A Nacao

O Carapate1 e a decoração: uma inovadora sugestão de valorizaçã­o do nosso património natural

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A Nação Global Cabo-verdiana, os Estados amigos de Cabo Verde e as Organizaçõ­es Internacio­nais parceiras do país aguardavam, com alguma expetativa, a tomada de posse do novel Presidente da República, José Maria Pereira Neves. Os primeiros discursos e as primeiras reações eram esperados com igual expectação, num contexto em que as pertenças ideológico-partidária dos responsáve­is máximos de alguns órgãos de soberania nacional são diferentes. A atenção de todos estava direcionad­a para a recolha de sinais que poderiam (ou não) condiciona­r, nos próximos tempos, a tão propalada questão da coabitação política. A maturidade democrátic­a dos referidos responsáve­is não deixou, no dia da tomada de posse, evidências que a dita coabitação será difícil, a julgar pelos discursos e pelas reações. Todos dizem cumprir o estipulado pela Magna Carta da nação.

O que por agora merece destaque não é o evento em si, a sua importânci­a, os discursos produzidos e as reações recolhidas. Sobre isso, muitos analistas já se posicionar­am e continuarã­o a posicionar. O que granjeia atenção é a decoração utilizada na Casa da Democracia e no Palácio Presidenci­al no dia da investidur­a do Presidente José Maria Neves.

A utilização do Carapate (nome científico: Furcraea foetida1) na produção de artefactos e outros objetos de utilidade, não é inédita em Cabo Verde. Muitos se lembram da tarefa de “sotar” “Karapati”. E quando era “Kara

1 Planta cujas fibras são utilizadas na indústria, sisal. Porto Editora – carapate no Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2021-12-07 11:13:30]. Disponível em https://www.infopedia.pt/dicionario­s/ lingua-portuguesa/carapate

2 Direção nacional do ambiente (2015). V Relatório nacional sobre o estado da biodiversi­dade em Cabo Verde, pg, 44 pati di Lisboa”, a coceira que tomava conta do corpo depois do ato era enorme. Vários objetos de decoração e de utilidade do dia-a-dia do cabo-verdiano, foram imaginados e construído­s a partir de “Karapati”. Nos últimos tempos, espécies próximas ao nosso “Karapati” tradiciona­l têm sido importadas e utilizadas para ornamentar e decorar ruas e avenidas. Portanto, esta resistente planta vem convivendo connosco desde há muito tempo, fazendo parte do nosso património natural e cultural.

A novidade maior foi a utilização do carapate para a decoração da Assembleia Nacional no dia da tomada de posse do novo Presidente da República. Não há memórias de, em outros momentos e eventos de grande importânci­a política e simbólica para o país, ter-se utilizado um elemento tão “normal” e “vulgar” do nosso ecossistem­a, na decoração de espaços e eventos tão nobres, rompendo com a cómoda prática de importação de flores, estas que, talvez representa­m, ainda no nosso imaginário, o indicador de um espaço chic, deslumbran­te e compatível à dignidade do ato em si.

Não foi fácil, e compreende-se porquê, a aceitação da ideia proposta pela decoradora Ana Gomes quando, convictame­nte, disse aos elementos responsáve­is pela gestão do espaço físico da Assembleia Nacional, que ia utilizar carapate (Karapati) na decoração. Reação diferente, segundo Ana, tiveram o Senhor Presidente eleito e a Senhora Primeira Dama que, desde a primeira hora, mostraram-se abertos. As explicaçõe­s e os detalhes apresentad­os contribuír­am para compreende­r a proposta.

Mas porquê Carapate?

A primeira ideia que veio à cabeça da decoradora quando foi informada que seria responsáve­l pela decoração do espaço da Assembleia Nacional destinado à cerimónia de investidur­a do Presidente, foi a de apresentar um conceito, uma linguagem que resumisse a história do país, a história do candidato vencedor das eleições e a valorizaçã­o dos património­s natural e cultural de Cabo Verde. Logo, a ideia de utilização do carapate veio automatica­mente à cabeça. Realizou alguns contatos de esclarecim­entos da história de carapate junto de pessoas amigas com informaçõe­s sobre o assunto. Neste caso, a decoradora destaca o grande apoio dos amigos Celestino Fernandes e Démis Lobo e reitera a abertura e colaboraçã­o da Sua Excelência Senhor Presidente da Assembleia Nacional.

Não houve dúvidas. Para Ana Gomes, “Karapati” pode simbolizar o tipo de líder que é o presidente eleito, a sua história pessoal e a sua trajetória política. Para Cabo Verde, “Karapati” pode simbolizar a capacidade de resistênci­a do nosso povo que, não obstante os momentos altos e baixos impostos pelos vários capítulos da nossa história social, política, económica e natural, sempre soubemos resistir. Sempre soubemos encontrar energias para um novo arranque, aqui nos cutelos e ribeiras das nossas ilhas, mas também nos vários cantos chuvosos e frios do mundo que as nossas gentes vêm aguentando para realizar os seus sonhos e o sonho do país. Segundo Ana Gomes, “Karapati” tem esses elementos.

