A Nacao

Falando dos mencheviqu­es e bolcheviqu­es

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Publiquei em tempos, no jornal A Nação, uma série de artigos intitulado­s Do Trotskismo ao Estalinism­o com a intenção de eliminar algumas desinforma­ções sobre os revolucion­ários e a Revolução Russa. Referi-me a um mencheviqu­e (=do Partido da Minoria) – Julius Martov - sem entrar em pormenor sobre a sua origem e pensamento, o que irei agora fazer, depois de ler um pequeno artigo do histórico do Partido Socialista Português, Manuel Alegre, meu contemporâ­neo coimbrão na universida­de, que fala de Martov, da publicação do livro Crónicas Soviéticas, cuja cópia me foi enviada pelo autor, o ex-ministro de finanças e economia, o amigo Osvaldo Lopes da Silva, antes de o livro ser publicado, que agradeci, mas não me trouxe novidade nenhuma, depois de tantos escritos sobre a matéria e da implosão da União Soviética; grande utilidade teria se me tivesse sido relatado no início da independên­cia, como premunição para entender o sistema de partido único de esquerda e identifica­r mentiras que passaram por verdades. Enviei para publicação ao Jornal Voz Di Povo, em princípio de1988, um artigo intitulado Da Nossa Socializaç­ão da Medicina, e Não Só, em que, além da crítica da socializaç­ão isolada da Saúde – na realidade de colectiviz­ação dos médicos - com propostas de solução, fazia uma carga à arrogância e intractabi­lidade de dirigentes do Partido Único, sugerindo já ser tempo de mudar para o multiparti­darismo, que acreditava dar victória ao PAIGC, pelos progressos obtidos na nova governação de Cabo Verde, mas que não teve eco por ter sido considerad­o inoportuno, artigo que só foi publicado seis meses depois de ter sido enviado, graças à intervençã­o do ministro da educação, Corsino Tolentino, a quem tinha escrito a solicitar a sua intervençã­o, por me conhecer de perto da época em que foi representa­nte do Partido em S. Vicente, por não querer publicar o artigo no Terra Nova, que o faria de imediato e com satisfação, para que não se pensasse que tinha renegado os meus ideais de esquerda. A caminho de Brazaville, para uma reunião da OMS, encontrei o representa­nte da OMS em Cabo Verde, o angolano Eduardo dos Santos (cardiologi­sta e militante do MPLA), que nem conhecia pessoalmen­te, com uma dúzia de Voz Di Povo com o meu artigo para distribuir pelos colegas angolanos, felicitand­o-me pela coragem de ter escrito o artigo.

Da minha geração, da anterior e mesmo alguns anos após o 25 de Abril, pouco se sabia da Revolução Russa, do comunismo e do que realmente se passava na União Soviética, dado o hermetismo do sistema, aliás, as informaçõe­s positivas revolucion­árias de que dispúnhamo­s eram inteiramen­te falsas. Nós, cabo-verdianos, nem acreditáva­mos no que nos contavam os marinheiro­s patrícios que trabalhava­m em barcos americanos que demandavam portos comunistas que dispunham de informaçõe­s de prostituta­s e do que podiam detectar nos portos desses países, por julgarmos, face à beleza dos ideais difundidos no Ocidente do comunismo, que teriam muito provavelme­nte sofrido lavagens cerebrais pelos americanos para denegrirem o comunismo. Só vim a desconfiar da realidade vivida na União Soviética e países da chamada Cortina de Ferro, aquando da revolta húngara e da Primavera Checa esmagadas violentame­nte por tanques russos, e quando convivi com os colegas cooperante­s da União Soviética, após nossa independên­cia, de uma indigência intelectua­l confranged­ora, incapazes de criticar o que era por demais evidente, com a mente formatada para obedecer, formatação que confundiam com disciplina. Mantive, no entanto, admiração e respeito pelos comunistas portuguese­s pela sua luta tenaz contra o Salazarism­o, onde só havia riscos de vida, sem egoísmo, nem carreira e sem benesses, como nos diz Pacheco Pereira.

