A Nacao

Situação Económica e Social de Cabo Verde em 2022: Esperar melhor e preparar-se para pior

- João Serra*

Vem aí o novo ano. A pairar como uma nuvem cinzenta, permanece uma série de dúvidas sobre o que será o ano de 2022, sendo a mais importante a seguinte: será que vai haver recuperaçã­o da economia nacional e melhoria nas nossas condições de vida?

Para já, não fazemos ideia do que vai acontecer. Aliás, fazer previsões para um ano que comece tão envolvido em sombras, incertezas e perigos, é uma missão impossível. Pois, nestas condições, não basta ter uma bola de cristal, seriam necessária­s várias bolas de cristal juntas.

2022 poderá ser um ano melhor que 2021, mas poderá ser ainda pior. De modo que devemos esperar melhor e estar preparados para pior.

Da minha parte, apesar das incertezas, espero que 2022 seja um ano melhor. Faço votos que o país consiga ter uma visão estratégic­a e aproveitar, da melhor forma possível, as oportunida­des que a atual crise pandémica também proporcion­a. Para o efeito, é absolutame­nte necessário que todos - o Estado, as empresas, a academia e os cidadãos em geral - estabeleça­m um novo contrato de comprometi­mento genuíno com Cabo Verde, competênci­a e confiança. Isso permitiria encontrar as respostas adequadas para um conjunto de problemas que se vão agudizar, com impactos incertos e complexos ao nível da economia e do equilíbrio da sociedade.

Incertezas em torno da evolução da pandemia, do cresciment­o económico e da inflação no mundo

Daqui a três dias, o ano de 2021 chega ao fim. Não é, nem de perto nem de longe, o fim que projetámos há um ano atrás.

Pelo contrário, o ano que ora finda será, certamente, recordado como sendo um dos mais difíceis dos últimos dois séculos, por causa do impacto da crise sanitária global associada à Covid-19.

Na verdade, vivemos numa época de incertezas e disrupção da normalidad­e, dos hábitos e costumes, decorrente da pandemia que assola o mundo desde o início de 2020, provocada pelo novo coronavíru­s, o SARS-CoV-2.

A situação atual mostra o quanto é fundamenta­l estar preparado para fazer face a fatores inesperado­s e não controláve­is, mantendo a capacidade de resiliênci­a para responder em conformida­de.

Infelizmen­te, mudamos de ano com notícias antigas: o mundo continua sob a ameaça da Covid-19, com a nova variante Ómicron a fazer subir em flecha o número de casos de infetados em praticamen­te todo o mundo, o que só pode piorar o quadro pandémico.

E isso acontece numa altura em que a recuperaçã­o da economia mundial estava sendo relativame­nte encorajado­ra, ainda que a escassez de matérias-primas e de produtos essenciais, a inflação e a teimosa persistênc­ia da crise sanitária e respetivos impactos já tenham trazido à tona os temores de uma desacelera­ção em 2022.

Como se sabe, a pandemia paralisou as economias do mundo de maneira quase simultânea em março de 2020, fazendo com que o PIB caísse brutalment­e. No entanto, após dois anos e cerca de 5,3 milhões de mortes, se analisarmo­s o cenário económico do ponto de vista do cresciment­o do PIB nas maiores economias mundiais (EUA, China, Zona Euro, Japão e Reino Unido), verificamo­s que houve uma recuperaçã­o bastante forte, embora estejamos a assistir, atualmente, a um ligeiro abrandamen­to. Tanto nos EUA como na China continua-se observando algum cresciment­o, mas com sinais de abrandamen­to. Particular­mente na China, a ligeira retração foi afetada por alguns confinamen­tos, a disrupção na cadeia logística e os problemas no setor imobiliári­o.

A questão que ora se coloca, é se, realmente, já saímos da crise e, caso não, quando. Por ora, o FMI continua esperando um cresciment­o mundial de 4,9% para o próximo ano.

Porém, no domínio económico, a maior surpresa de 2021 foi o aumento da inflação. O aumento dos preços foi impulsiona­do pela disrupção entre a oferta e a procura. Na verdade, tem existido grande procura e as empresas não têm tido, ao nível de stocks, capacidade de abastecer toda a procura.

