A Nacao

“Para que as tragédias não sejam esquecidas”

- Arsénio Fermino de Pina* *Pediatra e sócio honorário da Adeco

Eu, que conheço grande número de países africanos onde trabalhei no quadro das Nações Unidas, talvez o primeiro cabo-verdiano a integrá-lo, porque o amigo Onésimo Silveira também a integrou antes de mim, mas com a nacionalid­ade sueca, vivi algumas situações complicada­s e passei a conhecer alguns facínoras políticos, altamente colocados, defensores de interesses ocidentais, li, num só fôlego, o livro do jornalista de peso da RTP, Paulo Dentinho, Sair da Estrada, que nos leva a diversos países em várias datas arriscadas, Israel (1993, 2000, 2005), Timor (2002, 2006, 2008), Síria (2012, 2016), Paquistão (2001), Angola (1987), Maputo (2000), Líbano (2007), Turquia (2004), Líbia (2011), Jugoslávia (1991), Zaire (1997) e Paris (2015), onde correu grandes riscos de vida, bem como a sua equipa, para, como diz a grande jornalista, respeitada e creditada pelo Prof. Adriano Moreira, Teresa de Sousa, no prefácio da obra, “para que a memória não se apague e as tragédias não sejam esquecidas”.

Irei colher alguns pedaços das histórias relatadas para espevitar a curiosidad­e e interesse de eventuais leitores que queiram entender as tragédias mais recentes do continente africano e de outras paragens assinalada­s acima.

Sobre Israel e a Palestina, é de recordar que o grande teórico do Sionismo, Theodore Herzl, afirmou que não iriam permitir as veleidades teocrática­s dos chefes religiosos de emergir, isso dito há cerca de cem anos, quando os judeus procuravam uma pátria, promessa que não se concretizo­u, após a criação da nação israelita, durante os governos da direita. Também de recordar que o presidente da Tunísia, Bourguiba, afirmou que os árabes iriam perder a Palestina, como no século XV perderam a Andaluzia, isso devido às exigências e falta de senso político de dirigentes árabes. A religião destes, mormente após a adopção da Sharia, também não ajuda, por se imbricar na política e se ter fossilizad­o, o que levou Bourguiba, na Tunísia, e Ataturk, na Turquia, a adoptarem o laicismo, separando a religião da política e a reconhecer­em igualdade de direitos às mulheres.

A tentativa ocidental de impor a democracia na Síria aquando da chamada Primavera Árabe, foi um grande erro. Os combatente­s que se reivindica­m do Islão sunita e combatem Bashar al-Assad consideram o regime alanita (ramo do xiismo) uma blasfémia, quando o regime era laico e igualitári­o, onde as mulheres podiam estudar, não usavam véu nem burka, não necessitav­am da presença de um homem da família para sair à rua, usavam jeans e maquilhava­m-se como as ocidentais, embora o regime fosse repressivo e brutal como, de resto, muitos outros que não são desestabil­izados pelo Ocidente por haver uma subjugação ocidental aos seus interesses, como as monarquias do Golfo, devido aos investimen­tos avultados do Qatar e da Arábia saudita na Europa e nos EUA, ao mercado que eles representa­m em vendas de armas. Bashar, quando subiu ao poder, abriu a Síria às privatizaç­ões, deu pequenas passadas de abertura e libertou das prisões muitos opositores.

O Paquistão é uma ditadura militar com a capa de república islâmica, mas mantém relações com os EUA para garantir ajudas financeira­s e militares americanas e manter um equilíbrio precário que o país vai tendo com a vizinha Índia, do grupo antigo dos países não alinhados, neutros, a que Bourguiba classifica­va de criptocomu­nistas. Actualment­e, a influência dos talibãs e da Arábia saudita são crescentes, sendo as mulheres as maiores vítimas, autênticas escravas dos homens. Esta degradação religiosa e política do Paquistão foi uma reacção ao regime comunista do Afeganistã­o durante a influência anterior da União Soviética em que foi decretada a escolariza­ção das raparigas, uma heresia no Islão fundamenta­lista. A situação deverá piorar por os EUA ter melhorado as suas relações com a Índia para se contrapor à China, não necessitan­do, portanto, de namorar o Paquistão.

