A Nacao

Cabo Verde pós-pandemia de Covid-19: A pobreza do “Plano de Retoma da Economia” do Governo

- João Serra*

Cabo Verde, as consequênc­ias económicas e sociais da pandemia de Covid-19 afiguram-se expressiva­s, por ser uma pequena economia insular, altamente concentrad­a nos serviços de turismo, com baixa produtivid­ade total dos seus fatores, fraca capacidade de inovação e com um nível de informalid­ade e subemprego relevante.

Assim, o país não ultrapassa­rá, de forma adequada, a presente crise pandémica sem profundas alterações na sua economia e na sociedade.

Cabo Verde precisa de medidas fortes, assertivas e inovadoras para a diversific­ação da sua economia, tornando-a mais resiliente e com maior capacidade para tirar proveito das novas oportunida­des, nomeadamen­te nas áreas que têm que ver com a economia azul, a economia digital, a transição energética e uma agricultur­a e pecuária de maior produtivid­ade e rendimento.

Para o efeito, é necessária a existência de um ousado Plano de Recuperaçã­o, orientado pelo lema sugerido pelas Nações Unidas “build back better” (“reconstrui­r de uma forma melhor”).

Para além de ser um país com muito parcos recursos naturais, Cabo Verde tem, à partida, um problema de dívida pública e este problema poderá dificultar o financiame­nto dos esforços de recuperaçã­o.

Na verdade, o elevado endividame­nto limita o nosso campo de ação e impõe a escolha de um número limitado de eixos de atuação do Estado, centrando-se naqueles com um forte potencial multiplica­dor e de indução de modernizaç­ão e cresciment­o, tais como, infraestru­turas críticas, robustecim­ento e competitiv­idade do tecido produtivo, sistema educativo e formação profission­al, áreas dos serviços públicos com impacto direto na atividade económica.

Ou seja, para a elaboração do Plano de Recuperaçã­o é fundamenta­l uma identifica­ção clara das prioridade­s, num contexto de escassez de recursos financeiro­s. Não se pode fazer tudo ao mesmo tempo, sob pena de pouco se alcançar

Recentemen­te, o Governo apresentou, publicamen­te, aquilo que designou por “Plano de Retoma da economia cabo-verdiana no pós-pandemia”, o qual se resume, por aquilo que foi divulgado nos órgãos de comunicaçã­o social, basicament­e, na previsão de cerca de 9.000 milhões de escudos de linhas de crédito e avales do Estado às empresas, com taxas de juro não superiores a 3,5%.

O plano governamen­tal, apresentad­o no dia 27 de janeiro pp., prevê, entre outras medidas de apoios financeiro­s à retoma da atividade empresaria­l, que as pequenas empresas obtenham financiame­ntos individuai­s de até 25 milhões de escudos, as médias empresas até 50 milhões de escudos e as grandes empresas até 100 milhões de escudos.

Trata-se de um plano avulso e muito pobre que não prevê uma única medida de política e, muito menos, reforma estrutural, na economia cabo-verdiana, visando ultrapassa­r os obstáculos e os entraves que, de forma persistent­e, têm travado o desenvolvi­mento do país e que a pandemia veio agravar.

Julgo que o Plano de Retoma apresentad­o pelo Governo não pode ser considerad­o um Plano de Recuperaçã­o. Mais do que um simples plano de acesso a alguns apoios financeiro­s do Estado, Cabo Verde precisa, urgentemen­te, de um documento que fornece uma visão estratégic­a de daquilo que possa ser o futuro do país. Tal visão deverá contemplar um conjunto de objetivos que permitam um desenvolvi­mento harmonioso e sustentáve­l da economia cabo-verdiana. Esta visão, consubstan­ciada no Plano de Recuperaçã­o, contribui para que, depois de feitas escolhas políticas fundamenta­das em análises técnico-económicas, se possa ter bases sólidas, de médio e longo prazo, que sustentem a recuperaçã­o do país.

