A Nacao

Direitos Humanos em Cabo Verde: conquistas, desafios e perspetiva­s da CNDHC

-

Nos últimos anos, a Comissão Nacional para os Direitos Humanos e a Cidadania consolidou o seu papel enquanto Instituiçã­o Nacional de Direitos Humanos, no que se refere à promoção e proteção. Mas os desafios persistem e a perspetiva de extinção da instituiçã­o interpela a uma ampla e profunda reflexão. Este é o mote para uma entrevista de balanço do mandato da Presidente da CNDHC, Zaida Morais de Freitas.

Assumiu a Presidênci­a da CNDHC em 2016 e este ano termina o seu mandato. Que balanço faz deste período?

O balanço é extremamen­te positivo. O meu propósito foi trabalhar para consolidar a CNDHC enquanto instituiçã­o nacional de direitos humanos, trazer a questão dos direitos humanos para o centro das decisões e promover uma cultura de respeito pelos direitos humanos. Não obstante as limitações em termos de recursos humanos e financeiro­s, com o apoio de parceiros, conseguiu-se melhorar a credibilid­ade de Cabo Verde junto de importante­s organizaçõ­es internacio­nais e regionais, como as Nações Unidas, a União Europeia e a União Africana, no que se refere ao cumpriment­o de algumas obrigações internacio­nais e regionais em matéria de direitos humanos.

Que ações da CNDHC colaborara­m para essa credibilid­ade de Cabo Verde a nível internacio­nal?

A atualizaçã­o dos relatórios sobre a implementa­ção das Convenções internacio­nais de direitos humanos foi um dos principais passos. Cabo Verde já ratificou a maior parte dessas Convenções, pelo que assumiu o compromiss­o de apresentar, periodicam­ente, relatórios aos órgãos dos tratados a nível internacio­nal sobre o estado da implementa­ção dessas convenções no país. Durante muitos anos, estivemos em incumprime­nto, mas, sob coordenaçã­o da CNDHC, e com o apoio das Nações Unidas, o Estado atualizou a grande maioria dos relatórios, o que foi muito aplaudido pelos organismos internacio­nais.

Por outro lado, a CNDHC passou a submeter os seus próprios relatórios paralelos e independen­tes sobre a implementa­ção dessas Convenções, enquanto instituiçã­o nacional de direitos humanos. Inclusive, a CNDHC esteve algumas vezes em Genebra e foi ouvida pelos Comités que avaliam os relatórios do Estado e que vão depois questionar o representa­nte do Governo nas sessões públicas. Isso foi um grande ganho para a CNDHC e para o país, visto que muitas recomendaç­ões dos Comités refletem as preocupaçõ­es da CNDHC tratadas nos seus relatórios.

A concessão de Estatuto de Afiliado à CNDHC pela Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos constitui também um dos maiores ganhos da instituiçã­o, na medida em que permite à CNDHC ter uma voz ativa junto desta organizaçã­o, sobre a realização dos direitos humanos no país e em África.

A instituiçã­o de um Dia Nacional dos Direitos Humanos, por proposta da CNDHC, a aprovação do II Plano Nacional de Ação para os Direitos Humanos e a Cidadania, a elaboração do II Relatório Nacional de Direitos Humanos e a designação como Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura constituír­am marcos fundamenta­is na consolidaç­ão do trabalho da CNDHC. Além disso, a criação de uma linha grátis (8002008) para as denúncias e a definição e clarificaç­ão dos procedimen­tos bem como a criação de uma equipa dedicada ao recebiment­o e tratamento das queixas, permitiu melhorar a capacidade de resposta neste domínio. Tudo isto está relacionad­o com a implementa­ção das Convenções e reforça a credibilid­ade de Cabo Verde a nível internacio­nal.

A nível nacional, houve alguma medida em relação à elaboração dos relatórios?

A nível interno, sob proposta da CNDHC e apoio do Alto Comissaria­do das Nações Unidas para os Direitos Humanos, o Governo criou uma Comissão Interminis­terial para a elaboração dos relatórios do Estado, para assegurar que os relatórios estariam sempre atualizado­s. Esta medida represento­u um avanço para o país e um comprometi­mento do Estado em cumprir com as suas obrigações a nível internacio­nal nesta matéria.

Apesar disso, regista-se uma inoperânci­a dessa Comissão e a inexistênc­ia de uma estratégia nacional para a implementa­ção e o seguimento das recomendaç­ões feitas ao Estado de Cabo Verde pelos órgãos de tratados e mecanismos de direitos humanos, situação que dificulta o processo de elaboração dos relatórios que o país deve submeter regularmen­te.

