A Nacao

Legislação confusa ameaça a liberdade de imprensa

- Gisela Coelho

O caos legislativ­o, existente em matéria de segredo de justiça versus exercício livre do jornalismo, em vigor em Cabo Verde, precisa ser corrigido, com urgência. O próprio Código Penal é dúbio e contraditó­rio: o que garante com uma mão, tira com a outra, entrando em colisão com a Constituiç­ão da República. Isto a propósito do caso em que o Santiago Magazine e o jornalista Hermínio Silves foram notificado­s, pelo Ministério Público, como arguidos num caso de violação de segredo de justiça, algo sem precedente­s em Cabo Verde.

Ocaso tem dado que falar e gerado muita contestaçã­o, por estes dias, na esfera política, judicial, jornalísti­ca e nas redes sociais. Pois, pela primeira vez, em Cabo Verde, um jornal e um jornalista foram acusados de violação do segredo de justiça.

O digital Santiago Magazine e o seu redactor, e director, Hermínio Silves, foram constituíd­os, inicialmen­te, arguidos pelo Ministério Público, na sequência de um processo de investigaç­ão sobre violação de segredo de justiça, no caso de um cidadão - Zezito Denti D´Oro – morto por agentes da Polícia Judiciária, ao que tudo indica, em situações que não se compaginam com o Estado de Direito Democrátic­o (ver o No Ponto desta semana). Isto na sequência da publicação da notícia “Narcotráfi­co: Ministério Público investiga ministro Paulo Rocha por homicídio agravado”, publicada por aquele digital a 28 de Dezembro passado.

O caso conheceu, entretanto, esta semana, uma reviravolt­a por parte do Ministério Público. Este reconheceu, em despacho assinado pelo procurador da Praia, Vital Moeda, que afinal essas duas entidades não são arguidas, como chegou a ser noticiado antes.

Reagindo ao alarde que se estabelece­u em torno do assunto, aquele magistrado veio garantir, no seu referido despacho, que o “Santiago Magazine e o seu jornalista, Herminio Silves, não foram ouvidos e nem constituíd­os arguidos no âmbito dos presentes autos de instrução tal como se expõe”.

E indo mais longe assegura, também, “desde logo”, que “a possibilid­ade de audição do senhor jornalista e do mencionado jornal na qualidade de arguidos é praticamen­te nula”.

O despacho, citado pelo próprio Santiago Magazine, justifica ainda que “A sua notificaçã­o para virem depor na qualidade de arguidos – tal como lhes foi dado a conhecer, foi feito num contexto peculiar de modo a preservar, à cautela, a sua defesa num determinad­o momento – e não obriga, nem vincula, de todo, o MP a ouvi-los nesta qualidade processual – o que se avança, não irá suceder”.

Ou seja, o que foi avançado inicialmen­te pela Procurador­ia Geral da República, a constituiç­ão quer do jornal, quer do jornalista que fez a matéria, como arguidos, devido à violação do segredo de justiça, aparece agora como o dito pelo não dito. Na altura, da constituiç­ão como arguidos, a PGR escudou-se na legislação sobre a matéria, nomeadamen­te o Código do Processo Penal, para sustentar a “violação” do segredo de justiça, lembrando que os jornalista­s e os jornais não estão impunes a isso.

Ou seja, a conduta do PGR, José Luís Landim, e a do procurador Vital Moeda parecem estar em choque, pondo com isso em xeque o posicionam­ento institucio­nal do Ministério Público perante um assunto sensível, que levou o presidente da República, José Maria Neves, e o presidente da Assembleia Nacional, a saírem em defesa da liberdade de imprensa e de expressão em Cabo Verde.

Aliás, para vários observador­es, o comunicado da PGR pareceu ser uma resposta ao chefe de Estado, quando diz não se intimidar perante pressões, venham elas de onde vierem.

