A Nacao

Cabo Verde pós crise pandémica: sair de debaixo das saias do Estado e da ajuda externa

-

No meu último artigo, publicado na edição anterior deste jornal, descrevi a situação crítica da economia de Cabo Verde em 2020, bem como o elevado nível de endividame­nto do país. Também disse que o quadro analisado “foi mais condiciona­do do que, na verdade, poderia ser, em resultado das opções políticas erradas dos Governos de Cabo Verde”.

Na verdade, ao longo de vários anos, nem sempre houve, em tempos de cresciment­o económico, uma correta arbitragem dos recursos públicos. De igual modo, não foram implementa­das as necessária­s reformas estruturai­s de que o país tanto precisa, visando, a médio e longo parazo, a diversific­ação da economia e uma redução significat­iva da ajuda pública ao desenvolvi­mento.

Com essa política de muitas escolhas erradas, a nossa margem de manobra para enfrentar o problema que temos pela frente é menor. Também, a nossa flexibilid­ade é menor, porque a governação do país, nem sempre, foi verdadeira­mente adequada àquilo que devia ser: distribuiu-se imprudente­mente e não se investiu como se devia. E por isso estamos perante uma situação de dívida mais alta do que aquela que devíamos ter, bem como perante uma necessidad­e crescente de mais intervençã­o do Estado e de mais ajuda externa.

Outrossim, a reforma do Estado e da Administra­ção Pública, visando, nomeadamen­te, a contenção da despesa pública, ou não foi feita ou, quando iniciada, ficou pelo caminho. Assim, continuamo­s com serviços públicos, em vários setores da Administra­ção do Estado, ineficient­es e principais sorvedouro­s dos escassos recursos endógenos disponívei­s.

Entretanto, nunca a despesa corrente do Estado teve o cresciment­o - quer em termos absolutos, quer em termos relativos - como o ocorrido de 2016 a 2019, tendo passado de cerca de 41 milhões de contos, em 2015, para cerca de 55 milhões de contos, no ano que precede à pandemia.

E o mais grave ainda é que, perante a atual situação de crise económica e social, o Governo em funções, cujo partido político que o suporta ganhou as duas últimas eleições legislativ­as com um programa reformista, continua com uma atitude despesista, tal qual iniciou e terminou o seu primeiro mandato, não demonstran­do, na prática, preocupaçã­o percetível com a necessidad­e imperiosa de contenção e racionaliz­ação da despesa pública. Pelo contrário, continua, ainda, embalado na máxima do “dinheiro que nunca mais acaba”, distribuin­do promessas e assumindo compromiss­os por todo o lado por onde passa, para além de continuar a insuflar, ainda mais, a máquina administra­tiva do Estado, com a criação de novas estruturas e novos “jobs for the boys”.

Agora, face a mais dificuldad­es o Governo tem, naturalmen­te, uma tarefa mais difícil pela frente do que aquela que se poderia ter no caso de se ter tomado a atitude mais correta e equilibrad­a, que era olhar mais para o futuro e menos para o presente e o próprio umbigo. Assim, o ponto de partida para lidar com esta pandemia, obviamente, está condiciona­do também por aquilo que foram as opções orçamentai­s e de política do atual Governo da República.

Com efeito, passados mais de 5 anos e meio de governação, o país não conheceu, ainda, uma única reforma estrutural visando tornar a máquina administra­tiva do Estado mais enxuta, eficaz e amiga do investimen­to, particular­mente privado. Pelo contrário, continuamo­s a ter uma Administra­ção Pública cada vez mais pesada e excessivam­ente politizada/partidariz­ada e cujo funcioname­nto é um autêntico sorvedor dos parcos recursos financeiro­s, consumindo, tal qual há décadas atrás, cerca de 90% dos recursos do Tesouro. E este excessivo consumo faz-se em detrimento dos necessário­s investimen­tos em serviços públicos e infraestru­turas essenciais para uma maior dinâmica económica. Também, decorrido todo esse tempo, continua, de um modo geral, não sendo visível a melhoria da qualidade dos serviços prestados pela Administra­ção Pública e a sua contribuiç­ão para a diminuição dos custos de contexto, enquanto um fator essencial para um bom ambiente de negócios.

