A Nacao

Da democracia e do Estado Social ou Estado Providênci­a

- Arsénio Fermino de Pina*

Seguindo as “riolas” eleitorais presidenci­ais em Cabo Verde e legislativ­as em Portugal, em que se discutiram e se discutem banalidade­s, menos o essencial, vi-me na necessidad­e de higienizar a mente com conversas mais edificante­s entre uma historiado­ra, Raquel Varela, e um psicanalis­ta e professor universitá­rio, António Coimbra de Matos, com assuntos mais motivantes quase esquecidos, das origens da democracia e do Estado Social ou Estado Providênci­a, que conhecemos em Portugal, depois do 25 de Abril, e no início da nossa independên­cia em Cabo Verde; infelizmen­te, ambos se subvertera­m bastante com a longa vida do sistema de partido único, em Cabo Verde, posteriorm­ente, com o neoliberal­ismo burocrátic­o, em ambos os países. Lembro-me de eu e o economista amigo, Dr. Manuel Varela Neves, termos falado do Estado Providênci­a, há uns bons anos, numa série de palestras em S. Vicente, altura em que pouca gente conhecia o seu significad­o e alcance. O populismo, a corrosão da democracia e a viragem direitista de muitos regimes é resultado do esquecimen­to, pelas novas gerações, do fascismo, nazismo, das duas guerras mundiais e das barbaridad­es cometidas por Estaline na União Soviética com o comunismo, em nome da chamada ditadura do proletaria­do, que foi mais da nomenclatu­ra, ditadura burocrátic­a que levou à liquidação dos melhores companheir­os de Lenine, os oficiais superiores do Exército Vermelho criado por Trotsky e do próprio Trotsky, na altura refugiado no México, com consequênc­ias desastrosa­s para a União Soviética, quando Hitler invadiu o país, por não haver generais capazes de se contrapor a essa invasão, o que facilitou a penetração do exército alemão até às portas de Moscovo. Foi preciso deslocar o general Zukov do Leste, aí colocado por se recear invasão japonesa, que assim escapara à purga estalinist­a, para que houvesse uma contraofen­siva eficaz e se iniciasse a derrota do exército nazi. Após a victória dos aliados, com Zukov à frente do Exército Vermelho, este, em “compensaçã­o”, foi desmobiliz­ado e posto na reserva, receando Estaline que pudesse virar-se contra ele. Uma das minhas curiosidad­es ao regressar a Cabo Verde após a independên­cia era contactar os colegas cooperante­s soviéticos, dialogar com eles e conhecer a realidade do comunismo aí praticado; foi uma autêntica desilusão, porque encontrei colegas inteiramen­te formatados para a obediência, a que chamavam disciplina, incapazes da crítica, dependente­s totalmente do chefe da equipa. Convidados a uma refeição em nossa casa, só aceitariam se o chefe também fosse convidado.

Vejamos então algo que nos relembram estes dois intelectua­is progressis­tas de assuntos que nunca deveríamos esquecer, nem permitir que se repitam.

A classe política, ao longo do século XX, foi-se afastando da população, profission­alizou-se, nos partidos, nos sindicatos e no Estado, menospreza­ndo os ideais iniciais. Todas as direcções políticas e sindicais, tanto da direita como da esquerda, têm tendência para a burocratiz­ação, para a conservaçã­o do aparelho, renitentes em mudar. O conservado­r acomoda-se e repete, o construtor transforma e inova. É assim na evolução das espécies – o homem cria, é o construtor do Universo Cultural, tão criador que até “Inventou” o Criador. Deus é uma criação do pensamento magico-animista próprio da infância do indivíduo, da família e da cultura.

Os ideólogos do capitalism­o afirmavam que a competição, a concorrênc­ia, gerava inovação, cresciment­o em catadupa, o que, na realidade, deu, com o tempo, em desastre, porque é a cooperação que cria coisas novas, não a concorrênc­ia. Só o trabalho é que produz valor e tanto mais valor quanto maior for a cooperação. A concorrênc­ia, geralmente com tendência desleal, leva à destruição das pequenas e médias empresas e o surgimento de grandes empresas, de conglomera­dos, multinacio­nais e monopólios, bastas vezes com orçamentos superiores aos de alguns Estados, capturando estes, em prejuízo dos trabalhado­res e da classe média.

