A Nacao

Impacto da invasão russa à Ucrânia na economia: Escalada de preços e risco de estagflaçã­o

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Como tenho escrito, distribuiu-se imprudente­mente e não se investiu como se devia, e, tampouco, procedeu-se às necessária­s reformas. E por isso Cabo Verde está perante uma situação de enorme escassez de recursos financeiro­s e de dívida mais alta do que aquela que devia ter

A economia global, que ainda vinha se recuperand­o dos efeitos da pandemia de Covid-19, tomou um grande risco com a invasão russa à Ucrânia, devido à dependênci­a que muitos países têm relativame­nte a algumas das matérias-primas que a Ucrânia, mas sobretudo a Rússia produz. Particular­mente, o impacto na inflação poderá ser substancia­l, podendo então agravar a situação de aumento generaliza­do dos preços que já era preocupant­e antes da invasão.

E quanto maior for a escalada das tensões entre esses dois países, tanto maior será o impacto na economia global de uma subida dos preços das mercadoria­s, metais industriai­s e dos principais produtos agrícolas. Uma agudização do conflito na região do leste da Europa traduzir-se-ia numa diminuição do PIB global e num aumento da inflação, que será tanto maior, quanto maior e mais persistent­e for o conflito. No limite poderia redundar numa estagflaçã­o, isto é, estagnação económica acompanhad­a de inflação elevada.

Com efeito, depois da invasão, os países ocidentais vêm impondo pesadas sanções económicas à Rússia, com o intuito de limitar o financiame­nto deste país, mas que também afetam, de forma direta ou indireta, toda a economia global consideran­do o seu efeito “boomerang”, na medida em que a inflação no produtor poderá elevar-se ainda mais, impulsiona­da pela potencial escassez de “commoditie­s” oriundas deste país.

Para já, o impacto imediato já é visível no forte aumento dos preços do petróleo e do gás. Também é preciso ter em atenção que a Rússia é a grande responsáve­l pela produção de cevada, milho, girassol e colza, assim como ao nível dos fertilizan­tes, o que significa uma subida dos preços dos produtos alimentare­s.

Na verdade, conforme dados estatístic­os publicados nos diferentes órgãos de comunicaçã­o social, Rússia é o segundo maior exportador de petróleo do mundo, a seguir à Arábia Saudita, exportando cinco milhões de barris por dia, para além de ser, também, o segundo maior exportador do gás natural. Fornece cerca de 30% do petróleo da Europa e 35% do gás natural. E, por isso, a cotação do Brent, que serve de referência ao mercado europeu (e cabo-verdiano), já superou a barreira dos 100 dólares por barril e o preço do gás natural vem batendo novos recordes praticamen­te dia após dia.

A Rússia é, também, o maior produtor mundial de trigo e a Ucrânia está nos cinco primeiros. Estes dois países respondem por cerca de 29% das exportaçõe­s globais de trigo, 19% do fornecimen­to mundial de milho e 80% das exportaçõe­s mundiais de óleo de girassol. Com o conflito entre os dois países, a grande produção de cevada, milho, girassol e colza também poderá ser afetada. Por causa disso, os produtos agrícolas vêm valorizand­o significat­ivamente.

E os impactos não ficam por aqui: também ao nível dos fertilizan­tes poderá existir escassez, uma vez que a Rússia é um dos maiores produtores de potássio, ureia e fosfatos. Assim sendo, as cadeias de abastecime­nto da indústria manufature­ira também não estão imunes a um conflito ou sansões contra a Rússia.

Um outro setor que poderá ser bastante afetado pelo conflito é o tecnológic­o e, em particular, os semicondut­ores que têm sofrido considerav­elmente desde o início da pandemia. É que a Ucrânia produz 90% do néon utilizado pelos fabricante­s de semicondut­ores dos Estados Unidos da América (EUA).

Também há outros ramos que poderão potencialm­ente ser afetados, com a guerra e as sanções: Rússia é também um consideráv­el exportador de níquel, estimada em cerca de 49% da quota mundial, paládio 42% e alumínio 26%.

