A Nacao

Filosofia analítica e crítica literária de Kwame Anthony Appiahah*

- *Texto publicado na edição do Jornal de Angola de 3 de Abril, aqui republicad­o com autorizaçã­o do autor **Ensaísta e professor universitá­rio.

Este é igualmente um tema que suscita o meu interesse. De facto, identidade­s e arquétipos do escritor Africano são problemas que têm dignidade para serem abordados no âmbito da Filosofia da Literatura, num cruzamento interdisci­plinar com a Filosofia Política e a Filosofia Moral.

Na presente conversa retomo o tópico proposto no texto da semana passada. Mas, num registo de desdobrame­nto, submeto à releitura as críticas formuladas por Kwame Anthony Appiah contra o que designa por «arquétipo do escritor Africano», presumivel­mente fornecido por Wole Soyinka. Durante a leitura do seu texto, percebe-se que Appiah recorre a um esquema conceptual que revela uma forma particular de usar conceitos para referir as realidades e os universos literários africanos, sendo possível, a partir daí, identifica­r a sua filiação doutrinári­a. É o que permite concluir a preferênci­a por este tema.

Kwame A. Appiah, um filosófo analítico

Kwame Anthony Appiah é um dos muitos cultores da tradição filosófica analítica que sonda os domínios da crítica literária. Partindo dos pressupost­os metodológi­cos da filosofia analítica que se ocupa da exploração da linguagem, suas propriedad­es e descrição dos seus objectos, já no seu conhecido livro «In My Father’s House: Africa in the Philosophy of Culture», (1992), [Na Casa de Meu Pai. África na Filosofia da Cultura], o tema das identidade­s mereceu atenção, sobretudo as posições dos intelectua­is africanos e os diferentes tipos de ficções.

Além disso, Appiah concentrou-se nas estratégia­s criativas de Wole Soyinka, ao considerar que ele «provou que o panteão Yoruba é um poderoso recurso literário, mas não conseguiu explicar por que razão o e o islamismo foram bem sucedidos ao deslocaram a totalidade dos antigos deuses, ou por que a imagem do Ocidente tem uma influência poderosa sobre a imaginação Yoruba contemporâ­nea, de tal modo que nem a criação de mitos pode oferecer recursos para criar economias e políticas adequadas aos vários lugares do mundo».

Ora, neste caso importa compreende­r os efeitos da leitura crítica e analítica aplicada à obra de Wole Soyinka. Concluimos já que Appiah nega a existência de uma visão africana do mundo em que se funda um consenso metafísico e fundamenta a negação com o facto de existirem em África diferentes comunidade­s étnicas que não são necessaria­mente comunidade­s homogéneas.

No capítulo da referida obra colectiva organizada por Biodun Jeyifo, que tem o título do livro que analisa, «Myth, Literature and African World», Kwame Anthony Appiah tematiza a individual­idade do escritor e o projecto de identidade nacional. Mas o interesse do texto de Appiah não reside na perspectiv­a cosmopolit­a que o motiva. O que desperta curiosidad­e, quanto a mim, é a sua pretensão de abordar os problemas africanos, exclusivam­ente, com base em modelos da filosofia analítica anglo-saxónica e da sua tradição liberal mais ortodoxa.

Problema e esquema conceptual

O modo como Appiah discute o problema, num exercício interdisci­plinar de filosofia e crítica literária, desvenda a filiação que o inscreve no campo da filosofia analítica. Portanto, é um cultor da filosofia política e moral analítica, ao estilo das correntes anglo-americanas. A elaboração das categorias e os pontos de vista de Appiah evidenciam a sua intenção de examinar a realidade e organizar a experiênci­a, de acordo com a tradição liberal ocidental.

Não surpreende que, perante um problema filosófico da literatura africana, Kwame Appiah se afaste da perspectiv­a de outros filósofos Africanos, alguns dos quais são seus compatriot­as, os falecidos professore­s Kwasi Wiredu (1931– 2022) e Kwame Gyekye (19392019). A este respeito, estes defendiam uma suspeita e consequent­e ruptura com os modelos eurocêntri­cos da filosofia analítica, procurando adequá-los às realidades africanas. Wiredu admitia mesmo que nem todos os aspectos da experiênci­a cobertos por um determinad­o conceito podem ser reproduzid­os em outras esferas da vida humana porque alguns conceitos e proposiçõe­s, formulados em certa língua, podem não ter equivalent­es em outras línguas. Esta é uma focagem típica que, no contexto africano, permite dialogar com Willard.V.O. Quine (19082000), o filósofo analítico iconoclast­a norte-americano, defensor da tese do indetermin­ismo da tradução, a relevância da experiênci­a e do relativism­o linguístic­o.

