Cabo Verde pós-pandemia de Covid-19: A pobreza do “Plano de Retoma da Economia” do Governo
Cabo Verde, as consequências económicas e sociais da pandemia de Covid-19 afiguram-se expressivas, por ser uma pequena economia insular, altamente concentrada nos serviços de turismo, com baixa produtividade total dos seus fatores, fraca capacidade de inovação e com um nível de informalidade e subemprego relevante.
Assim, o país não ultrapassará, de forma adequada, a presente crise pandémica sem profundas alterações na sua economia e na sociedade.
Cabo Verde precisa de medidas fortes, assertivas e inovadoras para a diversificação da sua economia, tornando-a mais resiliente e com maior capacidade para tirar proveito das novas oportunidades, nomeadamente nas áreas que têm que ver com a economia azul, a economia digital, a transição energética e uma agricultura e pecuária de maior produtividade e rendimento.
Para o efeito, é necessária a existência de um ousado Plano de Recuperação, orientado pelo lema sugerido pelas Nações Unidas “build back better” (“reconstruir de uma forma melhor”).
Para além de ser um país com muito parcos recursos naturais, Cabo Verde tem, à partida, um problema de dívida pública e este problema poderá dificultar o financiamento dos esforços de recuperação.
Na verdade, o elevado endividamento limita o nosso campo de ação e impõe a escolha de um número limitado de eixos de atuação do Estado, centrando-se naqueles com um forte potencial multiplicador e de indução de modernização e crescimento, tais como, infraestruturas críticas, robustecimento e competitividade do tecido produtivo, sistema educativo e formação profissional, áreas dos serviços públicos com impacto direto na atividade económica.
Ou seja, para a elaboração do Plano de Recuperação é fundamental uma identificação clara das prioridades, num contexto de escassez de recursos financeiros. Não se pode fazer tudo ao mesmo tempo, sob pena de pouco se alcançar
Recentemente, o Governo apresentou, publicamente, aquilo que designou por “Plano de Retoma da economia cabo-verdiana no pós-pandemia”, o qual se resume, por aquilo que foi divulgado nos órgãos de comunicação social, basicamente, na previsão de cerca de 9.000 milhões de escudos de linhas de crédito e avales do Estado às empresas, com taxas de juro não superiores a 3,5%.
O plano governamental, apresentado no dia 27 de janeiro pp., prevê, entre outras medidas de apoios financeiros à retoma da atividade empresarial, que as pequenas empresas obtenham financiamentos individuais de até 25 milhões de escudos, as médias empresas até 50 milhões de escudos e as grandes empresas até 100 milhões de escudos.
Trata-se de um plano avulso e muito pobre que não prevê uma única medida de política e, muito menos, reforma estrutural, na economia cabo-verdiana, visando ultrapassar os obstáculos e os entraves que, de forma persistente, têm travado o desenvolvimento do país e que a pandemia veio agravar.
Julgo que o Plano de Retoma apresentado pelo Governo não pode ser considerado um Plano de Recuperação. Mais do que um simples plano de acesso a alguns apoios financeiros do Estado, Cabo Verde precisa, urgentemente, de um documento que fornece uma visão estratégica de daquilo que possa ser o futuro do país. Tal visão deverá contemplar um conjunto de objetivos que permitam um desenvolvimento harmonioso e sustentável da economia cabo-verdiana. Esta visão, consubstanciada no Plano de Recuperação, contribui para que, depois de feitas escolhas políticas fundamentadas em análises técnico-económicas, se possa ter bases sólidas, de médio e longo prazo, que sustentem a recuperação do país.
Assim, convém não confundir o Plano de Recuperação com um programa de operacionalização estratégico, cuja elaboração caberá, necessariamente, ao Governo, num processo que deverá ser de diálogo, envolvendo os partidos políticos, a sociedade civil e particularmente os parceiros sociais
Subsídios para um Plano de Recuperação com crescimento económico baseado na valorização do potencial dos fatores endógenos
No atual contexto de crise pandémica, um dos grandes desafios que se coloca a Cabo Verde é conseguir fazer crescer a economia, para gerar rendimentos às famílias e criar emprego. Mas o tão almejado e necessário crescimento da produção interna só é possível com políticas de enquadramento adequadas e de estímulos corretos.
Para Cabo Verde importa, sobretudo, aproveitar a crise como uma oportunidade para a realização de reformas estruturais na sua economia que induzam a um movimento de modernização e inovação com efeitos multiplicadores, que se farão sentir a prazo. Neste âmbito, reveste-se de particular importância e urgência a reforma da Administração Pública, visando tornar o aparelho administrativo redimensionado (mais enxuto e menos sorvedouro dos recursos do Estado), ágil e flexível, por forma a dar respostas, adequadas e oportunas, à multiplicidade de demandas provenientes de um ambiente caracterizado pela complexidade e mudança acelerada.
Para o efeito, importa uma visão de desenvolvimento baseada numa estratégia de diferenciação sustentada e mobilizadora, com ideias precisas e propiciadora dum consenso o mais amplo e construtivo possível, que procura responder aos desafios colocados pela pandemia, pela sociedade e pela economia globalizada em que o país tem que competir e se quer afirmar.