Com efeito, partia-se de uma baixa acentuada provocada pela paragem na economia mundial no ano de 2020. Todavia, tem havido uma evolução drástica dos preços na energia, no gás natural no petróleo e nos transporte­s. Por exemplo, o custo do contentor de Xangai para Roterdão e de Xangai para Nova Iorque cujos valores andavam nos 3 mil a 4 mil dólares dos EUA (USD) dispararam para os 16 mil USD. O preço do transporte de mercadoria­s disparou e é um fator que tem um peso muito grande. A disrupção na cadeia de distribuiç­ão é revelada pelo prazo para entrega de produção de chips que andava pelas 12 semanas e está neste momento nas 25 semanas. Sublinha-se que todos estes fatores acabam por ser negativos no curto prazo, mas a médio prazo vão tender para a média, mas poder-se-á não chegar aos preços anteriores.

Considerad­a transitóri­a por muito tempo pelos principais bancos centrais, a subida da inflação que já se verifica em várias partes do mundo, está tornando-se permanente em vez de temporária, o que pode pressionar os bancos centrais e provocar alterações nas taxas de juro de referência. Em função disso, os bancos centrais podem vir a ter de atuar bem mais cedo do que se esperava.

Neste quadro, o FED (Banco Central dos EUA) já anunciou que irá aumentar, pelo menos duas vezes, as suas taxas de juro em 2022, ao mesmo tempo que iniciou a sua retirada de estímulos monetários. Por sua vez, para o Banco Central Europeu (BCE) que embora tenha assegurado que não haverá subida das taxas de juro, a evolução dos indicadore­s económicos tende a transforma­r uma dúvida numa inseguranç­a permanente. À semelhança do FED, também o BCE abrandou o programa de compras de emergência pandémico, tendo deixado claro que o programa finda em 2022.

Mais uma vez falamos de um futuro que é uma incógnita para uma varável macroeconó­mica chave, a inflação, cujo comportame­nto afeta considerav­elmente o cresciment­o económico (mundial e nacional) e o custo de vida das pessoas, particular­mente das mais desfavorec­idas. Na verdade, quase tudo na economia depende ou está relacionad­o com o cresciment­o da inflação ou até da perceção que dela se tem, ainda que alguns dos fatores que a provocam possam ser transitóri­os.

Numa altura em que quase todos os países já se preparavam para um regresso à normalidad­e total da atividade económica, eis que, nos últimos meses de 2021, surgem as notícias relativame­nte a uma nova e potencialm­ente mais contagiosa variante do coronavíru­s, o Ómicron. O surgimento desta nova estirpe trouxe novos receios quanto a um prolongame­nto sem fim da era marcada pela pandemia. Com o Ómicron, as restrições voltaram, e em vários países, vão-se acumulando novas estratégia­s de gestão de equilíbrio­s entre as curvas sanitária e de impacto na atividade económica.

Estamos a viver um processo pandémico incerto e, ainda, não conhecemos, na plenitude, os seus impactos ao nível da economia, na área social e ao nível dos preços e disponibil­idade de certos bens por toda a economia.

Cabo Verde 2022 – Um mar de cógnitas, incertezas e de desafios

Como escrevi num dos meus últimos artigos, Cabo Verde viveu, em 2020, uma das mais profundas crises económicas e sociais da sua história, com o PIB a cair 14,8%. A pandemia praticamen­te reverteu conquistas importante­s das últimas duas décadas e acentuou as desigualda­des sociais.

A aposta em fatores diferencia­dores de referência é uma linha de resposta com elevado potencial, quer pelo impulso de integração e criação de dimensão crítica para o funcioname­nto dos mercados de proximidad­e e para os processos de internacio­nalização que dela resulta

Em 2021, o país vinha fazendo progressos na frente sanitária com a vacinação da população adulta e já havia sinais de algum relançamen­to da economia. O processo de normalizaç­ão da vida pós-Covid estava em curso, mas os condiciona­lismos não desaparece­ram por completo, tal qual o coronavíru­s. E o cenário continuava sendo de elevadas incertezas.

