Documentário MAIO alerta para pressão da pesca estrangeira e marginalização social dos pescadores
A dinâmica pesqueira artesanal na ilha do Maio tem sido objecto de pesquisa de doutoramento de João Paulo Araújo, antropólogo brasileiro e autor do documentário etnográfico MAIO, lançado esta quarta-feira, 02 de Fevereiro. Esse investigador deixa um alerta para duas realidades preocupantes: uma relativa à escassez de peixe nas costas provocada pela pesca de rede e outra à marginalização social dos pescadores e peixeiras.
Apesca artesanal e as comunidades pesqueiras que vivem deste tipo de pesca no Porto Inglês, ilha do Maio, foi objecto de mestrado e agora de doutoramento de João Paulo Araújo.
Fruto desta pesquisa, Araújo lançou esta semana o documentário MAIO, cujo objectivo é alertar para a importância social da pesca artesanal para Cabo Verde e servir como um sinal de alarme sobre o actual cenário de escassez do pescado no arquipélago.
João Paulo Araújo estabeleceu ligação com Cabo Verde a partir de um intercâmbio universitário, em 2015. O fascínio pelo mar e a afinidade académica foram os factores-chave para se interessar pela actividade pesqueira artesanal no arquipélago, embalados pelo “cenário trágico de escassez do pescado no arquipélago” relatado por pescadores nacionais nas pesquisas de terreno que foi fazendo.
Precisamente, o documentário ora lançado dá voz a pescadores com 20, 30 e 40 anos de trabalho, que relatam, segundo João Paulo, uma diferença muito grande entre o passado e o presente nas pes
cas artesanais no que diz respeito à escassez do pescado.
“Embora de perspectiva antropológica, não vejo qualquer motivo para não dar o máximo de crédito ao que dizem os mestres de pesca sobre seu ofício”, sublinha, acreditando que há evidências suficientes, inclusive para além dos pescadores, para se reconhecer a pressão que a pesca estrangeira exerce sobre os mares de Cabo Verde.
“Além das denúncias de pesca ilegal de tubarão já feitas pela ONG Biosfera, no âmbito dos acordos de pesca com a União Europeia, sabemos que há muita pesca não declarada destas embarcações, como também não é difícil encontrar pescadores que já se encontraram com barcos estrangeiros em áreas que deveriam ser exclusivas da pesca nacional”, aponta o investigador, em conversa com A NAÇÃO.
Marginalização social
Para além destas questões de ordem operacional do acordo de pesca, que, fazem o peixe diminuir e que obrigam os barcos industriais nacionais a realizarem suas capturas em áreas cada vez mais próximas da costa das ilhas, criando um cenário de disputa muito desigual, diz o antropólogo, os pescadores artesanais cabo-verdianos estão, cada vez mais, em situação de marginalidade social, contra a qual precisam lutar diariamente.
“Os pescadores do Maio, por exemplo, lutam diariamente no mar, mas também lutam em terra para serem ouvidos e para serem levados a sério em relação àquilo que estão dizendo sobre as pescas”, descreve, assegurando que, durante os anos de estudo, se deparou com “muito preconceito” em relação aos pescadores e peixeiras.
“Muitas opiniões equivocadas, o que é uma pena porque acredito na pesca artesanal de Cabo Verde como uma aliada poderosa em várias frentes. Afinal de contas, é ela que gera emprego, renda e dignidade para milhares de famílias, não destrói o meio ambiente, ajuda a garantir a segurança alimentar das camadas populares, enfim, ela entrega muitas coisas que a pesca estrangeira não consegue entregar”, alertou.
Falta de peixe associado à rede industrial
Com base nas narrativas dos pescadores da ilha do Maio, João Paulo Araújo diz que a pesca de rede, seja ela dos barcos europeus ou dos barcos nacionais que invadem suas áreas exclusivas de pesca, é vista como inimiga de uma vida tranquila, que os métodos artesanais sempre garantiram mas agora enfrenta o risco todos os dias.
“Para a grande maioria dos pescadores artesanais com quem conversei a falta do peixe está directamente associada à rede industrial, ao modelo capitalista de exploração do oceano e, portanto, a uma lógica de exploração que produz localmente um ambiente muito duro de incertezas em relação ao futuro”, assegura, acrescentando que não adianta legislar sobre áreas exclusivas e ignorar o que está acontecendo na prática.
Pesca de linha deve ser levada a sério
João Paulo Araújo acredita que a pesca artesanal de linha de mão em Cabo Verde deve ser levada a sério e deve ser vista com a importância que ela tem para o arquipélago como um todo.
“Eu acho que a marginalização social dos pescadores é uma questão histórica profunda que precisa ser enfrentada. Por isso acredito que uma gestão estatal das pescarias que quer ser chamada de democrática e responsável, precisa ouvir amplamente os pescadores antes de tomar qualquer decisão governamental que venha a afetar a vida destes pescadores”, expõe.
Os pescadores, acrescentou, “precisam ser incluídos mais na política do que em cartões postais, caso haja realmente algum interesse do governo em ajudá-los”.
MAIO, lançado no Canal da Primata Filmes, no Youtube, é um média-metragem com aproximadamente 34 minutos, que retrata exclusivamente pescadores e peixeiras de Porto Inglês, na ilha do Maio, falando sobre seu cotidiano nas pescas.
Foi realizado por Elis Borde, professora adjunta do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, e por Luís Evo, documentarista e fundador da produtora Primata Filmes.