Cabo Verde é uma Nação com uma forte identidade, alicerçada em valores que determinam um carácter nacional tolerante, aberto ao exterior e à descoberta.
Estes valores tiveram a sua melhor expressão de afirmação sempre que o país se abriu ao mundo e se associou às dinâmicas de mudança e inovação, procurando colocar-se no centro dos processos de viragem e modernização, e assumindo-se como parte ativa das parcerias que deram origem aos paradigmas económicos emergentes.
Importa, assim, uma perspetiva alargada de afirmação do país na aldeia global, consubstanciada numa visão ambiciosa, mas realista de futuro.
A visão deverá ser colocar Cabo Verde no centro do processo de desenvolvimento à escala de África e à escala global, promovendo o crescimento e o emprego através da melhoria da qualificação das pessoas, das empresas, das instituições, de cada ilha, do desenvolvimento científico e do reforço da atratividade, da coesão social e da qualidade ambiental.
A concretização desta visão – ambiciosa, mas viável – implica: (i) a identificação clara dos fatores críticos e das vantagens competitivas a que o país pode recorrer; (ii) uma focalização determinada das políticas públicas e das dinâmicas socioeconómicas na exploração das vantagens e na minimização dos constrangimentos; e (iii) uma clara articulação da estratégia nacional com os novos paradigmas de desenvolviEm
Está inteiramente nas nossas mãos construir um país pós-pandémico que seja mais desenvolvido, sustentável e coeso do que aquele que tínhamos antes da crise
mento a nível mundial, de forma a tirar partido das sinergias de desenvolvimento no espaço global.
Porém, a baixa produtividade das empresas cabo-verdianas, a falta de competitividade do país a nível internacional, a pesada dívida pública que condiciona os investimentos em infraestruturas e outros fatores essenciais à diversificação e dinamização da economia, ou a necessidade de disciplina orçamental são desafios que a economia nacional enfrenta há vários anos. Por causa disso, será necessário foco na disciplina orçamental, encetar reformas estruturais (educação, custos de contexto, regulação, fiscalidade e justiça) que promovam a competitividade da nossa economia e a atração de mais investimento direto estrangeiro.
A crise pandémica representa um desafio e uma alavanca para a globalização digital e a transformação digital das economias. Com efeito, particularmente ao longo dos dois últimos anos, o digital assumiu uma dimensão sem precedentes em áreas como o teletrabalho, o ensino à distância, o comércio eletrónico, as consultas “online”, o entretenimento e os contatos sociais possíveis. No essencial, são as novas tecnologias digitais que fomentam a globalização digital no século XXI, na medida em que aceleram e aumentam os fluxos de dados e informação em torno do mundo, permitindo, através das plataformas digitais, a participação de mais países e empresas mais pequenas.
À digitalização da economia estão associadas transformações disruptivas a vários níveis, nomeadamente, modelos de negócio, modelos operativos e modelos de relacionamento com o cliente. Considera-se que estas transformações trarão oportunidades únicas para as empresas, desde que estas tenham as condições internas e contextuais para poderem reconhecer oportunidades e investir corretamente. Ou seja, as empresas devem posicionar-se como pioneiras na economia do futuro, tirando benefícios de novas ofertas e captando novos mercados. Acresce que, adicionalmente, a transformação digital da economia trará grandes benefícios que aumentam a produtividade. Caso devidamente capitalizados, esses benefícios colocarão as empresas cabo-verdianas em posições competitivas mais vantajosas em relação ao exterior.
Cabo Verde tem também a necessidade de uma efetiva industrialização e de uma política de aprovisionamento para que o país deixe de estar demasiado dependente de importações e de cadeias de valor tão extensas, onde os riscos de disrupção são enormes. É necessário, por isso, recuperar maior autonomia, diversificando as fontes de produção e de abastecimento. Neste quadro, urgem mudanças estratégicas no tecido económico, com investimento nas indústrias e serviços, nomeadamente ligados à transformação energética, ao digital, e ao mar para que seja possível criar emprego decente e de futuro para jovens qualificados, bem como produtos de valor acrescentado e tecnologias para exportar. De igual modo, a transformação do setor de agricultura deve, também, ser um dos focos da dinâmica de investimento para se ter uma economia consolidada, que cresça de forma harmoniosa, reduza a importação e promova a exportação.
Sendo o principal setor de atividade económica e um dos setores mais afetados pela crise, o turismo necessita de ter um plano específico, com medidas de curto, médio e de longo prazo, visando, por um lado, a sua retoma o mais depressa possível e, por outro lado, torná-lo mais diversificado, sustentável, mais inclusivo e mais responsável ao nível social, económico e ambiental. No que diz respeito à diversificação, Cabo Verde tem condições potenciais para o desenvolvimento do turismo de saúde, turismo de natureza, turismo de jogo, turismo cultural, turismo associado a eventos desportivos, etc. Devemos ser ambiciosos no que toca ao setor do turismo e cumpre-nos ter os instrumentos financeiros e outros para corporizar esta ambição.