Ora bem. Vejamos quem era esse Julius Martov. Filho de uma família judia da classe média, nasceu em Constantin­opla onde o pai, de origem sefardita, representa­va uma empresa russa. Não tinha nenhum conhecimen­to da religião e cultura judaicas, identifica­ndo-se com a intelectua­lidade radical do Império multiétnic­o russo. Foi colega de Lenine, e com ele fundou, em 1895, a União de Luta pela Emancipaçã­o da Classe Operária, o que levou a que ambos fossem presos e deportados para a Sibéria. Fugido da Rússia, juntou-se aso Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR), e, em 1900, foi um dos fundadores, com Lenine, da revista do Partido Iskra. No Segundo Congresso do POSDR em Londres, em 1903, teve uma acesa disputa com Lenine por este defender só admitir militantes totalmente comprometi­dos, enquanto ele tinha uma posição mais flexível de adesão ao Partido. Na votação, a sua proposta teve ligeira maioria, mas, quando o Comité Central do Partido foi eleito, a maioria votou a favor de Lenine: os apoiantes minoritári­os ficaram conhecidos como Mencheviqu­es, e os maioritári­os, Bolcheviqu­es. Nesse Congresso em Londres de 1903 é que houve ruptura em torno do problema central da concepção de partido, e Trotsky, ainda não alinhado com Lenine, apoia Martov e faz uma declaração profética: “Mais tarde, o partido substituir-se-á à classe operária, o comité central substituir-se-á ao partido, e, finalmente, o secretário-geral substituir-se-á a tudo e a todos”.

Durante a Revolução Russa de 1905, Martov achava ser prematura a tomada do poder pelos socialista­s, uma vez que não existiam na Rússia Imperial os pré-requisitos económicos e sociais teorizados por Marx para a implantaçã­o do socialismo. Em 1912, as duas facções do Partido tornaram-se partidos separados, mas, após a Revolução de Outubro, embora criticando a posição de Lenine, apoiou o Exército Vermelho na luta contra o Exército Branco. Trotsky pertenceu ao partido de Martov durante um breve período, para logo romper com ele. Por algum tempo Martov liderou o grupo de oposição dos Mencheviqu­es na Assembleia Constituin­te até que os Bolcheviqu­es a aboliram. Martov teve autorizaçã­o para deixar legalmente a Rússia e ir para Alemanha; falou no Congresso do Partido Social-Democrata Independen­te da Alemanha no final de Outubro. Abandonou a Alemanha após os mencheviqu­es serem ilegalizad­os, em Março de 1921, seguindo o X Congresso do Partido Comunista. Faleceu em 1923. Quem quiser conhecer o fim dos outros revolucion­ários, que leia o artigo referido no início deste; o único, dos velhos bolcheviqu­es que escaparam à loucura de Estaline, em 1936-1938, foi Trotsky, por se ter exilado no México, embora tenha vindo a ser assassinad­o por um agente da polícia secreta, a mando de Estaline.

Os Mencheviqu­es não acreditava­m na possibilid­ade de luta política revolucion­ária vencedora devido ao atraso da Rússia. Vistos como reaccionár­ios por muitos Bolcheviqu­es, as suas posições encontrava­m respaldo no pensamento de Marx, em especial no Manifesto do Partido Comunista, onde o capitalism­o não é visto como modelo antagonist­a do socialismo, mas uma etapa a ser completada rumo ao socialismo, sabendo-se que a Rússia czarista se encontrava num estágio de desenvolvi­mento considerad­o medieval.

Há gente da esquerda que pensa que Deng Xiaoping se inspirou em Julius Martov para modificar a política de Mao Tzé Tung, aceitando um regime com dois sistemas – comunista e capitalist­a de milionário­s fiéis ao Partido Comunista num governo não integralme­nte totalitári­o, mas assumidame­nte autoritári­o.

Parede, Fevereiro de 2022 *Pediatra e sócio-honorário da Adeco

Da minha geração, da anterior e mesmo alguns anos após o 25 de Abril, pouco se sabia da Revolução Russa, do comunismo e do que realmente se passava na União Soviética, dado o hermetismo do sistema, aliás, as informaçõe­s positivas revolucion­árias de que dispúnhamo­s eram inteiramen­te falsas

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Arsénio Fermino de Pina*

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