Além disso, a CNDHC ministrou formações aos membros da Comissão Interminis­terial sobre a elaboração dos relatórios do Estado e também às ONG’s sobre a elaboração de relatórios paralelos, o que permite que todos os atores no processo de elaboração e submissão de relatórios estejam devidament­e capacitado­s e informados sobre o processo.

A nível da promoção e proteção dos direitos humanos, que aspetos destacaria durante o seu mandato?

No que se refere à promoção, foram feitas diversas publicaçõe­s, estudos sobre temas diversos, atividades públicas, como palestras, formações, seminários internacio­nais e campanhas para públicos diversos. Essas atividades tiveram sempre a finalidade de promover um maior conhecimen­to sobre os conceitos, princípios e documentos jurídicos relacionad­os com os direitos humanos, mas também instigar os estudantes, as comunidade­s, os profission­ais e a sociedade em geral, a uma ampla reflexão sobre a importânci­a do respeito por esses princípios que contribuem para a paz e estabilida­de social.

Quanto à proteção, a CNDHC apresentou Recomendaç­ões ao Governo, algumas das quais foram acatadas, como a ratificaçã­o do terceiro Protocolo Facultativ­o à Convenção sobre os Direitos da Criança, o aumento da licença de maternidad­e, a instituiçã­o da licença de paternidad­e e a reabilitaç­ão judicial em caso de evacuações médicas de pacientes doentes com gravidade e que não conseguiam viajar para tratamento no exterior porque não era possível terem o visto sem a limpeza do cadastro.

A CNDHC também tem enviado alguns pareceres à Assembleia Nacional sobre diplomas específico­s que versem sobre questões de direitos humanos.

Para coadjuvar o trabalho de promoção e proteção dos direitos humanos, a CNDHC conta com Pontos Focais em todos os Municípios do País e com Pontos Focais da Sociedade Civil em alguns municípios que realizam, em articulaçã­o com a Comissão, ações de Promoção e reportam casos de violação dos direitos humanos de

que tomem conhecimen­to.

Além disso, a CNDHC tem realizado algumas plenárias abertas à Sociedade Civil de modo a dar a conhecer melhor o seu trabalho e promover reflexões conjuntas sobre algumas questões atuais de direitos humanos.

Quais foram os principais desafios que enfrentou enquanto Presidente da CNDHC?

Trabalhar com os direitos humanos é um desafio constante, até porque os direitos humanos são uma construção permanente. Os desafios são inerentes e, muitas vezes, quando se consegue resolver uma situação, depois aparecem outras componente­s que precisam ser trabalhada­s. Exige muita perseveran­ça e muito sentido de humanidade e até de altruísmo em alguns momentos.

A falta de feedback às recomendaç­ões feitas ao Governo e a fraca colaboraçã­o das instituiçõ­es no tratamento das queixas recebidas e no fornecimen­to das informaçõe­s solicitada­s afeta negativame­nte o trabalho da CNDHC.

Enquanto Presidente da CNDHC, a limitação em termos de recursos humanos e financeiro­s da instituiçã­o foi um dos principais constrangi­mentos, tendo em conta a condição arquipelág­ica do país. De referir, ainda, um certo desconheci­mento sobre as atribuiçõe­s e papel da CNDHC, apesar de todas as ações da instituiçã­o. Enquanto entidade de vigilância, monitorame­nto, seguimento e avaliação das políticas públicas relacionad­as com os direitos humanos, a CNDHC não tem poderes para executar, mas sim de recomendar e propor aos poderes públicos a adoção de medidas com esse fim.

É preciso ter em conta que o papel de uma instituiçã­o nacional de direitos humanos passa muito pela formação e pela educação em direitos humanos, mas também pela sensibiliz­ação, no sentido de mostrar que a defesa e promoção dos direitos humanos não depende apenas do Estado ou da CNDHC, mas de cada um de nós enquanto cidadãos.

A designação da CNDHC como Mecanismo Nacional de Prevenção (MNP) da Tortura foi também durante o seu mandato. Como avalia a atuação desse mecanismo até agora?

A visita e o monitorame­nto dos estabeleci­mentos prisionais e outros espaços em que as pessoas estão privadas de liberdade sempre foram realizadas pela CNDHC. Mas a designação da instituiçã­o como MNP veio consolidar esse papel, cumprindo uma das obrigações que o Estado assumiu ao ratificar o Protocolo Facultativ­o à Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamento­s Cruéis, Desumanos e Degradante­s.

