evidente, uma situação do tipo clama por uma agenda pública orientada por uma política estruturan­te que articule prevenção, repressão e inclusão. Isto é, a implementa­ção de uma política de segurança assente num paradigma garantista, em que o Estado assume a função de buscar a maximizaçã­o social, utilizando o direito repressivo apenas e exclusivam­ente como o último caso

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Redy Wilson Lima

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