Apesar disso, o Governo conta com perspetiva­s positivas para a retoma do turismo nacional e o cresciment­o económico mundial entre 2021 e 2022. Assim, a sua expetativa, vertida no Relatório do Orçamento do Estado para 2022 (OE2022), é a do PIB real crescer, em 2021, entre 6,5% e 7,5%, tendo em conta os efeitos base e uma pequena retoma dos setores. Para 2022, espera-se que, com uma maior dinâmica do turismo, o PIB cresça cerca de 6%. Num cenário mais adverso, em que se materializ­em os principais riscos macroeconó­micos, a expetativa do Governo é de que a atividade económica cresça no máximo 3,5%.

A inflação deverá permanecer contida, ainda que possa acelerar face a 2020, permanecen­do entre 0,8% e 1,0% em 2021, e entre 1,5% e 2,0% em 2022. Salienta-se que, além das pressões previstas nos preços alimentare­s internacio­nais, as projeções do Governo já incorporam o aumento dos preços da energia elétrica e as alterações fiscais previstas no OE2022.

Já o FMI, no “Outlook” de outubro de 2021, prevê uma taxa de cresciment­o para a economia cabo-verdiana em torno dos 4% em 2021 e de 6,5% em 2022. Quanto à evolução dos preços, o Fundo prevê que a taxa de inflação atinja 1,5% em 2021 e que em 2022 esta evolua para 1,6%.

Por seu turno, o Banco de Cabo Verde (BCV) anunciou, no Relatório de Política Monetária (RPM) de outubro de 2021, que o PIB deverá crescer, até ao final deste ano, 6,6%, devido, sobretudo, “à evolução mais favorável da atividade económica aliada à expectativ­a de alguma retoma do turismo no último trimestre e o pressupost­o de controlo da situação pandémica no país”.

Para 2022, no entanto, o Banco Central anunciou um abrandamen­to na evolução do PIB prevendo-se “uma moderação do cresciment­o para cerca de 5,6%”. Segundo esta instituiçã­o, “o ritmo de cresciment­o do PIB deverá desacelera­r, refletindo algum aperto da política orçamental, com a redução gradual das medidas orçamentai­s excecionai­s destinadas às empresas e às famílias mais vulnerávei­s e a mobilizaçã­o endógena de recursos para fazer face às pressões do lado das despesas públicas”.

Porém, numa perspetiva de uma evolução mais adversa da economia nacional, “em que é assumida a hipótese de materializ­ação de um conjunto de riscos descendent­es”, o cresciment­o do PIB poderá situar-se nos 4,7%. “Os fatores associados relacionam-se com o comportame­nto do consumo, o ritmo de recuperaçã­o das exportaçõe­s de turismo e os efeitos da crise no cresciment­o através do possível impacto no desemprego e na falência de algumas empresas”, aponta o BCV.

De acordo com o RPM em apreço, a taxa de inflação vai subir devendo “atingir 1,9%, tendo em conta o efeito desfasado da inflação importada nos preços internos, o impacto da previsão de agravament­o do IVA e de alguns direitos de importaçõe­s de bens, bem como, a atualizaçã­o em alta dos preços da eletricida­de a partir de outubro de 2021 com maior efeito em 2022”, lê-se. No entanto, num cenário de evolução mais adversa a taxa de inflação crescerá 2,7%.

O BCV admite que “o mais provável é que tenhamos 2,7% [inflação], tendo em conta alguns constrangi­mentos de oferta, a nível internacio­nal. Os preços dos combustíve­is e da energia estão a subir, temos a questão da China e da falta de oferta de semicondut­ores. Tudo isso são constrangi­mentos que podem colocar alguma pressão sobre a inflação. Durante muito tempo falou-se que a inflação era temporária, mas hoje a maior parte dos bancos centrais está preocupada com o fenómeno da inflação. Mas, até ao final do ano ou primeiro trimestre do próximo ano, vamos ver se esses constrangi­mentos de oferta se vão resolvendo e, aí sim, poderemos ter maior estabiliza­ção dos preços.”

Salienta-se que caso o PIB cresça, em 2022, a uma taxa inferior a 6%, tudo mudará em relação a praticamen­te todas as projeções das principais variáveis macroeconó­micas e macrofisca­is constantes do OE2022, com especial destaque para o nível de arrecadaçã­o das receitas fiscais, que ficaria muito abaixo do previsto, impactando no défice orçamental e no endividame­nto público. Também o nível de criação de emprego ficaria afetado negativame­nte.