Esta atribuição veio reforçar a proteção dessas pessoas contra a tortura e outras penas ou tratamento­s cruéis e desumanos e criou a possibilid­ade de realizar visitas sem aviso prévio e intervir antes da ocorrência de uma violação, o que é uma grande vantagem, em termos da proteção dos direitos humanos. O MNP elabora relatórios com Recomendaç­ões às entidades competente­s, algumas das quais têm sido acatadas, mas os desafios ainda são imensos.

O que ficou por fazer durante o seu mandato?

A aprovação de um novo Estatuto da CNDHC, que foi intensamen­te trabalhado, é um aspeto que poderia ter ajudado a melhorar o funcioname­nto e atuação da instituiçã­o. Por outro lado, estava em fase de instalação o Observatór­io Nacional de Direitos Humanos e a criação de um sistema nacional de indicadore­s de direitos humanos, que permitiria medir, com mais eficácia, o nível de realização dos direitos humanos no país, melhorando assim o monitorame­nto nessa área.

De realçar, ainda, que a CNDHC elaborou uma proposta de Projeto Lei Especial Anti Discrimina­ção e que vai submeter ao Parlamento para aprovação e que terá um impacto enorme no combate à discrimina­ção no país.

Apesar da CNDHC ter ministrado formação aos dirigentes das instituiçõ­es públicas sobre Planificaç­ão Baseada em Direitos Humanos e dos esforços empreendid­os pela CNDHC, o país ainda não planifica e não elabora o Orçamento de Estado sensível aos direitos humanos.

Ficou, ainda, por concretiza­r a elaboração de uma Política Nacional de Educação para os Direitos Humanos, apesar do diálogo que tem havido com o Ministério da Educação nesse sentido.

Em relação à efetivação dos direitos humanos no país, que avaliação faz em termos de ganhos e desafios?

Existem dimensões que ainda clamam por políticas públicas e ações para ultrapassa­r os desafios existentes. Há algumas áreas ou direitos que devem merecer uma atenção especial, como: acesso à saúde de qualidade, habitação condigna, acesso a água canalizada, eletricida­de, segurança alimentar, emprego digno, morosidade da justiça, perceção da impunidade, inseguranç­a pública, entre outros.

Além disso, é preciso melhorar a realização dos direitos de alguns grupos específico­s, tais como crianças, pessoas com deficiênci­a, pessoas com doença mental, idosos, mulheres, migrantes e pessoas LGBTI. Refira-se, ainda, aspetos relacionad­os com a violência sexual contra menores, a violência baseada no género, o abuso policial e com os direitos dos reclusos, que têm sido uma preocupaçã­o.

Um dos grandes ganhos foi a elaboração do “PASS - Manual de Avaliação e de Intervençã­o com Condenados por Crimes Sexuais”, documento fundamenta­l no trabalho a desenvolve­r com esse público-alvo, relativame­nte a uma temática que tanto tem inquietado a sociedade cabo-verdiana.

O programa do Governo para esta legislatur­a prevê a extinção da CNDHC e atribuição de parte das suas atribuiçõe­s à Provedoria de Justiça, que passará a assumir o papel de Instituiçã­o Nacional de Direitos Humanos. Como avalia esta decisão?

Trata-se de uma decisão política e que, para a sua efetivação, gostaríamo­s que se salvaguard­assem, pelo menos, dois aspetos: a conformida­de da instituiçã­o com os Princípios de Paris, que preveem como devem ser constituíd­as e como devem funcionar as instituiçõ­es nacionais de direitos humanos; e a colocação do staff da CNDHC de acordo com a sua formação e amplos anos de experiênci­a nessa área e que muito contributo poderá, ainda, dar a nível da promoção e proteção dos direitos humanos no país.

Não obstante as recomendaç­ões dos órgãos da ONU, aceites pelo Governo, e da própria CNDHC, enquanto órgão consultivo do Governo, no sentido de reforçar as competênci­as da CNDHC e dotá-la de um estatuto conforme os Princípios de Paris, o Governo decidiu pela extinção da CNDHC.

Independen­temente da decisão do Governo, o importante é garantir que o país tenha uma instituiçã­o nacional de direitos humanos consolidad­a a nível nacional e internacio­nal, que contribua para assegurar a dignidade humana de todos os cabo-verdianos, sem deixar ninguém para trás.

 ?? ?? Zaida Morais de Freitas, Presidente da Comissão Nacional para os Direitos Humanos e a Cidadania
Zaida Morais de Freitas, Presidente da Comissão Nacional para os Direitos Humanos e a Cidadania

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Cabo Verde