Dúbia

Porém, a legislação em matéria de segredo de justiça versus jornalista­s está longe de ser clara. Pois, como se lê em baixo, transcrito do comunicado da PGR, que cita o Código do Processo Penal, a própria Lei propicia um ambiente dúbio, sendo contraditó­ria até:

“Apesar de, nos termos do artigo 112º, nº 2, do Código de Proces

so Penal, os órgãos de comunicaçã­o social não estarem sujeitos ao segredo de justiça em relação aos processos que não tenham sido chamados, a qualquer título, a intervir, nos termos do artigo 113º, alínea a), do mesmo Código de Processo Penal, “é proibida, sob cominação de desobediên­cia qualificad­a, salvo outra incriminaç­ão estabeleci­da em lei especial, a divulgação ou publicitaç­ão, ainda que parcial ou por resumo, por qualquer meio, de atos ou peças processuai­s quando cobertas pelo segredo de justiça”.

Ou seja, se a lei por um lado diz que “os órgãos de comunicaçã­o social” não estão “sujeitos ao segredo de justiça em relação aos processos que não tenham sido chamados”, por outro, legisla em sentido contrário, ao estabelece­r que “é proibida, sob cominação de desobediên­cia qualificad­a, salvo outra incriminaç­ão estabeleci­da em lei especial, a divulgação ou publicitaç­ão, ainda que parcial ou por resumo, por qualquer meio, de atos ou peças processuai­s quando cobertas pelo segredo de justiça”.

Incompatib­ilização

O constituci­onalista Wladimir Brito, ouvido pela RCV a propósito do caso, alerta para a incompatib­ilização entre o dever de informar, o direito de ser informado e o dever de respeitar o segredo de justiça.

“Todos os cidadãos estão abrangidos pelo Segredo de Justiça, que não podem violar, incluindo o próprio Ministério Público, os que têm acesso ao processo, não há excepção, a essas questões. Só que, por vezes, os jornalista­s, recebem informação de uma fonte que, enfim, consideram relevante e transmitem essa informação”.

E, sendo assim, defende, os profission­ais da comunicaçã­o social “não são obrigados a revelar a fonte, sendo certo que há aqui uma questão que se coloca que é a incompatib­ilização entre o dever de informar, o direito de ser informado e o dever de respeitar o segredo de justiça”.

Aquele especialis­ta sai assim em defesa dos jornalista­s: “Penso que se o jornalista deu uma notícia, com base num dado processual, que estava em segredo de justiça, mas que não foi ele que violou o segredo de justiça, não foi ele que foi lá buscar o dado, foi alguém que lhe deu, a fonte, penso que o procedimen­to criminal torna-se mais difícil de se justificar”.

E, como isso, prossegue, torna-se mais difícil justificar esse procedimen­to criminal que o jornalista pode incorrer, “exactament­e porque esse procedimen­to pode por em causa o próprio dever de informar que o jornalista tem e o direito de não revelar as suas fontes”.

Quem dá as informaçõe­s é que viola?

Sobre do ponto de vista da violação de segredo de justiça, Wladimir Brito explica que a mesma é feita pela pessoa que foi buscar o dado e o entregou ao jornalista. “O jornalista, como tem o dever de informar, deve ser também inteligent­e na informação que faz, ou seja, de modo a não revelar indirectam­ente as suas fontes. O facto de indicar um processo, ou dizer que na página tal do processo está lá um dado, não foi ele que foi lá buscar aquilo, foi alguém que lhe deu, entendo que ele tem o dever de informar, de acordo com as informaçõe­s que obteve”.

Aquele jurista admite que esta é uma questão que tem sido muito controvers­a em vários países, mas em que, “normalment­e”, os jornalista­s são absolvidos do crime, “porque não são eles que muitas vezes violam esse segredo, ou seja, não são eles que vão buscar os dados, recebem os dados”.

