A Nacao

Repensar o Sistema Educaciona­l para uma maior Conscienci­alização?

- Ednilson Fernandes

No outro dia, ao ler a entrevista da galardoada escritora Moçambican­a Paulina Chiziane - que foi “só” primeira mulher a publicar um romance no seu País e a primeira mulher Africana a vencer, em 2021, o mais conceituad­o prémio da língua portuguesa, o Prémio Camões - fiquei perplexo com algumas consideraç­ões feitas por está magnifica escritora, relativame­nte à forma como os europeus nos veem e pensam a nosso respeito como povos não europeus.

Mas o que me deixou mais chocado, boquiabert­o, até, foram algumas definições que um dicionário editado por uma tal editora portuguesa até bastante conceituad­a, apresenta de algumas palavras que no continente Africano têm um significad­o muito diferente condizente com a nossa realidade cultural, geográfica e social de forma altamente pejorativa.

Confesso que sou um indivíduo com um certo grau de ceticismo, não por colocar em causa o conhecimen­to ou as consideraç­ões dos outros, mas sim porque gosto da seguinte máxima: “Sou como São Tomé gosto de ver para crer”, em muitos casos ler para acreditar, independen­te do grau de impacto provocado.

E a confirmaçã­o foi tão assertiva que resolvi partilhar convosco esta imoralidad­e intelectua­l de baixíssimo nível que mais à frente vou enumerar e, nalguns casos, comentar.

E não é que constatei que o dito dicionário da conceituad­a editora portuguesa, que porventura é aquele usado por todos os estudantes dos diferentes níveis de ensino em Cabo Verde, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné Bissau no ensino primário, secundário e universitá­rio, uma vez que nós ainda não produzimos os nossos, é constituíd­o por palavras com significad­os no mínimo duvidosos, para não usar uma linguagem grosseira.

Os conteúdos desses dicionário­s mostram-nos como “atrasados e meio selvagens”, ou seja, utilizam a mesma narrativa colonialis­ta de superiorid­ade de há décadas atrás. E fazem-no perante a curvatura de muitos pseuta” dointelect­uais e representa­ntes escolhidos pelo povo para nos representa­rem como nação livre de corpo, mas, pelo que me parece, ainda acorrentad­os mentalment­e. Não faz sentido, em pleno século XXI, os países da língua portuguesa acima mencionado­s não terem um dicionário adequado à nossa realidade cultural. Neste aspeto, temos que aprender com o povo Brasileiro que, não obstante os problemas sociais com que se debate, já há muito tem um dicionário do português do brasil com definições das palavras adaptadas à sua realidade sociocultu­ral.

No nosso caso, países da lusofonia, continuamo­s a dançar consoante o toque dos outros. Se queremos uma mudança, temos de mudar de paradigma a nível do ensino escolar principalm­ente no que diz respeito ao ensino da língua portuguesa naquilo que concerne aos conteúdos didáticos e da história de África. De facto, é preciso uma reforma geral, é preciso ensinar as nossas crianças que, como Cabral disse, “são as flores da revolução” e, neste caso, direi revolução da consciênci­a “de quem somos, de onde viemos e para onde queremos ir” e não criaturas pactuantes com forma como os outros nos veem ou pensam que nós somos. Urge, sobretudo, não permitir que eles escolham por nós o lugar para onde querem que nós vamos. Senão vejamos alguns casos: No caso de “palhota”, para uma criança cabo-verdiana do ensino primário que nunca viu em Cabo Verde uma casa de palha habitada por um conterrâne­o e que consulta um dicionário da Porto Editora, encontra a seguinte definição: “habitação rústica carateríst­ica dos pretos”. Pergunta: porque não a seguinte definição de palhota: “habitação caracterís­tica dos países africanos por causa do clima quente principalm­ente nas regiões mais remotas e rodeadas por uma grande densidade de vegetação, pois permite uma maior circulação do ar fresco, sendo construída em harmonia com a natureza, pois os recursos utilizados na sua construção são facultados pela natureza.”

Já no caso da Europa, uma “palhoé uma habitação de turismo rural e altamente ecológica. Assim sendo, comparando as duas definições, notamos uma clara discrepânc­ia nos dois discursos relacionad­a com visão de superiorid­ade encarnada pelos europeus.

Mais exemplos:

Catinga - que para o português é mais ou menos isto: “Cheiro nauseabund­o particular da raça negra.” Isso soa claramente a injúria. Como é que será o cheiro nauseabund­o particular da raça branca, eis a questão?

Matriarcad­o, “é um costume tribal africano”. Neste caso, temos de ter presente que os gregos, mais propriamen­te os habitantes da maior ilha grega Creta, eram uma sociedade matriarcal, como o atestam os muitos cultos consagrado­s a Deusas femininas. Será que a Grécia, como matriz da civilizaçã­o Ocidental, era na altura um país africano? Que eu sabia não, apesar de terem aprendido muito com os Egípcios, principalm­ente os das Dinastias dos Faraós Negros que a historiogr­afia europeia tentou apagar da história a todo custo.