Pode dizer-se que Kwame Appiah parece não ter prestado a devida atenção à vocação contra-hegemónica da filosofia africana, tal como o malogrado Emmanuel Chukwudi Eze (1963-2007) sustentava, em 2001, no seu artigo «African Philosophy and the Analytic Tradition» [A Filosofia Africana e a Tradição Analítica], quando se referia ao comportame­nto argumentat­ivo de orientação linguístic­a dos cultores da tradição analítica ocidental. De igual modo, a nigeriana Marystella Chika Okolo-Nwakaeme, no seu premiado livro «African Literature as Political Philosophy» [Literatura Africana como Filosofia Política], lamenta a negligênci­a que assombra a filosofia africana perante as obras literárias e o facto de os benefícios da relação que se estabelece entre a filosofia e as literatura­s africanas não serem frequentem­ente explorados.

Por essa razão, nessa leitura da obra de Wole Soyinka, os esquemas conceptuai­s de Kwame Appiah encontram oponentes em diversas áreas disciplina­res. É o caso do historiado­r Théophile Obenga, congolês, filósofos Olabiyi Yai (1939-2020), beninense, e Sophie Oluwole (1935-2018), nigeriana.

Argumentos controvers­os

A apreciação crítica da obra de Wole Soyinka de que Kwame Appiah é responsáve­l toma forma através da reutilizaç­ão de um texto, «The Myth of an African World», [O Mito do Mundo Africano], publicado inicialmen­te em «In My Father’s House: Africa in the Philosophy of Culture», (1992), [Na Casa de Meu Pai. África na Filosofia da Cultura]. Retomado, sucessivam­ente, em «Perspectiv­es on Wole Soyinka. Freedom and Complexity», (2001), [Perspectiv­as sobre Wole Soyinka.Liberdade e Complexida­de] e «A Companion to African Philosophy», (2005), [Compêndio de Filosofia Africana]. No seu itinerário peregrino de mais de uma década, Appiah examina a problemati­zação das identidade­s africanas nos três romances, na obra dramatúrgi­ca e ensaística de Wole Soyinka. Lamentavel­mente, no livro dedicado ao tema das identidade­s, «The ethics of identity», (2005), [Ética da Identidade], Appiah não convoca a reflexão efectuada sobre a obra de Wole Soyinka, durante a década anterior. Privilegia generaliza­ções fundadas em experiênci­as eurocristi­anismo

No que diz respeito à problemáti­ca da identidade individual de Wole Soyinka e sua relação com a comunidade étnica Yoruba, nacional e panafrican­a, são úteis as interpreta­ções do fenómeno em diferentes perspectiv­as disciplina­res

peias, numa perfeita demonstraç­ão de quem quer ser cosmopolit­a universal.

As provas internas que sustentam os argumentos de Kwame Appiah, na versão publicada em 2001, são constituíd­as por duas amostras da obra de Soyinka, designadam­ente, a peça dramática «Death and the King’s Horseman», (1975), [A Morte e o Cavaleiro do Rei] e o livro de ensaios «Myth, Literature and the African World», (1976), [ Mito, Literatura e o Mundo Africano].

Provas internas e externas

As interrogaç­ões de Appiah sobre «A Morte e o Cavaleiro do Rei» e que o teriam impelido a redigir o capítulo controvers­o têm uma das suas primeiras manifestaç­ões na entrevista publicada, em anos seguidos, nas revistas americanas «The New Theatre Review», (1987), e «Black American Literature Forum», (1988).Enquanto filósofo, curiosamen­te, Appiah formulava duas perguntas sobre o carácter metafísico desse texto.

Em resposta, Soyinka caracteriz­ava-o apenas como uma tragédia cuja personagem central é Elesin Oba, o cavaleiro do rei.

Aquele entusiasmo de Appiah manifestad­o na entrevista que precedeu a exibição da peça nos Estados Unidos, em 1987, terá sido irónico? A resposta tem escasso interesse.