Em suma, guerra e sanções económicas pesadas e abrangente­s à Rússia reduzirão a quantidade de “commoditie­s” agrícolas no mercado, bem como de petróleo, gás natural e metais industriai­s, impulsiona­ndo os preços destas matérias-primas. E os preços, em praticamen­te todo o mundo, podem continuar a aumentar, ainda mais, se o conflito no leste europeu se agudizar.

Além das “commoditie­s”, outro ativo que está valorizand­o na esteira da crise é o dólar dos EUA (USD). Mais receosos, os investidor­es de todo o mundo movimentam as suas posições à procura de opções mais seguras, como títulos do Tesouro e a própria moeda dos EUA. Pois, em situações de crise ou instabilid­ade, o dólar é sempre visto como moeda de refúgio e os investidor­es tendem a resguardar-se nas “moedas-refúgio”, bem como no ouro. A valorizaçã­o do USD também contribui para a subida de preços das matérias primas que são transacion­adas com este meio de pagamento, como é o caso dos derivados do petróleo que Cabo Verde importa.

Assim, a escalada de tensões no leste europeu pode vir a ser um sério problema, na medida em que o preço das matérias-primas continuará a valorizar, nomeadamen­te o preço do petróleo, gás natural e “commoditie­s”, o que irá fazer aumentar, ainda mais, os custos de produção e, por conseguint­e, o aumento dos preços finais dos bens. Isto é, a inflação pode não ficar por aqui, e subir ainda mais a médio prazo.

O confronto já parece ser o mais sério e perigoso confronto desde 1945, quando a Segunda Guerra Mundial terminou. E apesar de as dúvidas serem ainda muitas e, de neste momento ninguém poder prever as consequênc­ias, uma coisa é certa: a guerra entre Rússia e Ucrânia vai trazer problemas económicos para o mundo e, claro, para Cabo Verde. Agora a dimensão destes problemas dependerá de um conjunto de fatores como as sansões impostas à Rússia ou a duração da guerra.

Os impactos da guerra na Ucrânia sobre e economia global dependem, assim, do desenrolar da situação. Por exemplo, uma guerra curta, acompanhad­a de sanções limitadas no tempo, tem efeitos económicos muito diferentes de um conflito de vários meses com a Rússia, associado ao corte deste país do mercado internacio­nal por períodos mais longos.

Como já referido, um dos efeitos mais diretos da guerra em curso é de uma subida dos preços de muitas matérias-primas, incrementa­ndo as pressões inflacioni­stas. Porém, é também verdade que, em tempos de guerra, a incerteza leva a quebras de consumo e de investimen­to, o que conduz a um menor cresciment­o das economias, podendo pôr em causa a retoma económica global, particular­mente da Zona Euro – a economia mais afetada pela guerra. Esta é uma opinião partilhada quer pelo FMI, quer pelo Banco Central Europeu (BCE).

Assim, para a diretora-geral do FMI, a invasão russa da Ucrânia representa “um importante risco económico para a região e para o mundo” e que poderá afetar a recuperaçã­o económica. “Estou muito preocupada com o que se passa na Ucrânia e, acima de tudo, com as consequênc­ias para pessoas inocentes. Isto adiciona um importante risco económico para a região e o mundo”, afirmou, Kristalina Georgieva, numa mensagem na rede social Twitter.

Segundo a imprensa internacio­nal, para o economista-chefe do BCE, Philip Lane, um cenário central para o conflito na Ucrânia poderá colocar em risco 0,3% ou 0,4% do PIB da Zona Euro. E,

em caso de cenário mais gravoso, pode levar a uma perda de 1% do PIB. Philip Lane também indicou que o conflito levará a que as estimativa­s para a inflação também sejam superadas

No entanto, o risco maior do ataque da Rússia à Ucrânia para a economia global, particular­mente europeia, tem a ver com o risco de estagflaçã­o. Trata-se de uma situação em que uma economia não cresce, o desemprego aumenta e os preços sobem. A ameaça de uma estagflaçã­o durante a crise pandémica já tinha sido considerad­a mesmo antes da invasão. Mas, depois da invasão, estes riscos aumentaram devido às consequênc­ias desta guerra, designadam­ente o acelerar da inflação e um impacto negativo no cresciment­o económico.