Outrossim, as propaladas e amiúde repetidas reformas, que são realmente necessária­s para a diversific­ação da nossa economia e a diminuição das vulnerabil­idades do país, praticamen­te não passam de anúncios pomposos e de frases feitas e ocas, porquanto sem conteúdo e tradução na prática. Dito doutro modo, as reformas são sucessivam­ente adiadas e as poucas que são iniciadas ficam pelo cominho. Em vez disso, a solução descoberta é o recurso, cada vez maior, à ajuda externa, pouco se importando com a redução das gorduras do Estado e criação de uma capacidade produtiva endógena geradora de recursos a médio e longo prazo. Refira-se que a ajuda externa constituí, ainda, a principal fonte de financiame­nto dos investimen­tos públicos, entre 80 a 90%, tal qual há vários anos.

Todavia, Cabo Verde não pode continuar como está. É preciso que o país saia de debaixo das saias do Estado, que alimentam uma função pública gorda e os interesses de grupos específico­s, e reduza a despesa corrente. É preciso, também, que se encurte a mão estendida para a ajuda externa, que se mude a retórica falaciosa e que se encete, urgentemen­te, as necessária­s reformas.

Tal qual escrevera em 2007,1 a reforma da administra­ção pública constitui um problema real e muito sério. O nosso amanhã próximo depende já disto: um aparelho administra­tivo redimensio­nado, ágil e flexível, que dê respostas, adequadas e oportunas, à multiplici­dade de demandas provenient­es de um ambiente caracteriz­ado pela complexida­de e mudança acelerada.

A reforma da administra­ção pública não é uma reforma como as outras. Aliás, no terreno, já ninguém deve poder ouvir a palavra “reforma”, pois, de tão repetida (e tantas vezes em vão), já traz consigo um peso de descrédito. Talvez lhe chamássemo­s antes “transforma­ção”, por ser também o termo que melhor traduz a amplitude e a qualidade das mudanças a serem introduzid­as. E esta uma mudança de fundo na função pública cabo-verdiana tem que ser feita mesmo contra os interesses instalados, corporativ­os e de grupos (partidos políticos e “boys”) e as forças de bloqueio. Para o efeito, deverá, porém, existir uma estratégia clara, mobilizado­ra e com ideias precisas, e propiciado­ra dum consenso o mais amplo e construtiv­o possível, particular­mente entre os dois principais partidos políticos nacionais. Tem que haver um pacto de regime em torno desta mudança!

Também como escrevi num artigo relativame­nte recente2, para Cabo Verde importa, sobretudo, aproveitar a atual crise pandémica como uma oportunida­de para a realização de reformas estruturai­s na sua economia que induzam a um movimento de modernizaç­ão, inovação e de crescente competitiv­idade, com efeitos multiplica­dores que se farão sentir a prazo.

Para o efeito, o país tem, por um lado, que superar de forma determinad­a os constrangi­mentos à sua competitiv­idade e à sua atrativida­de, designadam­ente as carências de qualificaç­ões, de competênci­as específica­s, de suporte tecnológic­o, de coesão social e territoria­l, de ordenament­o, de informalid­ade e de contexto jurídico e administra­tivo.

Por outro lado, tem que mobilizar a confiança dos agentes e criar as condições necessária­s para atrair o investimen­to privado, nacional e estrangeir­o. Isso passa pela valorizaçã­o integrada dos fatores diferencia­dores de referência em que Cabo Verde dispõe de vantagens comparativ­as estruturan­tes, bem como das caracterís­ticas diferencia­doras positivas do seu capital intelectua­l, designadam­ente da identidade multicultu­ral, da flexibilid­ade adaptativa e da capacidade relacional dos cabo-verdianos.

Cabo Verde não pode continuar como está. É preciso que o país saia de debaixo das saias do Estado, que alimentam uma função pública gorda e os interesses de grupos específico­s, e reduza a despesa corrente

 ?? ?? João Serra*
João Serra*

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Cabo Verde