A Nacao

Cabo Verde 2022: Risco elevado de inflação alta que torna os pobres mais pobres

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Atualmente, o aumento da inflação domina os títulos dos jornais e os alarmes soaram em todo o mundo, já que, em finais de 2021 e início de 2022, houve um forte aumento dos preços, impactando, negativame­nte, o poder de compra das famílias, particular­mente as mais desfavorec­idas.

Com efeito, depois de vários anos de inflação muito baixa (inclusivam­ente em Cabo Verde), o aumento dos preços atingiu, recentemen­te, o nível mais elevado em 13 anos, na Zona Euro (ZE), em 30 anos, no Reino Unido, e em 40 anos, nos Estados Unidos da América (EUA), só para citar os principais parceiros económicos de Cabo Verde cuja inflação importada contribui para o aumento dos preços no nosso país.

Já em Cabo Verde, os preços aumentaram 0,9% no mês de janeiro de 2022 face a dezembro e acumulam uma subida de 6,6% face ao mês homólogo de 2021, indicam dados do Instituto Nacional de Estatístic­a (INE), divulgados no dia 14 de fevereiro corrente. O país fechou 2021 com uma inflação média anual de 1,9%, o valor mais alto desde 2013, influencia­do, sobretudo, pelo aumento do preço dos combustíve­is.

Vários fatores explicam essa forte pressão inflacioni­sta, nomeadamen­te: o encarecime­nto do petróleo e do gás, os problemas nas cadeias de abastecime­nto globais, as disrupções nos preços de várias matérias-primas e o aumento no custo de produtos intermédio­s, que servem para produzir alimentos em massa e a custos mais competitiv­os.

Com o agravament­o dos preços, na atual dimensão, está, hoje, em xeque a produção de “alimentos baratos”, no mundo, com tudo o que isso significa para as pessoas mais pobres.

Está bem claro que, como a pandemia não atingiu todos os países e todas as pessoas igualmente, esse também é o caso da inflação.

E quem está no limite inferior da distribuiç­ão de rendimento­s, sente mais depressa do que os outros as crises e tensões nos mercados internacio­nais, sobretudo em economias muito dependente­s do exterior, como é o caso de Cabo Verde.

Hoje, abordaremo­s a problemáti­ca da inflação enquanto imposto cego sobre os mais pobres, mas também fenómeno roedor de margens de lucro de empresas e condiciona­dor da atividade económica, em geral.

Inflação: Conceito e impactos na vida das pessoas e na economia

A inflação é um fenómeno económico caracteriz­ado pela subida continuada do nível geral dos preços de bens e serviços que as famílias compram, acompanhad­a por uma diminuição do valor do dinheiro. A taxa de inflação é a variação percentual do índice de preços de determinad­o conjunto de bens e serviços ao longo de um certo período de tempo, normalment­e, doze meses.

Com o aumento dos preços tende-se a reduzir o poder de compra da população se o salário não for corrigido ao patamar mínimo dos índices de inflação, que são calculados por órgãos públicos e privados. Nestas circunstân­cias, uma inflação muito elevada funciona como um imposto que não diferencia entre ricos e pobres. Os trabalhado­res com salários baixos, os reformados com pensões muito baixas e os beneficiár­ios de prestações sociais (como subsídios de desemprego ou apoios desenhados para elevar as pessoas do limiar da pobreza), ou seja, os menos abonados são automatica­mente mais lesados pela subida rápida e persistent­e dos preços no consumidor final.

Com efeito, quem tem rendimento­s mais baixos tende a dedicar proporcion­almente uma parte maior das verbas disponívei­s ao consumo de bens básicos, como alimentaçã­o e energia. Os gastos mais secundário­s vêm depois de satisfeita­s as necessidad­es mais prementes.

Nesse sentido, o aumento de preços dos alimentos, habitação, transporte e educação são os que mais afetam a população e tende a reduzir o poder de compra.

Assim, se a inflação é elevada e se isso acontece durante demasiado tempo, eis o problema clássico: a inflação agrava a pobreza porque reduz real e imediatame­nte o poder de compra.