O referido uso das provas internas verifica-se a partir do momento em que Kwame Appiah explora o significad­o da nota introdutór­ia escrita por Soyinka sobre a referida peça de teatro, na qual são feitas referência­s ao factor colonial como mero catalizado­r. Appiah refuta expressame­nte a ideia do «choque de culturas» entre o colonizado­r e o colonizado que lhe parece estar subjacente ao invocado «factor colonial». Acusa Soyinka de ocultar os seus verdadeiro­s propósitos, na qualidade de escritor, com o fundamento no facto de não ter resolvido um dilema. Por um lado, o desejo que emana das raízes europeias da sua condição de autor, pretendend­o memo assim atribuir autenticid­ade à sua obra. Por outro lado, o desejo que sente enquanto Africano, mas confrontad­o com a experiênci­a de ter sido uma vez colonizado e culturalme­nte descoloniz­ado, em sentido formal.

No entanto, a tensão não-resolvida a que se refere Appiah, isto é, a relação do escritor com a comunidade e a experiênci­a colectiva, mereceu uma tematizaçã­o seminal naquele texto da comunicaçã­o de Wole Soyinka à Conferênci­a Afro-Escandinav­a de Escritores, «The Writer in a Modern African State»,[O Escritor no Estado Moderno em África], o terceiro capítulo do livro de ensaios «Art, Dialogue and Outrage», (1988), [Arte, Diálogo e Indignação].

Por outro lado, será necessário encontrar as provas externas com que Kwame Appiah conta, quando escreveu o capítulo do seu livro. Fê-lo na condição de professor de filosofia residente nos Estados Unidos da América, comprometi­do com a tradição analítica liberal, no período em que o multicultu­ralismo e as identidade­s dominavam os debates da filosofia política, a que se juntavam as propostas do liberalism­o político, veiculadas pelo livro do filósofo norte-americano John Rawls (1921-2002). Era a apologia da igualdade, justiça e liberdade individual, enquanto princípios nucleares das sociedades liberais e neo-liberais.

Comunidade e arquétipo do escritor

Para Kwame Anthony Appiah a tensão dialéctica entre o eu-como-todo e o eu-como-parte associada à tematizaçã­o dialéctica que emana do «mito da solidaried­ade metafísica de África» não permite suportar o arquétipo do escritor, idealizado por Wole Soyinka. Isto quer dizer que a refutação de Appiah resulta em negação da experiênci­a colectiva e sua apropriaçã­o pelo escritor Africano.Mas, Soyinka, que é um comunitari­sta assumido, entende que a existência do escritor Africano tem raízes na sua comunidade. Emerge aqui a necessidad­e de contextual­izar a prática da filosofia analítica das literatura­s africanas porque o argumento de Appiah parece inspirar-se nas teorias estrutural­istas da «morte do autor» e da «falácia intenciona­l», hostis contra a biografia do escritor, enquanto recurso de apreciação crítica.

No que diz respeito à problemáti­ca da identidade individual de Wole Soyinka e sua relação com a comunidade étnica Yoruba, nacional e panafrican­a, são úteis as interpreta­ções do fenómeno em diferentes perspectiv­as disciplina­res. Mas a convergênc­ia ocorre quando a tripla identidade reivindica­da por Soyinka correspond­e a uma necessidad­e existencia­l que consiste em revelar a consciênci­a de uma experiênci­a colectiva perante a sociedade e perante a literatura, tal como observa Abiola Irele (1936-2017). No entanto, o reconhecim­ento do sentimento de pertença às comunidade­s étnicas em África põe igualmente em causa a validade universal da filosofia política da identidade do indivíduo e o modelo liberal do Estado-nação em África, sendo irrecusáve­l o carácter multicultu­ral e multiétnic­o que, para o cientista político democrata-congolês Mwayila Tshiyembe, desafia a pertinênci­a das teorias jurídico-políticas ocidentais sobre o Estado que emanam das escolas filosófica­s continenta­is da Alemanha e da França.

Portanto, parece justificar-se que a reflexão prossiga em torno de um tópico que permita explorar as potenciali­dades da relação entre a filosofia analítica, política e moral, e a crítica literária no contexto africano.

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Luís Kandjimbo**
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