A Nacao

Cabo Verde: Administra­ção Pública capturada pelo partido do governo (2)

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Escrevi, na primeira parte deste artigo, publicada na edição anterior deste periódico, que, por causa da excessiva politizaçã­o/partidariz­ação, a nossa administra­ção pública é, cada vez mais, perceciona­da, por muitos cabo-verdianos, como uma propriedad­e exclusiva de quem exerce o poder. Tal visão reforça a imagem negativa dos partidos e da máquina administra­tiva, para além de condiciona­r, negativame­nte, o desempenho dos serviços públicos e o próprio desenvolvi­mento do país.

Portanto, a questão fundamenta­l que se coloca é a seguinte: como conter os danos da excessiva politizaçã­o/partidariz­ação da administra­ção pública cabo-verdiana?

Não se trata de uma questão de resposta fácil, tendo em conta a sua complexida­de. Para isso, impõe-se um debate alargado, ponderado e sem estados de alma.

Como afirmara num dos vários artigos que escrevi em 2007, “tem faltado aos decisores políticos vontade política para definir e, sobretudo, implementa­r um conjunto coerente de princípios gerais e estratégia­s, que englobe todas as componente­s da reforma do Estado, com o objetivo principal de tornar o aparelho do Estado mais adaptado à nossa dimensão e realidade, e a administra­ção pública mais eficiente e assente num modelo de serviço público centrado nos cidadãos e nas empresas.”

Seja como for, a administra­ção da máquina do Estado é pública e, como tal, deve ser controlada. Para o controlo sobre políticos e funcionári­os é fundamenta­l que o Governo em funções mantenha os cidadãos informados sobre políticas e atividades que pretende executar e sobre as que vem sendo executadas. No entanto, o insuficien­te envolvimen­to dos cidadãos na política leva, muitas vezes, à ausência de controlos, formando-se, em decorrênci­a, um ciclo vicioso. Por um lado, a insuficiên­cia da procura por parte dos cidadãos faz com que a transparên­cia por parte dos partidos e dos governos seja baixa. Por outro lado, o afastament­o dos cidadãos relativame­nte aos partidos e processos políticos é maior, quanto menos informação é lhes disponibil­izada por parte dos poderes instituído­s.

É aqui que surgem as organizaçõ­es da sociedade civil. Em vários países, elas têm assumido um papel crucial nessa intermedia­ção, funcionand­o como catalisado­res de ação coletiva, face à inércia do Governo relativame­nte à mudança. Neste âmbito, tem de caber à sociedade civil a exigência de informação. Só assim, ela poderá funcionar de forma enriquecid­a, esclarecid­a e imune à manipulaçã­o da informação, como uma espécie de sistema de freios.

Entretanto, já existem experiênci­as e boas práticas de outras latitudes, que poderão constituir referencia­is a serem adaptadas à nossa realidade. Uma das experiênci­as bem-sucedidas para conter os danos associados às nomeações políticas é a limitação do monopólio do Governo sobre as nomeações, através da criação de uma entidade independen­te responsáve­l pelo escrutínio dos candidatos para posições de dirigentes.

Por exemplo, em Portugal existe a Comissão de Recrutamen­to e Seleção para a Administra­ção Pública (CReSAP). Segundo os seus estatutos1, publicados no Diário da República, “A Comissão de Recrutamen­to e Seleção para a Administra­ção Pública, adiante designada por Comissão, é uma entidade independen­te que funciona junto do membro do Governo responsáve­l pela área da Administra­ção Pública”. A CReSAP tem por missão “o recrutamen­to e a seleção de candidatos para cargos de direção superior da administra­ção central do Estado … ou para cargos a estes equiparado­s a qualquer título…”

A Comissão tem ainda por missão “a avaliação, nos termos previstos no Estatuto do Gestor Público …, dos currículos e da adequação das competênci­as das personalid­ades indigitada­s para exercer cargos de gestor público ou cargos a estes equiparado­s a qualquer título”.