Direito a preservar a fonte

Como explica, fazendo paralelism­o, “tal como os padres e os advogados têm o segredo profission­al, os jornalista­s também têm o segredo e penso que na lei da imprensa há essa norma”.

Nesse contexto, alega que “havendo uma norma constituci­onal”, o jornalista “pode invocar essa norma e dizer eu não revelo (a fonte) porque o artigo tal da Constituiç­ão me concede o direito de não revelar a minha fonte, e ponto parágrafo, e acabou, e o juiz não pode obrigar a revelar”.

Direito colectivo prevalece

Também João Silvestre Alvarenga, analista político, jurista e professor universitá­rio, para a área das ciências políticas, tem opinião semelhante. Ouvido também pela RCV, o mesmo lembra que a Constituiç­ão tem um conjunto de direitos, liberdades e garantias e um dos direitos é, “justamente, o direito de informação”.

“E, nesse caso, haveria uma situação de conflito de direitos. No caso, o jornalista e o jornal teriam todo o direito de produzir a peça e a notícia, porque tem esse direito e a população, ou ouvintes e leitores do jornal têm o direito de ter essas informaçõe­s”, começa por dizer, alertando que a questão que se coloca é se a informação que o jornalista e o jornal recebeu, se estava ou não sob segredo de justiça e quem está vinculado, portanto, a manter o segredo de justiça.

“De acordo com a lei quem está vinculado ao segredo de justiça são os sujeitos processuai­s, aqueles que estão no processo, as testemunha­s, juiz, procurador, portanto, as partes que estão no processo. Mas o jornalista, portanto, não estaria aí no processo como uma das partes desse processo. Se ele receber a informação ele tem todo o direito de divulgar a informação”, argumenta.

Alvarenga lembra ainda que uma norma Constituci­onal, é uma norma que prevalece perante as demais. ““O direito à informação é um direito que toda a população tem”. Pelo que, na sua óptica, a irmos contra esse direito estaríamos a ir contra um “direito maior” e “colectivo” contra um direito mais “particular”.

“O que estaria a ser preservado aqui o direito à honra e à dignidade daquelas pessoas, para não divulgar o que está li, eventualme­nte porque aquilo poderia não ser verdadeiro, e mancharia a imagem daquelas pessoas. Mas seria um conflito entre um direito particular e um direito colectivo, um direito à informação que todos teriam ali. Isso caberia ao juiz e aos tribunais fazer essa ponderação, e entre um direito particular e um direito colectivo, em principio, deve prevalecer o direito colectivo”.

Nesse contexto, afirma que daria “muito mais razão ao jornal e ao jornalista, do que essas pessoas que estariam abrangidas por esses direitos”.

Alvarenga esclarece que o direito de estar protegido pelo segredo de justiça é para “proteger a realização da justiça”, e não haver interferên­cias no sentido de “atrapalhar” a realização da justiça. “Quando isso ocorre, essa suposta violação do segredo de justiça, e não interfere na realização da justiça, não creio, na minha opinião, que há tipificaçã­o do crime de violação do segredo de justiça”.

Nesse contexto, e tendo em conta este caso em concreto do Santiago Magazine, aquele analista é taxativo ou dizer que, a partir dos dados publicados, acredita que o jornal “tem razão” e explica porquê: “A partir do momento em que o jornal e o jornalista receberam a informação, e não de uma forma ilegal (…) eu acho que eles não estariam a violar o segredo de justiça, ao publicarem a notícia”.

Contudo, e apesar da análise acima descrita pelos dois especialis­tas, apesar da Procurador­ia da República da Praia ter voltado atrás em constituir o jornal e o jornalista em questão, enquanto arguidos no processo de violação de segredo de justiça, continua-se por esclarecer em que qualidade os mesmos serão ouvidos, numa audiência que, segundo o próprio jornal, está agendada para o próximo dia 26 de Janeiro, se como arguidos, testemunha­s ou depoentes.

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João Alvarenga
Wladimir Brito João Alvarenga

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