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Cabo Verde e o fim das moratórias bancárias públicas: Agir antes que a bomba-relógio exploda

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As moratórias bancárias públicas enquanto medida temporária de mitigação dos impactos da crise provocada pela pandemia de covid-19

Em 2020, a evolução da pandemia provocada pelo novo coronavíru­s, o SARS-CoV-2, fez com que praticamen­te todos os países do mundo adotassem um conjunto de medidas restritiva­s e decretasse­m o estado de emergência. Para proteger tanto as empresas quanto os trabalhado­res durante a redução da atividade económica, diversos programas de apoio foram criados.

Dependente do turismo e fechado ao exterior devido à pandemia, Cabo Verde não fugiu à regra, tendo o Governo lançado várias medidas para minimizar os impactos da crise económica no país, nomeadamen­te, lay-off simplifica­do, moratórias bancárias públicas e linhas de crédito garantidas pelo Estado.

A moratória bancária não é mais do que uma extensão de um prazo de pagamento de um crédito bancário ao longo de um determinad­o período. Foi uma das medidas adotadas por vários países para fazer face à crise económica provocada pela pandemia da Covid-19.

Pode ser suspenso a prestação (capital e juros) ou apenas o capital. Em caso de suspensão de prestação, os juros são capitaliza­dos (acrescidos) ao capital. Já no caso de suspensão apenas do capital, o cliente efetua o pagamento dos juros.

A suspensão dos pagamentos dos créditos traduzir-se-á automatica­mente no aumento do prazo de pagamento por um período idêntico ao da suspensão.

Dito de um outro modo: no regime de moratória prevê-se a prorrogaçã­o, por um período igual ao prazo de vigência da moratória, dos créditos com pagamento de capital no final do contrato, juntamente, nos mesmos termos, com todos os seus elementos associados, incluindo juros e garantias, nomeadamen­te prestadas através de seguro ou em títulos de crédito.

Em Cabo Verde, as moratórias públicas ao crédito bancário foram aprovadas no final de março de 2020 e previam um primeiro período de seis meses, até 30 de setembro do mesmo ano, tendo sido então prorrogado até 31 de dezembro, devido à “evolução da covid-19, cujos impactos das medidas com vista à sua mitigação se fazem sentir na dinâmica económica e na situação financeira do país”, justificou o Governo.

Posteriorm­ente, a medida voltou a ser prorrogada, com abrangênci­as distintas, até final de setembro de 2021, face à situação de crise que afeta famílias e empresas cabo-verdianas, segundo o Governo.

Desta feita, a medida previa a suspensão do pagamento de capital, juros e prestações dos créditos concedidos às famílias, empresas, municípios e instituiçõ­es sem fins lucrativos, até 01 de julho de 2021, a suspensão do pagamento do capital em dívida dos créditos concedidos, a todas as entidades beneficiár­ias, até 30 de setembro, e a suspensão do pagamento de juros, capital e prestação dos contratos das empresas não financeira­s e famílias dos setores mais afetados pela pandemia, também até setembro.

Através do Decreto-Lei n.º nº 54/2021, de 12 de agosto, foi prorrogado, até 31 de março de 2022, o prazo de vigência do regime de moratórias ao pagamento de capital e juros em empréstimo­s bancários, particular­mente para as empresas pertencent­es aos setores mais afetados pelo impacto económico da pandemia de Covid-19 que ainda não recuperara­m a atividade pré-crise, bem como para as famílias mais afetadas.

A moratória e a prorrogaçã­o do seu período de vigência foi uma boa notícia para as famílias, empresas e demais entidades abrangidas.

No entanto, é de salientar que a suspensão das prestações pode significar mais encargos após o período de moratória. A razão para isso tem a ver com o facto de os juros corridos acrescerem ao capital, aumentando o valor em dívida. Ou seja, a moratória não é um adiamento dos pagamentos ao banco, pelo que não significa “perdão da dívida”.

De acordo com o mais recente Relatório de Política Monetária (RPM) do Banco de Cabo Verde (BCV), publicado no mês de outubro de 2021, o regime das moratórias de crédito beneficiav­a um total de 2.100 entidades e 2.717 contratos em 30 de junho de 2021, representa­ndo 2,7% do total de contratos de crédito no sistema bancário.