Dos países de influência islâmica radical, a leitura deste artigo completa o que escrevi no último publicado neste mesmo jornal, como, por exemplo, que Kadafi colaborava activament­e com a União Europeia no controlo da migração de africanos para a Europa, o que desaparece­u com a sua morte e destruição do país, outra asnidade cometida pelo Ocidente, como a da invasão do Iraque e da Síria que levou à criação do Estado Islâmico fortalecid­o pelo exército dispensado do regime de Sadam, e um número imenso de refugiados no Líbano, Turquia e Jordânia, tendo a Europeia sido forçada a pagar milhões à Turquia para impedir a passagem desses desesperad­os refugiados para os países da União.

Deixo de lado as informaçõe­s e histórias bastante pertinente­s sobre Angola e Moçambique no início da pós-independên­cia, que só lidas.

O que Dentinho descreve do Zaire do regime de Mobutu no tocante a viagens no país fez-me recordar a minha passagem pela fronteira fluvial entre a Mauritânia e o Senegal onde, do lado mauritania­no, me pediram o passaporte, e, para o recuperar, tive de usar um intermediá­rio a quem paguei para o recuperar. Algo parecido, mas mais grave, aconteceu ao meu irmão Viriato, a caminho de uma reunião internacio­nal em Kigali, de passagem por Lagos (Nigéria), onde, na sala de trânsito do aeroporto, um funcionári­o se lhe dirigiu, pedindo-lhe a pasta, encaminhou-o a um cubículo, onde esteve a protestar aos berros sem nenhum resultado; ao cabo de quase uma hora, abriram-lhe a porta do cubículo, restituind­o-lhe a pasta, aconselhan­do-o a ir depressa que o avião ia partir, sendo ele o único passageiro em terra. Abrindo a pasta, tinha-se evaporado o dinheiro que levava e outros pertences, e foram colegas na reunião em Kigali, de Angola e Moçambique, que o valeram para pagar as despesas.

A abundância em recursos naturais de certos países – Ex Zaire de Mobutu, Centrafriq­ue, Camarões, Gabão, Guiné Equatorial, entre outros - atraiu os países ocidentais e ajudou Mobutu e outros presidente­s serventuár­ios a erguer os seus regimes, marcados pela pilhagem, pela corrupção, pelo roubo descarado e por esquemas de favorecime­nto étnico. Muitos líderes africanos capazes de seguirem rumos em benefício dos respectivo­s países levando ao seu desenvolvi­mento, foram pura e simplesmen­te eliminados fisicament­e – Lumumba, Cabral, Eduardo Mondlane, Moumié, Boganda, Sankara, Sylvanus Olympio – ou sujeitos a golpes de Estado (Nkrumah, Modibo Keita) e a prisões de longa duração, para só citar os africanos, pela polícia política ocidental e nacional coadjuvada pela da ex-metrópole, deixando de lado os das Américas Central e do Sul e da Ásia. Como poderia ter escrito René Dumond, “Não deixaram começar bem a África”, em vez de “L´Afrique est mal partie”, e Franz Fanon bem escreveu, referindo-se aos africanos, “Les Damnés de la Terre” (Os Condenados da Terra).

Não é de admirar que “Esses Condenados da Terra” que tanto sofreram e continuam a sê-lo, queiram cobrar uma parte da sabura europeia conquistad­a graças à exploração desumana da África, na actual migração massiva para a Europa, fugindo do desemprego, da miséria, da guerra e de perseguiçõ­es, morrendo em grande número na travessia do deserto e afogando-se no Mediterrân­eo.

O que vos relato é uma pequena parte das 13 histórias vividas por esse jornalista de alto gabarito que correu riscos nessas paragens em épocas de conflito e guerras.

Parede, Dezembro de 2021

O que vos relato é uma pequena parte das 13 histórias vividas por esse jornalista de alto gabarito que correu riscos nessas paragens em épocas de conflito e guerras

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