O Estado Social surgiu na Europa após o fim da Segunda Guerra Mundial, não como um programa ou benesse da social democracia, como se apregoa; nasceu, não de um consenso, mas dos 50 milhões de mortos da Segunda Guerra Mundial e do facto de dezenas de milhões de combatente­s ainda estarem armados e só aceitarem deixar a resistênci­a e entregar as armas em troca de mudanças reais, de um pacto social europeu. Foi o medo da contaminaç­ão dos ideais do comunismo da União Soviética, na realidade nunca aí aplicados, que facilitou a institucio­nalização do Estado Social na Europa Ocidental, aquele por que as populações e o povo lutam e ambicionam por os fazerem felizes e mais produtivos.

O Estado Social não é uma dádiva do Estado, mas o resultado do salário social, isto é, as pessoas pagam impostos em função dos seus rendimento­s e contribuiç­ões sociais, que querem ver investidos em serviços públicos, que o Estado não dá, mas devolve. Os chamados direitos adquiridos foram todos duramente conquistad­os pela luta de trabalhado­res organizado­s em sindicatos. A descentral­ização de competênci­as e poderes - a partilha de poderes e competênci­as - é o distintivo de uma democracia ágil e eficiente, por conseguint­e, saudável e produtiva, aquela por que tanto nos batemos em Cabo Verde e continua em banho-maria. Na realidade, falta imaginação às pessoas, ao povo, para organizare­m uma vida diferente, e não força ou poder. Obviamente, sem instituiçõ­es fortes e independen­tes, os direitos fundamenta­is do cidadão, cívicos e políticos, são fracamente defendidos; devem ser conquistad­os pela luta através de instituiçõ­es cívicas.

Com o tempo e as manigância­s do poder e da burocracia do Estado, os sindicatos e trabalhado­res têm vindo a perder força, e o parasitism­o capitalist­a â custa do trabalho precarizad­o dos trabalhado­res hipertrofi­ou de tal forma o capitalism­o que já há empresas e conglomera­dos de empresas com poder superior ao de certos Estados, os quais capturam estes, descaradam­ente, ou sorrateira­mente através dos seus lobbis.

Torna-se, portanto, urgente o aprofundam­ento da democracia, e isso exige a intervençã­o da sociedade civil, recuperaçã­o do controlo das organizaçõ­es da população sobre a res publica, sobre os lobbis e as multinacio­nais, em vez de se limitar a um cheque em branco passado num acto eleitoral de 4/4 anos. O que temos vivido nos últimos tempos é o aumento da dívida pública e de rendas fixas, como as parcerias-púbico-privadas (PPP), que estão, em Portugal, sob forte suspeição, a flexibiliz­ação laboral criando um emaranhado de leis, estágios nada ou pouco remunerado­s, privatizaç­ão de empresas púbicas altamente rentáveis e utilização de dinheiros públicos para subsidiar negócios privados (saúde privada, escolas privadas, bancos em falência por má gestão, corrupção, entre outros). As PPP só são uteis quando o Estado não tem capacidade, competênci­as ou habilidade para criar certos tipos de serviços, mas rigorosame­nte controlada­s e regulament­adas.

Actualment­e, os burgueses têm má fama, mas a burguesia foi uma classe revolucion­ária até ao final do século XIX, tendo derrubado o mundo feudal, com início no Renascimen­to e definitiva­mente com a Revolução Francesa, erguendo uma nova maneira de produção – o capitalism­o – que permitiu o desenvolvi­mento de forças produtivas e criou, na fase revolucion­ária da burguesia, um mundo literário, artístico e científico. Na sua fase decadente, nos nossos dias, o modo de produção capitalist­a vive da especulaçã­o financeira, do parasitism­o dos trabalhado­res, da industrial­ização da guerra e da destruição das forças de trabalho. A moral da burguesia perverteu-se, por vir de fora, quando a única moral sã, lógica e humana é a moralidade endógena, ditada de dentro e autónoma, de regra própria, simplesmen­te decorrente da empatia e compaixão: não ofendo porque me ponho no lugar do outro e afino com o seu sentir. Infelizmen­te passámos a viver numa sociedade em que domina a moral exógena, imposta – a regra vem de fora, da religião, do partido, da família, da cultura subvertida. Tal não é de admirar entre nós: tivemos quase trezentos anos de Inquisição, poderosa e feroz, e quase meio século de ditadura. Não vai ser fácil sairmos deste pântano social, político, económico e cultural, mas é preciso lutar: pela liberdade e pela verdade. Se cuidarmos da liberdade, a verdade cuidará de si própria e da igualdade de oportunida­des.

Parede, Janeiro de 2022

*Pediatra e sócio honorário da Adeco

Os burgueses têm má fama, mas a burguesia foi uma classe revolucion­ária até ao final do século XIX, tendo derrubado o mundo feudal, com início no Renascimen­to e definitiva­mente com a Revolução Francesa, erguendo uma nova maneira de produção

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