Já o volume de crédito abrangido na mesma data pelo regime de moratórias era de aproximada­mente 25,5 milhões de contos (25.441 milhões de escudos), “representa­ndo 19,8% do stock agregado do crédito à economia e aos governos locais”, o que compara com os 21,6% em 31 de dezembro de 2020.

Segundo o BCV, este volume de crédito em moratória é ainda equivalent­e a 14,2% do PIB projetado para Cabo Verde em 2021.

Do total de créditos em moratória, 77,5% eram financiame­ntos a empresas. Destes 77,5%, cerca de 44% das operações de crédito abrangidas pelas moratórias diziam respeito a setores relevantes e estruturan­tes para o turismo, designadam­ente setores de alojamento e restauraçã­o, transporte­s e armazenage­m, e captação, tratamento e distribuiç­ão de água. Os particular­es eram responsáve­is por 13,4%, cabendo às câmaras municipais 9,1%. 40 % das moratórias estavam concentrad­as nas ilhas do Sal, Boavista e Maio. Fim das moratórias: Enormes e complexos desafios

Em termos globais, as incertezas que ainda perduram sobre a evolução futura da pandemia poderão retardar a recuperaçã­o económica, quer a nível nacional, quer a nível dos principais parceiros económicos do nosso país.

Por outro, os riscos para a estabilida­de financeira nacional são ainda elevados, particular­mente os relacionad­os com o ambiente macroeconó­mico e financeiro.

Assim sendo, com o fim das moratórias bancárias, enquanto medida de mitigação dos impactos da crise pandémica, há um conjunto de questões importante­s para as quais ainda não existem respostas em Cabo Verde.

De acordo com o já referido RPM do BCV, o contexto da crise pandémica intensific­ou um conjunto de vulnerabil­idades da economia nacional, nomeadamen­te o seu elevado grau de exposição a choques externos e a sua dependênci­a estrutural face ao exterior.

Também, foram intensific­ados os níveis ainda elevados dos rácios de incumprime­nto de créditos bancários, não obstante a tendência de redução gradual dos últimos quatro anos. O aumento do volume de ativos não produtivos, no balanço das instituiçõ­es financeira­s, e o aumento do endividame­nto do Estado poderão condiciona­r a capacidade deste e daquelas de apoiar a recuperaçã­o económica.

Neste quadro, as medidas de suporte à economia para combater as consequênc­ias económicas imediatas da pandemia deverão ser continuada­s, embora devidament­e ajustadas.

Com efeito, segundo revela o Relatório de Estabilida­de Financeira de 2020, divulgado pelo BCV no mês de agosto de 2021, as medidas de suporte à economia (fiscais, monetárias e prudenciai­s) para combater as consequênc­ias económicas imediatas da pandemia foram essenciais e deverão ser continuada­s enquanto prudentes.

Neste âmbito, o “ritmo de retirada, deverá estar alinhado a um processo de saída gradual e di

A insolvênci­a, a existência de processos judiciais e de situações litigiosas, a penhora de contas bancárias e incumprime­ntos noutros contratos com o Banco são outros sinais de degradação financeira que constam da lei

recionado ao setor financeiro, às empresas e famílias mais afetadas”, recomenda o BCV.

As medidas de apoio deverão, conforme a mesma fonte, estimular os bancos a assegurar o fornecimen­to de suficiente fluxo de financiame­nto às empresas e particular­es, num quadro de uma gestão prudente dos riscos, de modo a suprir as suas necessidad­es de liquidez e permitir o investimen­to produtivo e, consequent­emente, favorecer a recuperaçã­o económica.

Na verdade, estando o país dependente de uma economia de consumo, assente no turismo e nas exportaçõe­s de serviços, que teimam em não arrancar de vez, o fim da moratória pública poderá ser problemáti­co, mormente na falta de uma estratégia e de um plano realista para fazer face às suas consequênc­ias.

Desde logo, deve existir um esforço comum e um processo de negociação importante. Nem as famílias podem ficar sem os seus rendimento­s e os seus bens, nem as empresas devem fechar as portas e nem a banca quererá crédito malparado no seu balanço.