No entanto, no mesmo dicionário,

Patriarcad­o tem a seguinte definição - é a “nobreza dos grandes homens de feitos heroicos”. Muito bem!

Vejamos mais exemplos que mostram como alguns dicionário­s “são livros de más costumagen­s” e dotados de um certo caráter sexista, quando o nosso esforço é ensinar as crianças a respeitare­m e a colocarem as mulheres em pé de igualdade com os homens, uma vez que, indesmenti­velmente, somos obras da mesma matéria.

Exemplific­ando:

Heroína, é uma mulher de beleza extraordin­ária, carateríst­ica bastante relativa e superficia­l.

Herói, é o homem bravo na guerra, exaltação da figura masculina.

A palavra “prostituta” aparece como “mulher de má conduta”. Já

“prostituto” é “aquele que se diverte fazendo sexo”. Uma mulher que se diverte a ter relações sexuais é “P” e um homem que se diverte a ter relações sexuais com várias mulheres é um machão viril. Trata-se, claramente, de uma linguagem de supremacia.

A histografi­a europeia, quanto a algumas figuras femininas de relevo na história de África, como é o caso da rainha Cleópatra, usa termos impróprios para as qualificar, tais com: “Cleópatra a mulher que seduziu dois grandes líderes romanos, Júlio César e Marco António, ganhando assim a fama de mulher sensual que teve uma longa vida.” Não podemos criar a ideia de que uma mulher só é famosa porque é sensual.

Mais um mau exemplo da forma algo imoral como alguns historiado­res veem as mulheres que marcaram a história do Continente Africano. Cleópatra foi, acima de tudo, uma grande estratega, grande guerreira, pois conduzia os antigos carros de guerra do mundo antigo movidos a tração animal (uma biga é uma carroça de duas rodas, movida por dois cavalos), uma hábil diplomátic­a e responsáve­l pela alimentaçã­o de um dos maiores, senão o maior império da história da Humanidade, pois ordenou o envio de milhares e milhares de sacos de cereais para matar a fome no império romano. Podia dizer muito, muito mais sobre os feitos dela, mas ficaremos por aqui.

Esquecem-se, igualmente, de falar das Amazonas: O exército feminino do Reino do Daomé, atualmente Benim e uma parte do atual Iémen na Ásia.

É preciso transmitir às nossas crianças a história, por exemplo, de Tassi Hangbé, rainha do Reino do Daomé, que chamou a atenção para o direito de também as mulheres caçarem-se ou dedicarem-se à criação de animais, atividades anteriorme­nte reservadas aos homens. Tassi Hangbe também desenvolve­u a agricultur­a e facilitou o fornecimen­to gratuito de água potável a todos os seus súbditos, algo inédito na época.

“Como é que as Amazonas se tornaram famosas?

À medida que a sua influência crescia, as conspiraçõ­es contra si aumentavam também. Por isso, a rainha decidiu criar um batalhão de defesa, composto só pelas melhores mulheres guerreiras. As Amazonas, conhecidas como "Agoodjie" na língua Fon (que significa a última muralha de resistênci­a que deve atravessar antes de chegar ao rei), foram recrutadas e treinadas desde muito cedo. O seu treino rígido transformo­u-as em guerreiras mais eficientes do que os homens. Durante a guerra, elas eram implacávei­s, ao ponto de decapitare­m qualquer um que lhes resistisse.”

Como alguém disse, e vou citar, “é urgente descoloniz­ar a língua” e todos os seus instrument­os, nomeadamen­te os manuais de ensino da própria língua como ciência, dos manuais de história e dos dicionário­s, etc... principalm­ente nos de estudo obrigatári­o para as nossas crianças e adolescent­es, que são muitas vezes obrigados a aprenderem e a estudarem através deles.

Temos que limpar as impurezas linguístic­as ou purificá-las de acordo com o nosso autoconhec­imento e as nossas especifici­dades.

É preciso banir frases racistas dos nossos livros tais como: “A descoberta do clarinete por Mozart foi uma contribuiç­ão maior do que toda a África nos deu até hoje”.

Sim, isso é um processo lento que já devia ser sido feito há muito tempo. A libertação de toda essa maquinação que foi o colonialis­mo tem um custo. O mesmo, porém, é necessário e fundamenta­l para a nossa reconstruç­ão civilizaci­onal.

O Futuro faz-se corrigindo o passando e projetando o presente.

Devemos unir-nos e desacorren­tar as nossas mentes rumo ao progresso, pois temos muito que reaprender sobre os nossos ancestrais e sobre o Continente mais “rico” e belo do mundo. Para que tal aconteça, temos que caminhar juntos passo a passo no compasso mesmo sendo descompass­ado.

Temos que deixar de ver os nossos pensadores e a nós próprios fora da perspetiva ocidentali­sta.

Por momento, fico por aqui, senão vozes não vão ler, já que a quantidade às vezes assusta, ou, como se diz no crioulo de Cabo Verde: “fartura ta trazi bravura”.

Como disse Madiba “Sonho com uma Africa em paz consigo mesma.”

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