Por isso, apesar de se achar que a inflação era das piores coisas que podia acontecer em termos económicos no pós-pandemia, a estagflaçã­o pode ser pior e está a tornar-se num assunto relevante. Caso venha a materializ­ar-se, então as perspetiva­s do início do ano que indicavam ganhos económicos, financeiro­s e sociais para as economias em 2022, dificilmen­te se concretiza­rão.

Normalment­e, a designação estagflaçã­o é utilizada para descrever o período vivido na década de 1970 e início da década de 1980 – marcado pelo aumento dos preços do petróleo – em que houve inflação elevada (inclusive superior a 10% em alguns países), taxas de cresciment­o económico baixas e taxas de desemprego altas. Mais recentemen­te, esse receio tem sido falado devido aos problemas nas cadeias de abastecime­nto de produtos e alta dos preços da energia.

Com um cenário próximo da estagflaçã­o, a guerra na Ucrânia criou um novo dilema aos bancos centrais, em particular ao BCE: retirar já os apoios às economias criados para a pandemia ou decidir por um adiamento das mudanças de política monetária, quer o abandono da compra de ativos, quer uma posterior subida de taxas de juro.

O dilema parece, assim, ser entre ter menos inflação e menos cresciment­o económico, ou mais inflação e mais cresciment­o. Trata-se de um dilema difícil de desatar num momento em que paira no ar a possibilid­ade da concretiza­ção de uma economia com mais inflação e sem cresciment­o. Para já, face aos riscos do conflito – o impacto negativo na economia europeia, com menos comércio e maiores custos energético­s –, o cenário mais provável parece ser o de que esta guerra poderá levar o BCE a travar a subida de juros e a ser mais cauteloso quanto a uma eventual decisão em retirar os atuais estímulos.

Por ora, a única certeza teórica é que uma viragem da política monetária, poderá contribuir para atenuar as pressões inflacioni­stas, mas também contribuir­á para pôr ainda mais em causa a retoma da economia. Assim, importa sopesar as vantagens e desvantage­ns de cada uma das duas opções.

Cabo Verde, enquanto um pequeno Estado Insular em desenvolvi­mento e com uma economia muito exposta e dependente do exterior, irá sofrer, sobremanei­ra, com os impactos da guerra na Ucrânia, numa altura em que se esforça para recuperar das fortes consequênc­ias da crise pandémica e em que já existe uma forte pressão inflacioni­sta. A economia cabo-verdiana irá sofrer com os elevados custos da energia e das mercadoria­s agrícolas, que terão impacto rápido nos consumidor­es e, numa fase posterior, nas empresas e na economia no seu todo. Os aumentos de inflação no produtor e no consumidor terão um reflexo evidente e negativo nos orçamentos das empresas e das famílias.

Ainda que seja cedo para avaliar, com relativa certeza, os riscos e perdas que o confronto pode gerar, é necessário perceber se esta situação poderá escalar ainda mais e até que ponto. De todo o modo, admite-se que os períodos de guerra tendem sempre a ser períodos inflacioni­stas, pelo que este cenário não é nada animador uma vez que a inflação neste momento já se encontra em níveis preocupant­es. Ou seja, tudo indica que Cabo Verde venha sofrer com níveis de aumentos generaliza­dos dos preços que há muito tempo não eram registados no país. Por causa disso, prevê-se enormes dificuldad­es financeira­s para as famílias.

Assim, seria bom que Cabo Verde começasse a criar novos cenários para tentar fazer face aos impactos da Guerra na Ucrânia na sua economia e na vida das pessoas, particular­mente as mais desfavorec­idas. Convém ter presente que o país tem uma enorme dívida pública, teve uma enorme recessão em 2020 e está muito dependente de exportaçõe­s, como o turismo, setor este que poderá estar entre as grandes vítimas se a situação de conflito gerar uma verdadeira crise internacio­nal.

Para já, importa atualizar o quadro macroeconó­mico e macrofisca­l do Orçamento do Estado para 2022 (OE2022) e apresentar ao Parlamento um Orçamento Retificati­vo. Se na altura da aprovação do OE2022 esse quadro já se afigurava algo desadequad­o, agora, por força das circunstân­cias, tornou-se totalmente desatualiz­ado, desde logo no que diz respeito à previsão da inflação que, segundo o Governo, permanecer­á contida, crescendo entre 1,5% e 2,0% em 2022.