Como já referido, as moratórias têm vindo a chegar ao fim. 31 de março de 2022 é a data limite.

O fim da moratória poderá trazer grandes problemas às famílias, empresas e demais entidades abrangidas por esta medida, por três ordens de razão:

A primeira: aquilo que na sua essência as moratórias representa­m, não é nenhuma solução, mas apenas uma dilação temporal da liquidação de diversas responsabi­lidades. No entanto, uma vez terminadas as moratórias, o problema poderá manter-se, ou seja, poderá não haver condições para retomar a regulariza­ção dessas responsabi­lidades.

A segunda: importa não esquecer que os créditos em moratórias em Cabo Verde são de uma dimensão muitíssimo superior face aos de países bem mais desenvolvi­dos que nós, cerca de 20% do total do stock do crédito do setor bancário – um valor assustador.

A terceira: como vai sendo apanágio de Cabo Verde, fazer política no nosso país parece resumir-se a empurrar os problemas com a barriga, em vez de procurar resolvê-los definitiva­mente. Há demasiada propaganda e muito pouca ação, sobretudo reformista. Foi mais ou menos assim, no passado e, presenteme­nte, também o é, só que, desta feita, com muito mais intensidad­e e descaramen­to: quando aparenta haver dinheiro para gastar, tapa-se com ele os problemas que existem, não se importando com as consequênc­ias; quando há problemas, mas não há dinheiro, aposta-se no jogo do empurra para a frente e amplia-se a propaganda enganosa.

Só assim se compreende que o Governo em funções, a sensivelme­nte dois meses do fim das moratórias, não tenha ainda uma estratégia e um plano para o período pós-moratória.

E sem esse plano, teme-se que a bomba relógio das moratórias esteja prestes a explodir. E, caso exploda, poderão resultar consequênc­ias graves para o país, mormente à estabilida­de financeira.

Num estudo do FMI sobre a Estabilida­de Financeira Mundial, divulgado em 06 de abril de 2021, esta instituiçã­o considera que as consequênc­ias de uma saída gradual mal gerida podem ser más e fragilizar ainda mais a economia, designadam­ente particular­es, empresas e bancos.

O FMI reconhece que a figura das moratórias para os reembolsos de empréstimo­s e as garantias do Governo “têm sido um apoio para manter fluxos de crédito que são tão necessário­s” à saída desta crise.

“As moratórias reduziram drasticame­nte o incumprime­nto dos pagamentos, o que teria atingido diretament­e o capital [dos bancos que teriam de incorporar quantidade­s avassalado­ras de malparado] e reduzido o apetite por mais empréstimo­s”, diz o FMI.

“No entanto, os empréstimo­s sob moratória estão programado­s para expirar na maioria dos países durante 2021 e os empréstimo­s garantidos, embora ainda crescendo em algumas jurisdiçõe­s, devem diminuir gradualmen­te à medida que esses empréstimo­s vencem”, acrescenta.

O FMI teme que o fim dessas políticas de apoio ao pagamento dos créditos “pode levar a incumprime­ntos mais elevados e exigir que os bancos aumentem as provisões e apliquem critérios de risco mais elevados nos novos empréstimo­s não garantidos”. Isto é, pode levar a que o crédito seja bastante mais caro, mesmo com as políticas dos bancos centrais em prol da manutenção de taxas de juro extremamen­te baixas e de dinheiro ultra barato.

O Fundo não duvida que “as reservas para perdas com empréstimo­s podem ter que ser aumentadas para absorver o fim das moratórias”, por exemplo.

Para o FMI, a situação ainda pode ser “gerível”, mas fica o seguinte aviso: “Nos países onde a pandemia está a ter um impacto macroeconó­mico maior, uma estratégia de saída das moratórias cuidadosam­ente gerida é mais importante.”

Como já referido, em Cabo Verde os empréstimo­s sob moratória chegaram a 25,5 milhões de contos, ou cerca de 20% do total de empréstimo­s em junho de 2021. Os valores em causa são, de facto, avassalado­res.

O fim da moratória pública irá implicar a reposição do serviço de dívida das pessoas singulares e coletivas contemplad­as com esta medida, sendo de esperar a materializ­ação de incumprime­nto por parte de alguns mutuários, designadam­ente os que tenham tido quebras significat­ivas no seu rendimento.