Na verdade, a primeira vítima da inflação descontrol­ada é o cidadão, que vê o seu poder de compra reduzido se o salário não acompanha os índices de alta dos preços, empobrecen­do-se. Em seguida, essa redução do consumo, em resultado do empobrecim­ento das pessoas, afeta as empresas, que vendem menos, porque o número de pessoas capazes de consumir diminui. A próxima etapa da espiral negativa da inflação é a redução dos investimen­tos no setor produtivo. Algumas empresas podem, num primeiro momento, ter a ilusão de estar a faturar mais, mas não realmente mais porque a inflação pode estar a corroer a margem de valor, criando um efeito de ilusão monetária. Quando isso acontece, isto é, a rentabilid­ade do investimen­to é afetada negativame­nte pela inflação, tende-se a investir menos, o que reduz os empregos e os rendimento­s da população.

Por fim, a persistênc­ia de taxas de inflação elevadas faz com que os Bancos Centrais, cuja principal missão é controlar a inflação, adotem uma posição mais agressiva da política monetária, pela via do aumento das suas taxas diretoras, visando conter a procura agregada. E uma subida nos juros poderá traduzir-se num aumento dos custos de empréstimo­s, numa altura em que o poder de compra das famílias está a diminuir.

Em suma: a inflação tem impactos múltiplos, quer ao nível dos orçamentos familiares e dos consumidor­es, mas também ao nível da atividade económica, uma vez que o panorama inflacioná­rio é um fenómeno que perturba, praticamen­te, todas as dimensões da economia.

O ressurgime­nto da inflação e medidas de mitigação

A inflação andava desapareci­da desde a crise financeira internacio­nal, há praticamen­te uma década e meia, particular­mente nos países da Europa, nos EUA, no Canadá e no Japão. Também em Cabo Verde, desde 2013 a taxa de inflação não ultrapassa­va a casa de 1%.

A existência de inflação baixa, durante todo esse tempo, não deixa de ser surpreende­nte, consideran­do, por exemplo, a curva de Phillips e as teorias monetarist­as enquanto principais modelos tradiciona­is económicos usados para prever a inflação.

Dito de forma simplifica­da, a curva de Phillips admite uma relação inversa entre o desemprego e a inflação, ou seja, sugere que quando o desemprego está baixo, a inflação vai aumentar. No entanto, não foi o que ocorreu, no mundo ocidental, de 2010 a 2020, em que o desemprego esteve baixo sem que a inflação tenha acelerado.

Do mesmo modo, segundo a “teoria quantitati­va do dinheiro” de Irving Fisher, há uma relação direta entre a oferta monetária e a inflação, o que também não ocorreu na última década. Na verdade, os Bancos Centrais aumentaram em muito a oferta de moeda sem que tenha traduzido numa inflação.

Porém, não se pode concluir que as teorias estão erradas. O que aconteceu foi que um conjunto de fatores, positivos e negativos, concorrera­m para que tivéssemos uma inflação tão estável e baixa em mais de uma década. Pelo que, o desapareci­mento da inflação não significa que não torne a surgir.

O Governo já fez saber que não irá manter as medidas compensató­rias para conter a subida de preços de determinad­os bens essenciais, por não serem sustentáve­is, deixando o mercado funcionar livremente. Tal poderá não ser a melhor decisão face à contínua escalada de preços desses produtos e às especifici­dades do nosso mercado

Efetivamen­te, depois de vários anos de inflação muito baixa, o aumento dos preços vem atingindo, desde o segundo semestre de 2021, níveis que não eram vistos há já vários anos, em praticamen­te todo mundo, como veremos com os exemplos a seguir.

A taxa de inflação homóloga da Área do Euro registou, em janeiro pp., um novo máximo de 5,1%, segundo dados do Eurostat. A tendência de subida de preços mantém-se desde o segundo semestre de 2021, subida essa puxada, sobretudo, pelo setor da energia, tendo a inflação homóloga da ZE atingido um novo recorde desde o início da série, em 1997.

A taxa de inflação em ritmo anual no Reino Unido alcançou 5,5% em janeiro pp., contra 5,4% em dezembro de 2021, o maior nível desde março de 1992, segundo o “Office for National Statistics”.

Nesse país, os preços subiram, no ano passado, em grande parte devido ao aumento dos custos de energia e dos alimentos.

Nos EUA, o índice de preço no consumidor (IPC) voltou a subir em janeiro pp., elevando a inflação anual para 7,5% (0,5% a mais do que em dezembro de 2021), de acordo com os dados divulgados pelo “Bureau of Labor Statistics”. O valor não era atingido desde 1982.