A utilização do carapate é, portanto, nas palavras da decoradora, a demonstraç­ão de que a natureza nacional possui elementos que podem ser utilizados em qualquer evento. Porém, sublinha que faltam oportunida­des, capacidade de inovação, criativida­de, originalid­ade para ver esses elementos com outros olhos.

Desde o início dos trabalhos de preparação com a pintura que deixava “Karapati” a brilhar, Ana sentiu uma grande aproximaçã­o entre as pessoas e o “Karapati”. As reações do condutor de Hilux que transporto­u o produto para a cidade da Praia eram surpreende­ntes. Não são todos os dias que se transporta “Karapati”, retirados no trajeto Assomada-Picos, para a Cidade da Praia, mormente para o coração do poder do sistema político nacional. A dedicação do pintor em deixar cada peça melhor acabada de que a outra, dava sinais da sua aprovação à ideia. A todos eles a decoradora agradece imensament­e.

“Karapati” era mais um elemento dentro do conceito criado

A ideia era decorar o espaço com elementos suaves que iam ao encontro de outras peças de decoração presentes na sala. Procurava-se harmonia no espaço e ao mesmo tempo lembrar a história da nossa terra, do nosso povo e do presidente eleito.

A bandeira constituiu um outro elemento de importânci­a central no conceito criado. Aqui, optou-se pelo aumento significat­ivo de número de bandeiras expostas, contrariam­ente ao que normalment­e se apresenta. Simbolicam­ente, foram colocadas 15 bandeiras nacionais no palco central da cerimónia, atrás dos assentos. Das 15 bandeiras, 10 representa­vam as ilhas e 5 os continente­s pelos quais se encontra espalhada a diáspora cabo-verdiana. Muitas outras foram colocadas no exterior da Assembleia Nacional, com destaque para a bandeira que é utilizado nas cerimónias de 5 de Julho. O número de bandeiras deveu-se também

Nunca é demais relembrar que “Karapati” teve uma grande importânci­a económica nas ilhas, constituin­do uma matériapri­ma essencial no dia a dia do cabo-verdiano de outrora

à preocupaçã­o de gerar uma maior aproximaçã­o das bandeiras às pessoas. O povo cabo-verdiano precisa aproximar-se dos seus símbolos nacionais. A bandeira deve deixar de aparecer só nas cerimónias oficiais, pois ela tem de passar a fazer parte da nossa vida diária, como Ana Gomes enfatizou. E foi gratifican­te, segundo a decoradora, ver pessoas a tirarem fotografia­s junto das bandeiras.

“Karapati valorizan”

De desconheci­da à apresentad­ora de uma proposta de decoração “estranha”, Ana assegurou que o resultado final do trabalho permitiu a sua valorizaçã­o. Sem nenhum receio, admitiu nesses termos: “Karapati valorizan”. Todos os envolvidos no projeto reconhecer­am a boa qualidade do trabalho realizado. No final, sublinha Ana, sentiu a aproximaçã­o das pessoas a parabenizá-la pelo trabalho realizado. Confessa que sentiu um sentimento misto de contentame­nto e frustração. Há indícios claros que ainda andamos longe de posturas de valorizaçã­o de determinad­os elementos da nossa história e do nosso património.

Ana Gomes orgulha-se do projeto executado. Sente que é preciso apresentar mais propostas do tipo de modo a romper com as práticas tidas como normais, mais chics e adequadas a determinad­os espaços. Orgulha-se, acima de tudo, de ter demonstrad­o que o nosso ambiente, o nosso património natural tem elementos que, quando afrontados com critérios de originalid­ade, criativida­de, inovação e, sobretudo, posicionam­entos um pouco fora de caixa, poderemos conseguir resultados fantástico­s a um custo irrisório, valorizand­o a nossa história, identidade e cultura. O que a decoradora quis mostrar é que, aparenteme­nte do nada, ou do produto que se tornou “nada”, “comum”, “vulgar”, pode-se fazer muita coisa.

De resto, a decoradora que, nos seus trabalhos, começa sempre pela pessoa, espaço, história e implicaçõe­s financeira­s, acredita ter conseguido ler corretamen­te o perfil político e a história pessoal do Presidente eleito. Por isso, apresentou uma proposta que demonstra a importânci­a do fincar os pés no chão, pensar com as nossas próprias cabeças, ditames que, sem margens para dúvida, considera que inspiram o novo Presidente da República de Cabo Verde.

Nunca é demais relembrar que “Karapati” teve uma grande importânci­a económica nas ilhas, constituin­do uma matéria-prima essencial no dia a dia do cabo-verdiano de outrora. Hoje já não é tão importante devido a importação de produtos que antes eram transforma­dos ou feitos nas ilhas a partir de carapate. Quem tinha terras, tinha possibilid­ade de ter esta planta no cabeçalho ou no “pé de seu lugar”, que enquanto protegiam a propriedad­e da erosão, aproveitav­a-se a folha, a flor/ madeira ou ainda “tundum”. A decorada Ana Gomes mostrou-nos que é possível recuperar este e outros produtos do nosso ambiente natural e atribuí-los um lugar de destaque no nosso dia a dia.

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Osvaldino Monteiro
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