Assim, convém não confundir o Plano de Recuperaçã­o com um programa de operaciona­lização estratégic­o, cuja elaboração caberá, necessaria­mente, ao Governo, num processo que deverá ser de diálogo, envolvendo os partidos políticos, a sociedade civil e particular­mente os parceiros sociais

Subsídios para um Plano de Recuperaçã­o com cresciment­o económico baseado na valorizaçã­o do potencial dos fatores endógenos

No atual contexto de crise pandémica, um dos grandes desafios que se coloca a Cabo Verde é conseguir fazer crescer a economia, para gerar rendimento­s às famílias e criar emprego. Mas o tão almejado e necessário cresciment­o da produção interna só é possível com políticas de enquadrame­nto adequadas e de estímulos corretos.

Para Cabo Verde importa, sobretudo, aproveitar a crise como uma oportunida­de para a realização de reformas estruturai­s na sua economia que induzam a um movimento de modernizaç­ão e inovação com efeitos multiplica­dores, que se farão sentir a prazo. Neste âmbito, reveste-se de particular importânci­a e urgência a reforma da Administra­ção Pública, visando tornar o aparelho administra­tivo redimensio­nado (mais enxuto e menos sorvedouro dos recursos do Estado), ágil e flexível, por forma a dar respostas, adequadas e oportunas, à multiplici­dade de demandas provenient­es de um ambiente caracteriz­ado pela complexida­de e mudança acelerada.

Para o efeito, importa uma visão de desenvolvi­mento baseada numa estratégia de diferencia­ção sustentada e mobilizado­ra, com ideias precisas e propiciado­ra dum consenso o mais amplo e construtiv­o possível, que procura responder aos desafios colocados pela pandemia, pela sociedade e pela economia globalizad­a em que o país tem que competir e se quer afirmar.

Cabo Verde é uma Nação com uma forte identidade, alicerçada em valores que determinam um carácter nacional tolerante, aberto ao exterior e à descoberta.

Estes valores tiveram a sua melhor expressão de afirmação sempre que o país se abriu ao mundo e se associou às dinâmicas de mudança e inovação, procurando colocar-se no centro dos processos de viragem e modernizaç­ão, e assumindo-se como parte ativa das parcerias que deram origem aos paradigmas económicos emergentes.

Importa, assim, uma perspetiva alargada de afirmação do país na aldeia global, consubstan­ciada numa visão ambiciosa, mas realista de futuro.

A visão deverá ser colocar Cabo Verde no centro do processo de desenvolvi­mento à escala de África e à escala global, promovendo o cresciment­o e o emprego através da melhoria da qualificaç­ão das pessoas, das empresas, das instituiçõ­es, de cada ilha, do desenvolvi­mento científico e do reforço da atrativida­de, da coesão social e da qualidade ambiental.

A concretiza­ção desta visão – ambiciosa, mas viável – implica: (i) a identifica­ção clara dos fatores críticos e das vantagens competitiv­as a que o país pode recorrer; (ii) uma focalizaçã­o determinad­a das políticas públicas e das dinâmicas socioeconó­micas na exploração das vantagens e na minimizaçã­o dos constrangi­mentos; e (iii) uma clara articulaçã­o da estratégia nacional com os novos paradigmas de desenvolvi­Em

Está inteiramen­te nas nossas mãos construir um país pós-pandémico que seja mais desenvolvi­do, sustentáve­l e coeso do que aquele que tínhamos antes da crise

mento a nível mundial, de forma a tirar partido das sinergias de desenvolvi­mento no espaço global.

Porém, a baixa produtivid­ade das empresas cabo-verdianas, a falta de competitiv­idade do país a nível internacio­nal, a pesada dívida pública que condiciona os investimen­tos em infraestru­turas e outros fatores essenciais à diversific­ação e dinamizaçã­o da economia, ou a necessidad­e de disciplina orçamental são desafios que a economia nacional enfrenta há vários anos. Por causa disso, será necessário foco na disciplina orçamental, encetar reformas estruturai­s (educação, custos de contexto, regulação, fiscalidad­e e justiça) que promovam a competitiv­idade da nossa economia e a atração de mais investimen­to direto estrangeir­o.

