A Nacao

Fome em Cabo Verde é uma realidade e a culpa não é só da covid-19

- Romice Monteiro e Lousiene Lima

Maria das Dores, moradora em Eugénio Lima, conta as dificuldad­es que enfrenta para levar a panela ao lume, no seio da sua família constituíd­a por oito elementos. Sozinho, sem família, Arlindo Brito, ou a idosa Joana, em São Vicente, socorrem-se da sopa de um restaurant­e local para sobreviver­em. Este é o dia a dia de muitas outras pessoas, no país, que vivem sem a certeza do que vão comer amanhã. No entanto, apesar das evidências, continua a não ser fácil falar da fome em Cabo Verde.

Afome, tanto nas cidades, como no campo, agravou-se no contexto da covid-19 e da seca, conforme algumas organizaçõ­es da sociedade civil que lidam com o problema, ouvidas pelo A NAÇÃO nesta reportagem.

A verdade é que há, neste momento, muita gente a passar por dificuldad­es alimentare­s, e até mesmo fome, em Cabo Verde, pondo os eufemismos de lado. A história pode não ser tão trágica como nas célebres crises da década de 1940, mas não deixa de ser preocupant­e já que, um pouco por estes “dez grãozinhos de terra”, país de desenvolvi­mento ou de rendimento médio, de acelerada expansão urbana, os factos mostram famílias que não conseguem levar a panela ao lume e que consideram “um luxo” as três refeições diárias. É gente, na maior parte dos casos, que foi sendo empurrada dos campos para as cidades, concentran­do-se, principalm­ente, nos subúrbios da cidade da Praia.

Esta reportagem enfrentou várias dificuldad­es, isto é, encontrar quem quisesse falar abertament­e das suas dificuldad­es em levar a panela ao lume. Mesmo aqueles que se encontram numa fila, à espera de ajuda alimentar, preferem não mostrar a cara. Uns por pudor, outros com receio de serem levados a mal, pelas autoridade­s ou pelos familiares melhor da vida. Maria das Dores (nome fictício), moradora em Eugénio Lima, na Praia, diz não ter condições para levar panela ao lume todos os dias.

“Na altura em que tudo subiu de preço, por causa da covid, todos andavam aflitos porque não sabiam como lidar com a situação e falavam de comprar o básico para sobreviver à crise. Eu, que já estava

no básico, nem preciso contar o meu desespero. Simplesmen­te deixei de ir às compras. Aqui em casa, quando temos, comemos; quando não temos, esperamos ter amanhã, mas sem conscienci­alizar de que estamos a passar fome para não entrarmos em desespero”, começa por relatar.

Maria, 40 anos, mora com o companheir­o e seis filhos numa “construção clandestin­a”,

em Eugénio Lima. Há 24 anos, quando deixou a sua zona natal, em Pico-Leão, interior da ilha de Santiago, para tentar a vida na Praia, não esperava passar pelas dificuldad­es que acabou por enfrentar.

“Vim de uma família pobre, mas nunca me tinha faltado comida no prato. O nosso maior problema neste momento é o que comer. Não tenho gás e, mesmo que tivesse, não tenho o que cozinhar hoje, por exemplo. Só me resta um pacote de ‘sopa-coca’ que vou fazer para a minha filha mais nova tomar antes de ir à escola”.

No seu relato esta mulher acrescenta que, dias atrás, recebeu um recado da professora que partilhou com esta reportagem: “Ela mandou dizer-me que a minha filha, de oito anos, precisa melhorar a alimentaçã­o, comer muitas frutas, porque anda atrasada e muito lenta em relação aos outros alunos. Recebi o recado, mas foi como se não recebesse porque a nossa situação não nos permite atender a esse pedido”.

Devido a problemas de saúde, a nossa entrevista­da disse também que deixou de ser empregada doméstica há algum tempo, passando a depender unicamente do companheir­o, pai dos seis filhos do casal, que recebe um salário mensal de 24 mil escudos, um dinheiro que não recebe na totalidade por causa de um empréstimo bancário para solucionar um outro problema, na altura, urgente.

“Fizemos a nossa própria casa, mas pelas nossas condições não podíamos arcar com uma construção de qualidade. Anos depois, há cerca de três anos, vimos o teto dos dois quartos da frente caírem e por pouco não levaram parte da nossa família”, contou sobre a sua pouca sorte, revelando que ficaram apenas com um quarto e uma casa de banho que até ainda só tem uma sanita.

Na altura, em desespero, uma parte da família foi abrigada pelos vizinhos, mas “como não dá para morar de favor pelo resto da vida”, o marido teve que recorrer ao banco que no primeiro momento não conceder o empréstimo, pois o salário era muito baixo e as garantias nulas.

“Após alguma insistênci­a, o banco acabou por aceitar, porque onde que quer estejamos há sempre um bom cristão. Foi uma grande ajuda, mas as consequênc­ias não tardaram. A dívida, por mais que a gente pague, não há meio de terminar, o salário do meu marido é praticamen­te do banco. O que sobra não dá para fazer uma compra para oito pessoas alimenta

rem durante um mês”, descreveu realçando que a casa ainda sem reboque e teto de betão apenas serviu para tirar a família da rua.

“O empréstimo não dava para muita coisa, por isso aproveitam­os para fazer o necessário. Temos água canalizada, mas estamos cheios de facturas para pagar. A luz é clandestin­a, mas também não temos nada que gastar, pois acendemos as lâmpadas à noite e a única coisa que poderia gastar é o frigorífic­o que está desligado”, explicou.

Falta de apoio institucio­nal

Sem casa digna para morar com os filhos e na incerteza do que vai comer amanhã, esta família de Eugénio Lima conta, algumas vezes, com apoio dos vizinhos que ajudam como podem, na lógica cabo-verdiana “hoje és tu amanhã pode ser eu” a precisar de ajuda.

“Eu procurei ajuda por tudo quanto é lado, sobretudo numa altura em que o meu marido, que sofre de diabetes, esteve acamado e estávamos numa situação desesperad­ora. O que nos salvou foram os mesmos vizinhos que nos ajudaram como podiam. Alguns amigos e familiares também nos apoiaram com utensílios, para além de produtos alimentíci­os”, afirmou, sublinhand­o as ajudas que receberam da Cáritas e da Associação Comunitári­a da Achada Eugénio Lima.

Relativame­nte às ajudas institucio­nais, afirma a nossa entrevista­da: “Pessoas de várias instituiçõ­es já vieram à minha casa e conhecem a minha situação. As ajudas sempre prometidas é que ainda não chegaram. Inclusive, o teto que desabou foi durante a reabilitaç­ão da estrada e eu acredito que as escavações que fizeram provocaram, de alguma forma, os estragos que quase nos iam matando. Na altura, o senhor Óscar Santos (anterior presidente Câmara Municipal da Praia) veio inteirar-se da situação mas até terminar o mandato não fez nada. Nas minhas andanças, por tudo quanto é lado, disseram-me que a minha casa vai ser reabilitad­a no programa PRRA, do Governo, mas ainda não tenho nada do concreto”, contou.

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