Politicamente incorrecto?
O que vou escrever poderá parecer sê-lo, mas verão que não é. Somos, bastas vezes, enganados pela comunicação social, pelos governos ou incompletamente informados por interesses destes ou censura exercida sobre aquela. Dou um exemplo: aquando da crise dos misseis em Cuba, em que estivemos à beira de Terceira Guerra Mundial devido às ogivas nucleares russas colocadas em Cuba em defesa da ilha ameaçada pela invasão americana; os conselheiros militares americanos do Presidente Kennedy eram de opinião que se devia bombardear Cuba, porque a União Soviética não ripostaria. Kennedy teve o bom senso de contactar Krutchev pelo telefone e chegaram a um acordo, o que levou os barcos russos que iam a caminho de Cuba com mais material nuclear a fazer meia volta, a União Soviética a retirar os misseis nucleares, os EUA a garantirem que não iriam invadir Cuba e – o que não foi dito pela comunicação social – a contrapartida americana, além de se comprometer a não invadir Cuba, a retirar os seus mísseis nucleares da Turquia, às portas da União Soviética. Portanto, houve cedência de parte a parte e predominou o bom senso e não a vontade dos falcões militares americanos, mas ficou-se com a ideia de que a URSS tinha cedido perante a firmeza americana.
Aquando da queda do Muro de Berlim, da implosão da União Soviética e falência do comunismo soviético, seguida, em 2004 e 2007, da abertura das portas da União Europeia (EU) às democracias do Leste europeu e entrada de alguns na NATO, não obstante o Pacto de Varsóvia se ter desfeito, houve um compromisso de a NATO não colocar armas e ogivas nucleares nesses países da orla russa, até porque o comunismo tinha acabado na Rússia e ela estava virada para o liberalismo económico, infelizmente do tipo cleptocrático, dado que a nomenklatura do partido comunista, a única que tinha dinheiro, comprou as grandes empresas privatizadas. Nessa fase crítica da ex-União Soviética, talvez até aceitassem entrar na União Europeia, se a proposta lhe tivesse sido feita, e a NATO, à semelhança do Pacto de Varsóvia, desaparecesse, em reconhecimento aos 24 milhões de mortos que teve na luta contra o nazismo e como aliado na Segunda Guerra Mundial. Essa acalmia e colapso do comunismo faziam prever o fim da NATO por falta de objectivo, mas existia a Jugosláessas via, de orientação comunista moderada, como pretexto, uma federação de várias regiões que viviam em paz com várias etnias e religiões, que havia que desmembrar, o que deu o que sabemos: criaram-se novas repúblicas em nome dos direitos humanos e da protecção de minorias. Em 1991, o Kosovo exigiu, em referendo, a sua independência da Sérvia, e alguns anos depois, a NATO bombardeava Belgrado para fazer cumprir a vontade dos kosovars. Afinal, qual a diferença entre Kosovo e o Donbass? Nenhuma, excepto que Kosovo foi apoiado pela NATO e as regiões de Dombass pela Rússia, quando, oito anos antes, o Acordo de Minsk podia ter sido concluído e, talvez, evitada a tragédia ucraniana actual.
Quando se esperava a constituição de uma base sólida para a segurança europeia, que, obviamente, teria de ser construída com a Rússia, e não contra ela, nada disso foi feito, nem cumprido o compromisso de não armar os países do Leste europeu fronteiriços da Rússia, que passaram a integrar a EU, à volta da Rússia e Bielorrússia, um dos constituintes da Federação Russa.
A Ucrânia também se candidatou à EU, em 2014, mas, tanto a Alemanha como a França apresentaram o seu veto à essa entrada. O presidente democraticamente eleito da Ucrânia, que era favorável à Rússia, veio a ser vítima de uma revolta da população que levou à sua deposição e substituíção, também por eleição democrática, pelo actual presidente da república Zelenskii favorável ao Ocidente. A Rússia, reduzida à Federação Russa, com a Bielorrússia do lado europeu, foi sendo humilhada pelo Ocidente, sobretudo pelos EUA, transformado na única superpotência mundial, sem nenhum respeito nem consideração pelo seu aliado na Segunda Guerra Mundial e pela abertura do Presidente Gorbatchov enquanto esteve no poder com a sua política de transparência e restruturação.
A EU e os EUA, convencidos de que a Rússia estava de joelhos, moribunda, incapaz de provocar qualquer mal ao Ocidente, aceitaram, aliás, a EU, sobretudo a Alemanha e a Itália, depender-se economicamente do gás natural e petróleo russos – a Alemanha em cerca de 40%, programando eliminar as suas centrais electricas nucleares. Os americanos transferiram grande parte das suas grandes empresas para a China, onde a mão-de-obra era baratíssima, o que proporcionava lucros fabulosos a
empresas.