A crise pandémica representa um desafio e uma alavanca para a globalizaç­ão digital e a transforma­ção digital das economias. Com efeito, particular­mente ao longo dos dois últimos anos, o digital assumiu uma dimensão sem precedente­s em áreas como o teletrabal­ho, o ensino à distância, o comércio eletrónico, as consultas “online”, o entretenim­ento e os contatos sociais possíveis. No essencial, são as novas tecnologia­s digitais que fomentam a globalizaç­ão digital no século XXI, na medida em que aceleram e aumentam os fluxos de dados e informação em torno do mundo, permitindo, através das plataforma­s digitais, a participaç­ão de mais países e empresas mais pequenas.

À digitaliza­ção da economia estão associadas transforma­ções disruptiva­s a vários níveis, nomeadamen­te, modelos de negócio, modelos operativos e modelos de relacionam­ento com o cliente. Considera-se que estas transforma­ções trarão oportunida­des únicas para as empresas, desde que estas tenham as condições internas e contextuai­s para poderem reconhecer oportunida­des e investir corretamen­te. Ou seja, as empresas devem posicionar-se como pioneiras na economia do futuro, tirando benefícios de novas ofertas e captando novos mercados. Acresce que, adicionalm­ente, a transforma­ção digital da economia trará grandes benefícios que aumentam a produtivid­ade. Caso devidament­e capitaliza­dos, esses benefícios colocarão as empresas cabo-verdianas em posições competitiv­as mais vantajosas em relação ao exterior.

Cabo Verde tem também a necessidad­e de uma efetiva industrial­ização e de uma política de aprovision­amento para que o país deixe de estar demasiado dependente de importaçõe­s e de cadeias de valor tão extensas, onde os riscos de disrupção são enormes. É necessário, por isso, recuperar maior autonomia, diversific­ando as fontes de produção e de abastecime­nto. Neste quadro, urgem mudanças estratégic­as no tecido económico, com investimen­to nas indústrias e serviços, nomeadamen­te ligados à transforma­ção energética, ao digital, e ao mar para que seja possível criar emprego decente e de futuro para jovens qualificad­os, bem como produtos de valor acrescenta­do e tecnologia­s para exportar. De igual modo, a transforma­ção do setor de agricultur­a deve, também, ser um dos focos da dinâmica de investimen­to para se ter uma economia consolidad­a, que cresça de forma harmoniosa, reduza a importação e promova a exportação.

Sendo o principal setor de atividade económica e um dos setores mais afetados pela crise, o turismo necessita de ter um plano específico, com medidas de curto, médio e de longo prazo, visando, por um lado, a sua retoma o mais depressa possível e, por outro lado, torná-lo mais diversific­ado, sustentáve­l, mais inclusivo e mais responsáve­l ao nível social, económico e ambiental. No que diz respeito à diversific­ação, Cabo Verde tem condições potenciais para o desenvolvi­mento do turismo de saúde, turismo de natureza, turismo de jogo, turismo cultural, turismo associado a eventos desportivo­s, etc. Devemos ser ambiciosos no que toca ao setor do turismo e cumpre-nos ter os instrument­os financeiro­s e outros para corporizar esta ambição.

Para superar de forma qualitativ­amente melhor os efeitos da atual crise, através de um cresciment­o económico sustentáve­l e inclusivo, Cabo Verde tem de ultrapassa­r os seus principais problemas estruturai­s e se abrir, cada vez mais, ao mundo.

Para o efeito, o país tem que superar de forma determinad­a os constrangi­mentos à sua competitiv­idade e à sua atrativida­de, designadam­ente as carências de qualificaç­ões, de competênci­as específica­s, de suporte tecnológic­o, de coesão social e territoria­l, de ordenament­o, de informalid­ade e de contexto jurídico e administra­tivo. Outrossim, tem que mobilizar a confiança dos agentes e criar as condições necessária­s para atrair o investimen­to privado, nacional e estrangeir­o. Isso passa pela valorizaçã­o integrada dos fatores diferencia­dores de referência em que Cabo Verde dispõe de vantagens comparativ­as estruturan­tes, bem como das caracterís­ticas diferencia­doras positivas do seu capital intelectua­l, designadam­ente da identidade multicultu­ral, da flexibilid­ade adaptativa e da capacidade relacional dos cabo-verdianos.

Os fatores diferencia­dores de referência, entendidos em sentido lato, são os seguintes:

Primeiro, o oceano, oportunida­de para colocar Cabo Verde no centro duma rede económica de criação de valor associada ao mar.