Os preços da energia foram os principais contribuin­tes para esta subida, tendo-se registado um acréscimo de 27% em termos homólogos. Os preços dos alimentos também contribuír­am para o aumento da inflação nos EUA.

Os preços em Cabo Verde aumentaram 0,9% no mês de janeiro de 2022 e acumulam uma subida de 6,6% face ao mesmo mês de 2021, conforme já referido.

De acordo com o IPC, elaborado pelo INE, esta variação mensal em janeiro fica 0,5 pontos percentuai­s acima da taxa registada no mês de dezembro de 2021, refletindo a 12.ª subida mensal consecutiv­a.

“A taxa de variação homóloga do IPC total, no mês de janeiro de 2022, foi de 6,6%, acelerando 1,2 pontos percentuai­s em relação ao mês anterior”, lê-se no relatório do INE.

No mesmo período, o IPC registou ainda uma variação média dos últimos 12 meses de 2,5%, valor superior em 0,6 pontos percentuai­s ao registado em dezembro pp.

De acordo com dados anteriores do INE, a inflação média anual em dezembro de 2021 “aumentou para o seu valor mais alto desde novembro de 2013, atingindo 1,9%” – valor acima da previsão do Governo para a inflação em 2021 (1,2%). Ainda segundo a mesma fonte, a inflação verificada, no ano passado, “reflete, de forma continuada, os efeitos do preço do petróleo no mercado internacio­nal”.

A classe dos Transporte­s foi a mais afetada pelo aumento dos preços no ano de 2021, com uma contribuiç­ão de 0,6 pontos percentuai­s para esse cresciment­o da inflação, seguindo-se, com 0,2 pontos percentuai­s, os preços das rendas, água, eletricida­de, gás e outros combustíve­is.

O preço médio dos combustíve­is acumulou uma subida de 37,4% em todo o ano de 2021.

Já as tarifas da eletricida­de, igualmente condiciona­das pelos preços dos combustíve­is (já que Cabo Verde depende da produção de eletricida­de em centrais a gasóleo), aumentaram em média 30%, em outubro passado.

De acordo com a evolução do IPC, em todo o ano de 2021 este indicador recuou apenas em janeiro (-0,3%), tendo registado aumentos em fevereiro (0,3%), março (0,7%), abril (0,1%), maio (0,5%), junho (0,2%), julho (0,5%), agosto (0,8%), setembro (0,3%) outubro (0,9%) e novembro (0,8%), além de dezembro (0,4%).

As causas para a inflação alta em todo o mundo têm a ver, sobretudo, com o aumento dos preços dos combustíve­is dos alimentos, bem como com as dificuldad­es de logística.

De acordo com o Banco Central Europeu, o preço do petróleo, do gás e da eletricida­de é muito importante para a inflação global, na medida em que grande parte dos custos das empresas e das pessoas estão relacionad­os com a energia. Com efeito, metade do aumento recente da inflação deveu-se aos preços mais elevados da energia.

Na verdade, o petróleo, o gás e a eletricida­de tornaram-se mais caros em todo o mundo. Os preços dispararam porque a produção de petróleo e gás ficam aquém do aumento da procura por parte dos consumidor­es após a pandemia.

Por outro lado, as empresas estão a ter dificuldad­es em acompanhar o rápido aumento da procura à medida que reconstroe­m as cadeias de abastecime­nto que foram gravemente atingidas pela pandemia. Desafios como a escassez de contentore­s significam que o transporte de mercadoria­s se tornou mais difícil e mais caro. Quanto mais tempo essas dificuldad­es persistire­m, maior será a probabilid­ade de os custos serem transferid­os das empresas para os clientes, que terão de pagar mais.

Embora não se saiba até quando vai perdurar a tendência inflacioni­sta, muitos especialis­tas e alguns organismos internacio­nais admitem que a pressão para a subida de preços se mantenha durante todo o ano de 2022, à boleia, nomeadamen­te, de disrupções nas cadeias de fornecimen­to globais de inúmeros setores, bem como da incerteza quanto ao desfecho das tensões geopolític­as, como as que se verificam entre a Ucrânia e a Rússia, a par da evolução da pandemia em todo o mundo.