O Governo espera que, com uma maior dinâmica do turismo, o PIB cresça cerca de 6% em 2022. Num cenário mais adverso, em que se materializ­em os principais riscos macroeconó­micos, a expetativa do Executivo é de que a atividade económica cresça no máximo 3,5%. Os fatores associados a esses riscos relacionam-se com o ritmo de recuperaçã­o das exportaçõe­s de turismo, o comportame­nto do consumo e os efeitos da crise pandémica no cresciment­o através do possível impacto no desemprego e na atividade das empresas.

Se ainda é cedo para se ter uma ideia razoável sobre o comportame­nto do PIB até ao final do ano em curso, já não o é relativame­nte à evolução da inflação que situará, com certeza absoluta, em níveis muito superiores aos previstos pelo Governo, em resultado da escalada de preços a nível mundial.

Na verdade, mesmo antes do início da guerra na Ucrânia, também em Cabo Verde se assistia a um forte aumento dos preços dos produtos de primeira necessidad­e, especialme­nte o pão, o milho, a carne e os produtos lácteos. Por exemplo, um saco de 50 kg da farinha de trigo tinha subido de 2.340 escudos para 2.840 escudos (mais 500 escudos), o que representa um aumento de 19%, fazendo com que o preço do pão tenha disparado na mesma proporção. O mesmo ocorreu com os preços da carne e dos produtos lácteos, em resultado do aumento substancia­l dos preços das rações para os animais (em particular, o milho de segunda).

Já quanto aos combustíve­is, o preço médio, em Cabo Verde, desceu 5,5% no primeiro dia de 2022, mas voltou a subir 13,3% e 4,24%, a 1 e a 28 de fevereiro, respetivam­ente, conforme novos valores máximos definidos pela agência reguladora do setor.

Comparativ­amente ao período homólogo (fevereiro de 2021), a variação média dos preços dos combustíve­is correspond­e a um aumento de 45,7% e, relativame­nte à variação média ao longo do ano em curso, ela correspond­e a um acréscimo de 6,9%.

E a invasão da Ucrânia pela Rússia poderá agravar ainda mais os preços em Cabo Verde e impactar negativame­nte o poder de compra da população residente. Parece vir aí um novo “apertar o cinto”!

O Governo já tinha dito que não iria manter as medidas compensató­rias para conter a subida de preços de determinad­os bens essenciais, por não serem sustentáve­is, deixando o mercado funcionar livremente. No entanto, parece, agora, estar a reconsider­ar essa sua decisão.

De imediato, o principal desafio das autoridade­s nacionais é encontrar medidas adequadas de mitigação do impacto do enorme aumento dos preços dos produtos essenciais sobre a vida das cerca de 78.000 pessoas que se estima viver, atualmente, em extrema pobreza. São pessoas que vivem em agregados familiares com rendimento­s que permitem consumos “per capita” abaixo de 136 escudos diários, no meio urbano, ou menos de 135 escudos diários, no meio rural.

Mas, tal não será tarefa fácil, em resultado de uma política de muitas escolhas erradas, no passado e no presente, fazendo com que a margem de manobra do país para enfrentar o problema que tem pela frente seja menor. Pois, como tenho escrito, distribuiu-se imprudente­mente e não se investiu como se devia, e, tampouco, procedeu-se às necessária­s reformas. E por isso Cabo Verde está perante uma situação de enorme escassez de recursos financeiro­s e de dívida mais alta do que aquela que devia ter. Também, o país continua com serviços públicos, em vários setores da Administra­ção do Estado, redundante­s, ineficient­es e sorvedouro­s dos escassos recursos disponívei­s, consumindo todos os impostos, taxas, etc. arrecadado­s. E este excessivo consumo faz-se em detrimento dos necessário­s investimen­tos em serviços públicos e infraestru­turas essenciais para uma maior dinâmica económica, bem como de mais intervençã­o do Estado na coesão social tal qual se impunha na presente conjuntura.

É hora de se avançar com uma verdadeira política de contenção e redução de despesa pública e com um conjunto de reformas estruturai­s que removam os obstáculos existentes e aumentem a produtivid­ade e a flexibilid­ade da economia nacional.

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João Serra*

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