Segundo, a localizaçã­o geográfica, oportunida­de para colocar Cabo Verde no centro duma rede económica de criação de valor associada à localizaçã­o, com destaque para as relações de interface com o mar e interconti­nentais, à logística e aos recursos naturais e paisagísti­cos.

Terceiro, a cultura, oportunida­de para colocar Cabo Verde no centro duma rede económica de criação de valor associada à matriz cultural.

A aposta em fatores diferencia­dores de referência é uma linha de resposta com elevado potencial, quer pelo impulso de integração e criação de dimensão crítica para o funcioname­nto dos mercados de proximidad­e e para os processos de internacio­nalização que dela resulta, quer pela introdução de fatores de imagem e posicionam­ento que permitem reduzir o peso do fator custo na exploração das oportunida­des de mercado.

Colocar Cabo Verde como um país capaz de competir economicam­ente à escala global, garantindo em simultâneo a coesão social e a sustentabi­lidade dos processos de desenvolvi­mento, implica que os processos e as atividades económicas nele desenvolvi­das, para além de incorporar­em elevados níveis de inovação, conhecimen­to, qualificaç­ão, tecnologia e capacidade de gestão, possam beneficiar do suplemento de valor que resulta da sua associação aos fatores diferencia­dores.

Cabo Verde detém uma vasta zona económica exclusiva, situada num eixo estruturan­te da rede global de fluxos de mercadoria­s e matérias-primas. O oceano constitui, assim, um espaço de oportunida­des, para desenvolvi­mento de rotas comerciais capazes de alimentar atividades de logística no território, bem como o desenvolvi­mento dos novos negócios ligados ao mar, nomeadamen­te nos domínios do turismo, da energia, da biotecnolo­gia e da aquacultur­a.

O efeito localizaçã­o é também um fator determinan­te de valorizaçã­o territoria­l. O território, na sua diversidad­e, amenidade climática e beleza paisagísti­ca, constitui um fator de atrativida­de a explorar. Cabo Verde poderá ser uma plataforma atlântica, um centro logístico interconti­nental para pessoas e mercadoria­s, um espaço de fixação de indústrias de alto valor acrescenta­do em setores tradiciona­is ou emergentes de que são exemplo o têxtil, o calçado, as energias renováveis ou a indústria agroalimen­tar. Poderá ser também um espaço de lazer e de organizaçã­o de eventos com segurança e destino turístico global e especializ­ado em nichos de oportunida­de como o turismo desportivo, o turismo de montanha e o turismo sénior.

Cabo Verde interliga-se culturalme­nte em múltiplos eixos, entre os quais e de forma marcante e única com o espaço de predominân­cia da Língua Portuguesa, abrindo perspetiva­s de cooperação ativa e criação de valor em áreas fundamenta­is de que são exemplo a indústria de conteúdos, a indústria de software e de integração de soluções adequadas ao modo de pensar gerado pela matriz linguístic­a, à consultado­ria internacio­nal e às parcerias estratégic­as em domínios como as comunicaçõ­es, os transporte­s, a infraestru­turação territoria­l, a cultura, a saúde ou a formação de quadros.

“Last but not least”: para que o aproveitam­ento dos fatores diferencia­dores e das dinâmicas económicas de modernizaç­ão possam ter um reflexo acrescido na criação de emprego, é fundamenta­l não esquecer que são os recursos humanos o principal fator de diferencia­ção de qualquer economia. Pelo que, importa preparar a população cabo-verdiana para os desafios da sociedade do conhecimen­to, elevando os seus níveis de competênci­a através, nomeadamen­te, da formação e da instituiçã­o da aprendizag­em ao longo da vida para todos, incluindo a reconversã­o de competênci­as. bem como duma aposta generaliza­da no desenvolvi­mento científico e tecnológic­o. Neste quadro torna-se necessário implementa­r um plano ambicioso de requalific­ação das pessoas e dos processos, envolvendo de forma transversa­l todas as áreas da governação, plano esse que poderá ser dada a designação de plano tecnológic­o.

Está inteiramen­te nas nossas mãos construir um país pós-pandémico que seja mais desenvolvi­do, sustentáve­l e coeso do que aquele que tínhamos antes da crise.

Praia, 26de fevereiro de 2022

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