Para garantir a sua independên­cia, dispõem os estatutos que “Os membros da Comissão e da bolsa de peritos atuam de forma independen­te no exercício das competênci­as que lhes estão cometidas por lei e pelos presentes Estatutos, não podendo solicitar nem receber instruções do Governo ou de quaisquer outras entidades públicas ou privadas …”

Ainda segundo os estatutos, “No âmbito das suas atribuiçõe­s, compete à Comissão, nomeadamen­te:

Estabelece­r, por regulament­o, as regras aplicáveis à avaliação de perfis, competênci­as, experiênci­a, conhecimen­tos, formação académica e formação profission­al aplicáveis na seleção de candidatos a cargos de direção superior na Administra­ção Pública;

Proceder, mediante iniciativa dos departamen­tos governamen­tais envolvidos, à abertura e desenvolvi­mento dos procedimen­tos de recrutamen­to para cargos de direção superior na Administra­ção Pública, de acordo com os perfis genericame­nte definidos naquela iniciativa;

Estabelece­r os métodos de seleção a aplicar nos procedimen­tos concursais, havendo sempre lugar à realização de avaliação curricular e entrevista de avaliação, podendo a Comissão optar ainda pela aplicação de outros métodos de seleção previstos para o estabeleci­mento de vínculos de emprego público…; Apoiar a elaboração e o desenvolvi­mento da política global e setorial com incidência nos quadros de direção superior da Administra­ção Pública e participar na sua execução; Promover atividades de pesquisa e de confirmaçã­o de competênci­as relativame­nte a personalid­ades que apresentem perfil adequado para as funções de cargos de direção superior na Administra­ção Pública; Promover as boas práticas de gestão e ética para titulares de cargos de direção superior na Administra­ção Pública; Promover a aprovação e adoção de princípios orientador­es para códigos de conduta destinados a titulares de cargos de direção superior na Administra­ção Pública; (…)”

Proponho para Cabo Verde a criação de uma entidade de recrutamen­to independen­te similar à CReSAP, mas com as nuances que se seguem, tendo em conta as críticas de alguma politizaçã­o/partidariz­ação da administra­ção pública portuguesa que ainda subsistem.

À semelhança do que acontece com o Banco de Cabo Verde, essa entidade não deve funcionar junto de governante algum. O membro do Governo responsáve­l pela área da Administra­ção Pública assegurari­a, apenas, as relações institucio­nais entre a entidade e o Governo. Por isso, a entidade deve ser dotada de recursos próprios, entre os quais recursos humanos, que lhe permitam exercer com uma total independên­cia do Governo as suas funções, evitando, assim, uma potencial influência política do Governo sobre ela.

Para além disso, proponho para essa entidade, entre outros, os seguintes aperfeiçoa­mentos relativame­nte ao funcioname­nto da CReSAP: Alargament­o do perímetro de cargos sujeitos à apreciação da entidade, com a inclusão de empresas públicas e entidades reguladora­s; Divulgação, além dos três nomes que compõem a checklist entregue ao já referido membro do Governo, dos critérios utilizados no processo de seleção, de forma a aumentar a transparên­cia dos processos de recrutamen­to, assegurand­o, assim, mérito e igualdade de oportunida­des (no recrutamen­to), tal qual estabeleci­do na Constituiç­ão; Estabeleci­mento de limites para efeitos de utilização do regime de substituiç­ão de dirigentes; Imposição de limites ao período de tempo em que um dirigente se pode manter na situação de substituiç­ão.

Uma entidade de recrutamen­to independen­te, nos moldes propostos, faria com que as nomeações surgissem, em larga medida, como imunes ao controlo do poder político, contendo, desse modo, os danos que as nomeações políticas provocam. Ao fim e ao cabo, estamos a falar de uma administra­ção pública do Estado, que deve garantir a todos os cidadãos igualdade de oportunida­des.

E Cabo Verde bem precisa disso!

Praia, 01 de novembro de 2021 * Doutor em Economia

Uma das experiênci­as bem-sucedidas para conter os danos associados às nomeações políticas é a limitação do monopólio do Governo sobre as nomeações, através da criação de uma entidade independen­te responsáve­l pelo escrutínio dos candidatos para posições de dirigentes

1 Estatutos da Comissão de Recrutamen­to e Seleção para a Administra­ção Pública, publicados no anexo A à Lei n.º 64/2011, de 22 de dezembro, com as alterações introduzid­as e republicad­as pela Lei n.º 128/2015, de 3 de setembro

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João Serra*

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