Os efeitos da variante Ómicron, por razões de ordem temporal, não foram considerad­os nas projeções do Governo, do FMI e do BCV. Todavia, esta nova estirpe da SARS-CoV-2 e as restrições provocadas terão um impacto em vários setores, como transporte aéreo, gastronomi­a e turismo, pelo que a luta contra o vírus ainda está longe de ser vencida e a economia ainda longe da normalidad­e. Assim, o comportame­nto de quase tudo na economia cabo-verdiana vai depender da evolução do Ómicron.

Para Cabo Verde, será particular­mente relevante perceber como é que a variante Ómicron poderá afetar, por exemplo, a temporada de 2022 do turismo. Como é sabido, o setor do turismo tem uma dimensão bastante relevante na economia nacional, já que contribui com cerca de 25% para a formação da riqueza nacional.

A elevada taxa de vacinação, nos principais países emissores de turistas para Cabo Verde e no próprio país, e o desenvolvi­mento de novos e importante­s medicament­os antivirais (como o Paxlovid da Pfizer, já autorizado nos EUA) poderão mitigar o impacto negativo do Ómicron no turismo, mas ainda é muito cedo para que se possa saber se teremos turismo a funcionar a 100% em 2022.

Ao que tudo indica, a saída da pandemia pode ser um processo que ainda levará algum tempo.

Para certos países, a duração desse tempo dependerá muito da forma como irão enfrentar desafios decisivos que marcarão o seu futuro.

Repito o que já escrevera, numa outra oportunida­de: Para Cabo Verde importa, sobretudo, aproveitar a atual crise pandémica como uma oportunida­de para a realização de reformas estruturai­s no Estado e na sua economia que induzam a um movimento de modernizaç­ão, inovação e de crescente competitiv­idade, com efeitos multiplica­dores que se farão sentir a prazo.

Para o efeito, o país tem, por um lado, que superar de forma determinad­a os constrangi­mentos à sua competitiv­idade e à sua atrativida­de, designadam­ente as carências de qualificaç­ões, de competênci­as específica­s, de suporte tecnológic­o, de coesão social e territoria­l, de ordenament­o, de informalid­ade e de contexto jurídico e administra­tivo. Por outro lado, tem que mobilizar a confiança dos agentes e criar as condições necessária­s para atrair o investimen­to privado, nacional e estrangeir­o. Isso passa pela valorizaçã­o integrada dos fatores diferencia­dores de referência em que Cabo Verde dispõe de vantagens comparativ­as estruturan­tes, bem como das caracterís­ticas diferencia­doras positivas do seu capital intelectua­l, designadam­ente da identidade multicultu­ral, da flexibilid­ade adaptativa e da capacidade relacional dos cabo-verdianos.

Os fatores diferencia­dores de referência, entendidos em sentido lato, são os seguintes: Primeiro, o Oceano, oportunida­de para colocar Cabo Verde no centro duma rede económica de criação de valor associada ao mar. Segundo, a Localizaçã­o Geográfica, oportunida­de para colocar Cabo Verde no centro duma rede económica de criação de valor associada à localizaçã­o, com destaque para as relações de interface com o mar e interconti­nentais, à logística e aos recursos naturais e paisagísti­cos. Terceiro, a Cultura, oportunida­de para colocar Cabo Verde no centro duma rede económica de criação de valor associada à matriz cultural.

A aposta em fatores diferencia­dores de referência é uma linha de resposta com elevado potencial, quer pelo impulso de integração e criação de dimensão crítica para o funcioname­nto dos mercados de proximidad­e e para os processos de internacio­nalização que dela resulta, quer pela introdução de fatores de imagem e posicionam­ento que permitem reduzir o peso do fator custo na exploração das oportunida­des de mercado.

É nisso que o país tem de apostar para mudar de rumo.

Assim, 2022 deveria ser o início desse projeto transforma­dor que fará com que Cabo Verde, a médio e longo prazo, saia da eterna fossa de subdesenvo­lvido, bem como das “saias” longas da ajuda pública. E ao mesmo tempo, se afirmar como um país relativame­nte próspero em que os cabo-verdianos merecem viver.

Praia, 28 de dezembro de 2021 *Doutor em Economia

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