A China, no fim da Guerra Fria, com o que aprendeu e ganhou com as empresas americanas e a entrada na Organização Mundial do Comércio (OMC), passou a exportar para todo o lado, a diversificar e melhorar a qualidade dos produtos exportados em concorrência com o Ocidente, passando a ser uma potência comercial de peso em pouco tempo, sendo, actualmente, a segunda potência económica mundial e a primeira em tecnologia, além de ter comprado grande parte da dívida externa dos EUA, a ponto de substituir a União Soviética na actual Segunda Guerra Fria com os EUA.
Enquanto escrevo estas linhas (27 de Fev.) várias cidades e a capital da Ucrânia estão sendo bombardeadas, havendo centenas de mortos, feridos e de pessoas, mulheres e crianças, que fogem da guerra para os países vizinhos da UE, enquanto os homens ficam para combater o invasor. A NATO não intervém, por a Ucrânia não pertencer a essa Organização militar, nem à EU, embora Kosovo também não pertencesse, e ela interveio. A EU e os EUA multiplicam sanções económicas contra a Rússia e a Bielorrússia, fornecem fundos para a aquisição de armamento, suspenderam o Gasoduto russo-alemão Nord Stream, havendo manifestações por todo o mundo contra a invasão da Ucrânia, incluindo em várias cidades russas, o que poderá comprometer a posição de Pudim, obrigando-o a negociar uma saída airosa do imbróglio em que se meteu. Nem a China, parceiro da Rússia, aprovou a invasão da Rússia, abstendo-se no Conselho de segurança.
A Rússia humilhada e considerada incapaz de causar danos após a implosão, há 30 anos, da União Soviética, foi-se recompondo, passando por Yeltsin e alternando entre Medvedev e Putin na presidência e primeiro-ministro ao leme do país, investindo no gás e petróleo que vendia à Europa a preços mais acessíveis do que outros países produtores que tinham de fazer transportar esses combustíveis em barcos, quando a Rússia os canalizava directamente para a Europa. Por fim, Putin tomou definitivamente o poder nas suas mãos como ditador e autocrata: tendo sido antes um funcionário superior da poderosa KGB, polícia secreta russa, que nada sofreu com a implosão da União Soviética, compôs o seu poder com base em elementos dessa polícia e amigos da nomenklatura multimilionários que compraram as empresas públicas privatizadas. Recuperou poderio com as infraestruturas espaciais, e os projectos multilaterais fazem parte do seu plano estratégico. Actualmente a Rússia é o segundo maior exportador de gás natural e petróleo para muitos países europeus democráticos e retém bastante dinheiro em divisas prevendo eventuais sanções.
A invasão da Ucrânia é, obviamente, ilegal face ao Direito Internacional e deve ser condenado por todo o mundo. Putin sabia que tanto a Alemanha como a França se tinham oposto à entrada da Ucrânia na EU. O que realmente o preocupa é a possibilidade dessa entrada, dada a sua riqueza agrícola como grande produtora de trigo e milho e a capacidade de trabalho dos ucranianos, o que, com o apoio da EU e a solidariedade internacional, levariam ao seu desenvolvimento bastante rápido que os países da Federação Russa não têm e poderia convencer os países da Federação Russa a seguir o seu exemplo.
À semelhança do Vietnam - um pais do Terceiro Mundo, pobre, sem poder militar nem económico, relativamente pequeno, invadido pela potência mais poderosa do mundo, os EUA, que utilizou toda a panóplia de armas, conseguiu vencer e expulsar o invasor, porque tinha o apoio da sua população e de países amigos - o mesmo poderá acontecer na Ucrânia. A Rússia não irá conseguir dominar inteiramente a Ucrânia, e, mais cedo ou mais tarde, terá de reconhecer o seu erro e negociar a sua saída dessa aventura desastrosa e criminosa.
Uma outra hipótese, face à unidade dos países da EU, do mundo e do apoio de todos à Ucrânia, em situação de desespero, é Putin cometer a loucura de levar a cabo a ameaça do uso do poder nuclear, o que seria o fim do Hemisfério Norte. Hitler, se tivesse conseguido construir a bomba atómica, não a teria lançado sobre Londres, como sociopata que era? Um psico ou sociopata não tem sentimentos, nem empatia, nem remorso, nem arrependimento, nem medo. Quem nos garante que Putin não é sociopata? Praza ao bom Deus de todas as religiões, nesta eventualidade, que os russos e os amigos oligo e cleptocratas lhe deitem a mão na Rússia e o ponham de quarentena.
Parede, Fevereiro de 2022 *Pediatra e sócio-honorário da Adeco