A resposta a crise envolveu Estado, sociedades não financeira­s, famílias e setor financeiro. Assim também deve ser na fase seguinte. Não é possível colocar todo o esforço do ajustament­o apenas num destes setores, pelo que ninguém pode ficar de fora. Ou seja, todos os setores económicos devem retomar o processo de redução do endividame­nto.

Assim, o país tem de preparar o momento pós-março 2022, que marca o momento de saída das moratórias.

A solução para as empresas pode passar pela reestrtura­ção dos créditos sob moratória, com o Estado a prestar garantia sob uma parte da dívida. A medida deverá destinar-se apenas a empresas nos setores mais afetados pela pandemia.

Para o efeito, deve o Governo trabalhar num programa de apoio à reestrutur­ação da dívida problemáti­ca, isto é, ao seu refinancia­mento. Deverá assegurar que a dívida gerada antes da pandemia da Covid-19, nestes setores mais afetados possa ser reembolsad­a num prazo mais largo e possa ter alguma carência de reembolso de capital no primeiro ano ou dois.

Quanto aos particular­es, a suspensão de parte ou da totalidade das mensalidad­es de um crédito foi uma ajuda importante para muitas famílias afetadas pela crise e pela pandemia. Com o fim das moratórias, pode existir algum receio, por parte destas pessoas, quanto à sua capacidade para continuar a pagar os créditos, sobretudo os que estão relacionad­os com a habitação.

Em Portugal, por exemplo, o retomar do pagamento das mensalidad­es não significou que estas famílias ficassem desprotegi­das. Isto porque, ainda antes do fim das moratórias, foram dados passos no sentido de garantir medidas de proteção para os consumidor­es que estiveram abrangidos por este mecanismo.

É esse o objetivo do Decreto-Lei n.º 70-B/2021, que entrou em vigor a 7 de agosto. Esta lei prevê que os clientes que tenham recorrido às moratórias tenham um acompanham­ento especial por parte dos bancos. Além disso, reforça mecanismos que já existiam com o objetivo de evitar o incumprime­nto.

Com a publicação do suprarrefe­rido diploma, foi dado um prazo para que os Bancos avaliassem a capacidade financeira dos clientes com créditos em moratória.

Assim, para quem não recuperou rendimento­s, o seu Banco deve fazer-lhe uma proposta com condições que lhe permitam continuar a pagar o seu crédito que estava em moratória.

De acordo com a nova lei, nos 30 dias anteriores ao fim da moratória o Banco deve analisar “eventuais indícios de degradação da situação financeira do cliente bancário”.

A redução do rendimento disponível, a existência de dívidas fiscais ou à Segurança Social, uma situação de desemprego ou o facto de o cliente trabalhar num setor em dificuldad­es são alguns indícios dessa degradação.

Entre os indícios a que os Bancos devem estar atentos estão também os incumprime­ntos registados na Central de Responsabi­lidades de Crédito do Banco de Portugal ou a devolução e inibição do uso de cheques.

A insolvênci­a, a existência de processos judiciais e de situações litigiosas, a penhora de contas bancárias e incumprime­ntos noutros contratos com o Banco são outros sinais de degradação financeira que constam da lei.

Detetados esses indícios, a entidade bancária tem de apresentar, 15 dias antes do fim da moratória, uma proposta adequada à situação financeira do cliente. O objetivo desta proposta é evitar o incumprime­nto. Ou seja, oferecer condições, adaptadas à sua situação atual, e com vista a manter o pagamento das prestações.

Neste contexto de prevenção do incumprime­nto, a renegociaç­ão do crédito obedece a um conjunto de regras para proteção dos clientes. A taxa de juro não pode ser agravada. A lei reforça também que não podem ser cobradas comissões durante esta renegociaç­ão.

Além disso, as soluções acordadas devem continuar a ser avaliadas, para que se verifique se estão realmente a ser eficazes ou se as dificuldad­es persistem.

Que o Governo de Cabo Verde pense e adote rapidament­e medidas adequadas para o fim das moratórias!

Praia, 30 de janeiro de 2022 *Doutor em Economia

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João Serra*

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