A Nacao

Da bola aos pincéis e tintas

- Louisene Lima

Liliana Fonseca, 54 anos, foi durante muitos anos professora de educação física e dirigente desportivo. Nascida na ilha de São Vicente, no Monte Sossego, bairro onde ainda reside, e à espera da aposentaçã­o, decidiu retomar e dar curso a uma outra paixão, antiga, as artes plásticas.

Com uma vida bastante activa, marcada por uma longa entrega ao desporto, Liliana Fonseca sempre se destacou nesta área, maioritari­amente, dominada e liderada por homens. Ao mesmo tempo, porque quem corre por gosto não se cansa, nunca deixou também de dar aulas gratuitas de educação física; actualment­e, em colaboraçã­o com a Delegacia de Saúde do Monte Sossego, trabalha com pessoas da terceira idade.

Em conversa com A NAÇÃO conta que praticou basquetebo­l, andebol e vólei, anos a fio, alinhando inclusive pelo Clube Desportivo de São Vicente, uma equipa militar, de que foi uma das fundadoras, tendo igualmente vestido a camisola da selecção nacional de algumas dessas modalidade­s. Além de atleta, foi treinadora nacional de futebol feminino e o basquete feminino sub 16.

Como dirigente desportivo, durante 20 anos a nossa entrevista­da trabalhou na Associação Regional de Futebol de São Vicente, tendo em 1993 ido representa­r essa entidade na cidade da Praia, junto da Federação Cabo-verdiana de Futebol (FCF).

“Lembro-me de uma situação engraçada, que ilustra bem a nossa situação. Cheguei ao local e havia uma reunião de mulheres e numa outra sala a reunião da Federação, dirigi-me para a reunião da Federação e um senhor, querendo ajudar-me, disse-me que ‘a reunião das senhoras’ era na porta ao lado, ao que lhe respondi: ‘Eu vim representa­r a Associação Regional de Futebol de São Vicente’. Foi uma grande supressa porque era a primeira vez que uma mulher ia participar numa reunião da Federação”, conta.

O reacender da chama

Hoje, com a covid-19, e à medida que se aproxima a hora da reforma, Liliana Fonseca confessa que sentiu reacender nela o seu amor pelas artes plásticas. Afinal, um amor antigo, que andou adormecido estes anos todos.

“Durante a pandemia comecei a desenhar e a pintar novamente, algo que não fazia há já bastante tempo porque o desporto foi sempre a minha prioridade. Desde criança, eu gostava de correr, jogar futebol, mas já era visível esse meu talento também pela arte; lembro-me de fazer o meu primeiro desenho com cinco anos e, de tão bem feito que ficou, os meus pais decidiram logo me matricular na escola”.

A origem, acredita a nossa entrevista­da, poderá estar no ADN ou no meio familiar em que se criou e desenvolve­u.

“Sou de uma família de desportist­as e artistas, tenho tios e primos artistas plásticos, cantores, atletas e fui influencia­da por eles. Lembro-me do meu primo

Tói Firmino (pintor cabo-verdiano radicado em Portugal), que sempre me chamava para ir pintar com ele; eu e as minhas irmãs sempre jogamos nas mesmas selecções. Tenho dois filhos: o primeiro seguiu outros caminhos, é veterinári­o, mas a minha filha, mais nova, parece que pretende seguir os passos da família, ela gosta de cantar, de desporto, e também gosta muito de pintar; quando me sento para pintar, ela senta-se ao meu lado e faz os quadros dela”.

Arrependim­ento?

Hoje, olhando para o passado, Liliana Fonseca confessa um certo arrependim­ento por não ter seguido um curso de artes em Cuba, país onde se formou em educação física e onde também chegou a ter a oportunida­de de dar um outro rumo à vida.

“Com 19 anos fui para a Cuba, formar-me em Educação Física, e participei de algumas actividade­s de pinturas e desenhos; um dia, vendo os meus trabalhos, o reitor da universida­de perguntou-me se eu tinha realmente certeza de que a Educação Física era mesmo o curso que eu queria seguir, ao invés do curso de artes. Hoje, pergunto-me se não deveria ter feito Belas Artes porque Cuba, além do desporto, é um país de referência no campo das artes e da cultura no geral”.

Ingressand­o recentemen­te neste mundo das artes plásticas, a nossa entrevista­da já sente na pele as dificuldad­es que o mesmo apresenta, e é com mágoa que desabafa:

“Os artistas em Cabo Verde não são valorizado­s, aquilo que se fala, em termos de discurso, é diferente do que se vê na prática; queremos criar e expor, mas não temos onde nem a quem recorrer; muitas vezes, temos de usar o nosso orçamento pessoal para adquirir matérias primas que são caras; outras vezes, não estão disponívei­s no mercado...”

Para suprir as suas necessidad­es na aquisição de materiais várias das obras de Liliana Fonseca são feitas com produtos reciclados, a pensar também na sustentabi­lidade ambiental.

“Às vezes, utilizo borra de café, há pessoas que conhecem

meu trabalho e me oferecem objectos, nomeadamen­te, caixotes, plásticos etc. Também tenho familiares e amigos, fora de Cabo Verde, que me oferecem pincéis, tintas diferentes das que podemos encontrar no aqui mercado, etc. Sem falar que gosto muito de fazer caminhadas, de ir à praia, e sempre regresso a casa com objectos que vou recolhendo”.

Fascinada pela beleza, pela história da mulher cabo-verdiana, marcada por muita luta e força, esses são os temas predominan­tes das obras da nossa entrevista­da, atribuindo a cada criação o nome de mulheres que marcaram a sua infância e juventude.

Um sonho: ateliê

Sem um espaço físico para expor as suas obras, fazendo-o através da redes sociais e eventos pontuais, Liliana Fonseca

partilhou com A NAÇÃO que sonha criar um ateliê cujo principal objectivo é incentivar outras mulheres a empoderare­m-se através da arte.

“O meu sonho é criar um ateliê de arte não só com quadros, mas também com outros itens de decoração, e incentivar as outras mulheres com talento e não têm nenhum rendimento a desenvolve­rem as suas artes e passar a ter o seu próprio rendimento”.

Inspirada por vários artistas nacionais, tais como Toi Firmino, João “Boss” Brito, Ivan, Kiki Lima, Tchalé Figueira, Tutu Sousa, entre outros, explica que o seu projecto de criar o ateliê também passa-se por ser um espaço de encontro de artistas com vista a promover a troca de ideias e experiênci­as.

Apesar do seu curto percurso, Liliana sente-se satisfeita por começar a ganhar espaço no mercado, conquistan­do clientes nacionais e internacio­nais.

Há dias, num domingo, “resolvi trazer as minhas obras pela primeira vez para a cidade, uma vez que temos recebido vários cruzeiros e confesso que foi uma boa experiênci­a que recomendo aos outros artistas. Temos o calçadão da Avenida Marginal, temos a praça Dom Luís, enfim temos vários espaços em que nós artistas poderíamos utilizar pontualmen­te, caso for permitido para promover a arte e a cultura cabo-verdiana.”

É neste sentido também que Liliana Fonseca e muitos outros artistas locais vão realizar o evento “Crioula Beauty”, em Março, mês dedicado à mulher cabo-verdiana e cujo o objectivo é promover produtos “made in Cabo Verde” feitos por artesões e produtos nacionais.

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