Para superar de forma qualitativamente melhor os efeitos da atual crise, através de um crescimento económico sustentável e inclusivo, Cabo Verde tem de ultrapassar os seus principais problemas estruturais e se abrir, cada vez mais, ao mundo.
Para o efeito, o país tem que superar de forma determinada os constrangimentos à sua competitividade e à sua atratividade, designadamente as carências de qualificações, de competências específicas, de suporte tecnológico, de coesão social e territorial, de ordenamento, de informalidade e de contexto jurídico e administrativo. Outrossim, tem que mobilizar a confiança dos agentes e criar as condições necessárias para atrair o investimento privado, nacional e estrangeiro. Isso passa pela valorização integrada dos fatores diferenciadores de referência em que Cabo Verde dispõe de vantagens comparativas estruturantes, bem como das características diferenciadoras positivas do seu capital intelectual, designadamente da identidade multicultural, da flexibilidade adaptativa e da capacidade relacional dos cabo-verdianos.
Os fatores diferenciadores de referência, entendidos em sentido lato, são os seguintes:
Primeiro, o oceano, oportunidade para colocar Cabo Verde no centro duma rede económica de criação de valor associada ao mar.
Segundo, a localização geográfica, oportunidade para colocar Cabo Verde no centro duma rede económica de criação de valor associada à localização, com destaque para as relações de interface com o mar e intercontinentais, à logística e aos recursos naturais e paisagísticos.
Terceiro, a cultura, oportunidade para colocar Cabo Verde no centro duma rede económica de criação de valor associada à matriz cultural.
A aposta em fatores diferenciadores de referência é uma linha de resposta com elevado potencial, quer pelo impulso de integração e criação de dimensão crítica para o funcionamento dos mercados de proximidade e para os processos de internacionalização que dela resulta, quer pela introdução de fatores de imagem e posicionamento que permitem reduzir o peso do fator custo na exploração das oportunidades de mercado.
Colocar Cabo Verde como um país capaz de competir economicamente à escala global, garantindo em simultâneo a coesão social e a sustentabilidade dos processos de desenvolvimento, implica que os processos e as atividades económicas nele desenvolvidas, para além de incorporarem elevados níveis de inovação, conhecimento, qualificação, tecnologia e capacidade de gestão, possam beneficiar do suplemento de valor que resulta da sua associação aos fatores diferenciadores.
Cabo Verde detém uma vasta zona económica exclusiva, situada num eixo estruturante da rede global de fluxos de mercadorias e matérias-primas. O oceano constitui, assim, um espaço de oportunidades, para desenvolvimento de rotas comerciais capazes de alimentar atividades de logística no território, bem como o desenvolvimento dos novos negócios ligados ao mar, nomeadamente nos domínios do turismo, da energia, da biotecnologia e da aquacultura.
O efeito localização é também um fator determinante de valorização territorial. O território, na sua diversidade, amenidade climática e beleza paisagística, constitui um fator de atratividade a explorar. Cabo Verde poderá ser uma plataforma atlântica, um centro logístico intercontinental para pessoas e mercadorias, um espaço de fixação de indústrias de alto valor acrescentado em setores tradicionais ou emergentes de que são exemplo o têxtil, o calçado, as energias renováveis ou a indústria agroalimentar. Poderá ser também um espaço de lazer e de organização de eventos com segurança e destino turístico global e especializado em nichos de oportunidade como o turismo desportivo, o turismo de montanha e o turismo sénior.
Cabo Verde interliga-se culturalmente em múltiplos eixos, entre os quais e de forma marcante e única com o espaço de predominância da Língua Portuguesa, abrindo perspetivas de cooperação ativa e criação de valor em áreas fundamentais de que são exemplo a indústria de conteúdos, a indústria de software e de integração de soluções adequadas ao modo de pensar gerado pela matriz linguística, à consultadoria internacional e às parcerias estratégicas em domínios como as comunicações, os transportes, a infraestruturação territorial, a cultura, a saúde ou a formação de quadros.
“Last but not least”: para que o aproveitamento dos fatores diferenciadores e das dinâmicas económicas de modernização possam ter um reflexo acrescido na criação de emprego, é fundamental não esquecer que são os recursos humanos o principal fator de diferenciação de qualquer economia. Pelo que, importa preparar a população cabo-verdiana para os desafios da sociedade do conhecimento, elevando os seus níveis de competência através, nomeadamente, da formação e da instituição da aprendizagem ao longo da vida para todos, incluindo a reconversão de competências. bem como duma aposta generalizada no desenvolvimento científico e tecnológico. Neste quadro torna-se necessário implementar um plano ambicioso de requalificação das pessoas e dos processos, envolvendo de forma transversal todas as áreas da governação, plano esse que poderá ser dada a designação de plano tecnológico.
Está inteiramente nas nossas mãos construir um país pós-pandémico que seja mais desenvolvido, sustentável e coeso do que aquele que tínhamos antes da crise.
Praia, 26de fevereiro de 2022