Quando o crime não é crime e a denúncia passa a ser crime
Até agora, o que se tem dito acerca do ilícito criminal, alegadamente cometido pelos jornalistas Hermínio Silves (Santiago Magazine) e Daniel Almeida (A NAÇÃO), é que estes dois profissionais e os respectivos órgãos terão divulgado algo eventualmente relacionado com um suposto crime de homicídio, alegadamente cometido há sete anos, mas cujo tratamento processual do mesmo, supostamente, ainda se encontra na fase de instrução.
Assim, pelo muito que já foi dito, os referidos jornalistas terão cometido um crime de violação de segredo de justiça por terem discorrido nas suas peças noticiosas sobre esse alegado crime de homicídio, ainda em fase instrução preparatória.
Como fundamento legal da prática deste crime, o Ministério Público, na pessoa do seu titular (Dr. José Luís Landim) indica os artºs 112º e 113º do CPP.
Ora, diante disso, até que ponto podem ser considerados estes dois artigos como restrições ou excepções aos dispostos nos números 1, 3 e 8 do artº 60º da Constituição, norma sistematicamente inserta na Parte II da nossa Constituição, epigrafada sob o título de Direitos e Deveres Fundamentais?
Impõe-se esta pergunta porque, como já foi dito, os senhode res Hermínio Silves e Daniel Almeida são jornalistas de profissão e, a avaliar pelo que se tem noticiado, nunca foram tidos, a título algum, até à data da publicação dos seus artigos, como intervenientes processuais no alegado processo do crime de homicídio ainda em fase instrução.
Assim sendo, como considerá-los indiciados da prática de um crime de violação de segredo de justiça nos termos dos já citados artigos do CPP, como pretende o Senhor Procurador Geral da República?
Com alguma displicência se faz aqui referência a estes dois artigos porque, em boa verdade, e ao contrário do que se tem dito, os mesmos em nada põem em causa a liberdade da imprensa consagrada nos termos do artº 60º da Constituição.
Deste modo, andar a dizer que estes dois artigos têm de ser «revistos» ou «alterados», para que a consagração da liberdade da imprensa seja entre nós uma realidade efectiva, é apenas uma tentativa de querer desviar a atenção do problema real criado, agora, com a desarvorada perseguição da imprensa.
Ou seja, estamos diante de uma clara tentativa de eliminação da liberdade da imprensa, por medo que, ardilosamente, e do alto, se pretenincutir aos jornalistas, não obstante a consagração constitucional dessa liberdade como um direito fundamental, de todo pertencente ao domínio do Direito Constitucional, e em nada podendo ser diminuído por lei ordinária alguma.
De referir que, nos termos do nº 2 do artº 112º do CPP, um jornalista só pode cometer um crime de desobediência qualificada, caso, enquanto interveniente processual relativamente a um determinado facto em instrução, se tenha permitido a divulgar aspectos de desenvolvimento do mesmo durante a instrução, apesar de previamente ter sido ordenado e advertido pelo Ministério Público a não fazer, sob pena de incorrer na pena de um crime de desobediência qualificada, qualquer divulgação referente ao facto, antes do encerramento da instrução do mesmo.
Fora dessa hipótese, em tudo compatível com o âmbito da protecção da norma constitucional, garante da liberdade de imprensa, não há forma de se valer dos invocados artigos do CPP, para os brandir como exemplos de restrição normativa do estatuído nos termos do artº 60º da Constituição.
A ter que se encarar de frente tudo o que, a propósito, vem sendo noticiado, o que se tem a dizer é que, com a perseguição dos jornalistas Hermínio Silves e Daniel Almeida, mais os respectivos órgãos para os quais trabalham, nos termos já divulgados, o que se verifica é um verdadeiro atentado à Constituição em tudo o que ela garantidamente consagra acerca da liberdade da imprensa. O problema – insisto – não está nem no artigo 112 nem no 113 do CPP. O problema está na leitura que se pretende impor, particularmente, ao artigo 113. Ao contrário do que também foi dito, o foco está, sim, no Ministério Público, na leitura que este pretende fazer, chocando claramente com o artigo 60 da Constituição.
De qualquer modo, vale-nos como consolo a sábia advertência de quem, atempadamente, se fez ouvir com muita proficiência: antes o excesso da liberdade da imprensa do que a eliminação ou cerceamento da mesma.
Do nosso ponto de vista, o real problema é que, por vezes, em algumas partes deste planeta, os crimes não são crimes, mas as denúncias dos mesmos já os são, e bem graves.
Como conviver com esta realidade quando, quem por direito e obrigação, se põe ao lado do crime?
* Jurista que, por inerência de funções, não pode assumir a autoria o artigo.