“Noite escravocrata, Madrugada camponesa” é o novo livro de António Correia e Silva
O novo livro de António Leão Correia e Silva, “Noite Escravocrata, Madrugada Camponesa, Cabo Verde séc. XV-XVIII”, chega a Cabo Verde esta quinta-feira, 13 de Janeiro, no salão da Presidência da República. A obra, editada pela Rosa de Porcelana, propõe explicar como nasceu a sociedade escravocrata cabo-verdiana e como se transformou, depois, numa sociedade de “dominância camponesa”, que caraterizou o arquipélago nos séculos XIX e XX. Caminha-se nesta obra pelos subterrâneos e entre os pilares mais profundos da actual sociedade cabo-verdiana.
“Noite Escravocrata, Madrugada Camponesa”, o mais recente livro do historiador e sociólogo António Correia e Silva é apresentado esta quinta-feira, 13 de Janeiro, no salão da Presidência da República, depois de ter sido lançado, a 17 de Dezembro, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. João Pereira Silva, antigo ministro de Desenvolvimento Rural, na I República, e depois de Economia, na II República, é um dos apresentadores, juntamente com a professora da Uni-CV, Antonieta Lopes, ex-curadora da Biblioteca Nacional.
Segundo o autor, este livro com quase 600 páginas propõe explicar como é que a sociedade escravocrata cabo-verdiana – que foi a primeira de todas as sociedades do género no mundo atlântico – nasceu, floresceu, e depois se desregulou, passando a engendrar, bem antes da abolição da escravatura, uma sociedade de dominância camponesa.
Um facto que, na sua perspectiva, está relacionado com a luta de classes, e não com nenhum “determinismo geográfico”, como o clima ou a micro-dimensão do território, “como se costuma implicitamente pensar”, frisa António Correia e Silva, em conversa com A NAÇÃO.
“Tanto assim”, explica, “que nos primeiros dois séculos se desenvolveu em Cabo Verde, mais precisamente em Santiago e no Fogo, a economia de plantação, assente na utilização massiva de escravos produzindo bens de exportação”, sublinhou.
Portanto, para o autor, a ideia de que a agricultura em Cabo Verde foi sempre de subsistência e que a escravatura era doméstica e a riqueza da sociedade proveniente do tráfico de escravos, e não da produção agro-artesanal, não se sustenta. Nem documentalmente nem do ponto de vista da lógica dedutiva:
“Nos seus primórdios, a nossa sociedade concentrou em alto grau factores de produção (mão-de-obra escrava, terras, obras de irrigação, trapiches, teares, navios, dinheiro, letras de câmbio, objetos de arte, etc.) e, para funcionar, incorporava uma enorme diversidade étnica, quer proveniente da Áfri
ca quer da Europa. Jalofos, banhus, cassangas, mandingas, bijagós, sapes, assim como cristãos novos, judeus, cristãos velhos estavam permanentemente a chegar e a interagirem entre si segundo padrões de dominação instituídos.
Conforme observou o autor, na sua investigação de vários anos, o ciclo de vida dessa sociedade foi diverso do das suas congéneres americanas, que são sociedades com as quais a cabo-verdiana divide afinidades fundacionais, já que, tal como elas, foi escravocrata, agroexportadora, composta por comunidades de colonos europeus transplantados e por africanos introduzidos compulsoriamente como escravos.
Portanto, ao ver falir o seu patronato escravocrata e ao tornar-se precocemente camponês, a sociedade cabo-verdiana reconfigurou-se, entrando no século XIX e XX de maneira diversa daquela que entrou uma grande parte das sociedades americanas. “Estas aboliram a escravatura, sem, contudo, desativarem os mecanismos de exclusão da sociedade escravocrata”, sublinhou. Marcas desta diversidade de trajectória ainda prevalecem.
Para António Correia e Silva, a actual conjuntura social provocada pela pandemia da covid-19 trouxe à luz do dia nas Américas “as velhas fracturas das antigas sociedades escravocratas que lhes estão na origem”.
“Com isso quis mostrar que este percurso histórico antigo, podemos dizer longínquo, que é descrito no livro, condicionou e condiciona afinal de contas a trajetória pós-escravocrata das sociedades atlânticas”, referiu.
Ou seja, as velhas fracturas que se julgavam esquecidas e ultrapassadas ainda prevalecem, apesar de todas as mudanças ocorridas desde então. Veja-se o caso das desigualdades sociais que seguem de perto as linhas de raça. Quer-me parecer que a crise pandémica foi, em muitas sociedades contemporâneas, democráticas e liberais, um catalisador da consciência da persistência nelas da herança escravocrata”.
Por outro lado, a obra, como o autor faz questão de realçar, é também uma homenagem à luta, à vitalidade social, à criatividade e à resistência que estiveram na origem de Cabo Verde.