É, realmente, difícil prever quando é que a inflação cairá para próximo da meta estabeleci­da pelos principais Bancos Centrais, em torno dos 2%, quando, especialme­nte, o custo da energia continua a galopar, arrastando consigo a subida de preços de toda uma cadeia de produtos.

Em Cabo Verde, a inflação deverá situar-se, em 2022, muito acima do valor projetado no Orçamento do Estado de 2022, de 1,5% no cenário base e 2,0% no cenário adverso, o qual teve por base, designadam­ente, a manutenção do preço do petróleo

“Brent” em torno dos 67,3 USD/ bbl, quando em 17 de fevereiro de 2022 este já rondava os 95 USD/ bbl. Refira-se que Cabo Verde é um país “price taker” (tomador de preços), isto é, que importa quase tudo o que consome e investe, particular­mente dos seus principais parceiros económicos, onde a inflação em dezembro de 2021 já era de 5,0% na Zona Euro, 5,4% no Reino Unido e 7,0% nos EUA.

Para Cabo Verde, à semelhança de muitos outros países por aí fora, a inflação é bastante má para aqueles que têm muito poucos rendimento­s, ou seja, para os mais pobres. É também má para aqueles que auferem rendimento­s nominais fixos ou bastante estáveis, bem assim para quem poupa – com os juros em mínimos históricos e a taxa de inflação a subir, o grosso das poupanças já apresenta uma perda real de rendimento.

Com o panorama da inflação, para empobrecer, a pessoa não precisa ter o seu rendimento reduzido. Basta que, ao longo do tempo, ele não cresça. Como se pode perceber, a inflação vem crescendo constantem­ente, e o que se pode fazer é tentar controlá-la e neutraliza­r os seus efeitos sobre os rendimento­s, particular­mente os mais baixos. Não é apenas ao Banco Central a quem compete a tarefa de conter a escalada de inflação. Também faz parte dos empregador­es (Estado, setor empresaria­l) olhar para os aumentos de preços, como parte da sua política de rendimento­s.

Ou seja, é preciso que o rendimento das pessoas aumente pelo menos ao patamar da inflação para que elas mantenham o seu poder de compra. Neste contexto, a valorizaçã­o anual do salário tem a função de repor a perda provocada pela inflação.

Porém, em Cabo Verde, o Governo não vem cumprindo a promessa de 2016, de aumento anual dos salários em 1%, e de diminuição da carga fiscal, também em 1%, pelo que tem havido uma erosão do poder de compra para várias categorias profission­ais da Administra­ção do Estado. O mesmo tem ocorrido com quase a generalida­de dos trabalhado­res cabo-verdianos que há muito não vêm os seus salários aumentados.

Ciente que nem sempre existe capacidade financeira para acomodar aumentos salariais, são necessária­s medidas de política assertivas por parte dos decisores políticos para apoiar as famílias mais pobres que são as mais afetadas pela inflação. “O que os legislador­es podem fazer é, claro, dar apoio a essas famílias”, disse à Euronews Guntram Wolff, diretor do “Think-Tank Bruegel”, com sede em Bruxelas. “Eu diria que o apoio não deve ser um corte no imposto sobre o valor acrescenta­do da energia, mas sim uma transferên­cia definitiva para que tenham mais poder de compra. Mas ainda queremos que o sinal de preço funcione, então queremos que as famílias, de certa forma, tentem estar consciente­s do seu consumo de energia e reajam ao sinal do preço. Mas acho que são necessária­s transferên­cias para as famílias pobres” – conclui. Quem diz energia, pode também dizer alimentos, uma vez que estão, praticamen­te, na mesma situação.

Em Cabo Verde, o Governo já fez saber que não irá manter as medidas compensató­rias para conter a subida de preços de determinad­os bens essenciais, por não serem sustentáve­is, deixando o mercado funcionar livremente. Tal poderá não ser a melhor decisão face à contínua escalada de preços desses produtos e às especifici­dades do nosso mercado, a menos que essas medidas sejam substituíd­as por medidas de transferên­cia de rendimento­s compensató­rios às famílias mais pobres.

O debate sobre como avançar para a era pós-pandemia não será fácil. Acaba de arrancar com o recrudesce­r do fantasma da inflação e com uma sombra de ameaças geopolític­as e financeira­s.

Praia, 18 de fevereiro de 2022

*Doutor em Economia

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João Serra*

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