A luta das mães mostra que estamos longe de ser uma sociedade inclusiva
Ter um elemento na família com autismo está longe de ser fácil em qualquer que seja o lugar do mundo. O drama é maior numa sociedade como a cabo-verdiana, onde ainda é problema lidar com este tipo de transtorno neurológico. Os relatos de mães de filhos autistas, praticamente sozinhas, ouvidas por esta reportagem, comprovam essa realidade, confirmada também pelos especialistas e associações que lidam com essa questão.
Transtorno do Espectro Autista (TEA), que se pode manifestar através do autismo, é um distúrbio de foro psicológico e físico caracterizado por desenvolvimento atípico. O mesmo manifesta-se por comportamentos tidos como não normais, défices na comunicação e interação social, comportamentos repetitivos e estereotipados, entre outros.
De acordo com a ciência médica, o autismo em crianças ou adolescentes dificilmente é detectado logo à primeira. Os primeiros sinais normalmente são ignorados e justificados como sendo atrasos normais, no pressuposto de que “cada criança precisa do seu próprio tempo” para crescer e desenvolver, o que passa pela expressão de desejos e até de sentimentos.
Este é o quadro comum dos relatos das mães que aceitaram contar um pouco das suas histórias ao
Romice Monteiro
A NAÇÃO, mas sem revelar as suas identidades, para não aumentar a carga de “atenção alheia” desta sociedade que não é tão inclusiva como se pensa e se propaga.
Primeiros Sinais
Diana (nome fictício) é mãe de uma criança autista de seis anos que frequenta o primeiro ano do ensino primário em uma das escolas privadas da Praia. Conforme conta, descobriu que o filho era portador de TEA dos três para quatro anos.
“Com quase quatro anos, ainda não falava, só apontava as coisas. Quando muito dizia uma ou outra palavra, quando queria água, por exemplo, repetia várias vezes”. Convencida que “cada criança tem o seu ritmo de desenvolvimento”, passou a prestar mais atenção a esse seu filho.
“Não sendo mãe de primeira vez, sabia e sei que há metas e etapas que as crianças devem atingir com uma certa idade e ele estava fora de padrão. Não gostava de brincar com os amigos, pedia sempre o mesmo brinquedo e comia sempre no mesmo prato, um de cor azul, dele e de ninguém mais”.
Notando algo de “incomum” no desenvolvimento do filho, aconselhou-se com os familiares, sobretudo o pai que achava que ainda era cedo para procurar ajuda médica. “O pai não aceitava os sinais de diferença que o filho dava e pedia sempre mais tempo, justificando que ele também, quando criança, era assim. Fiquei acreditando nisso na esperança que eu poderia estar errada. Mas, depois, percebi que já não dava para esperar mais e fui atrás de especialistas”.
Primeiramente, Diana levou o filho a uma fonoaudióloga. “Ela levantou a possibilidade de ser um TEA, à primeira. Não fiquei muito surpresa porque, na busca de uma resposta, eu pesquisava muito sobre os sinais e já tinha percebido semelhanças no meu filgo. No entanto, seguimos para outros acompanhamentos que confirmaram o diagnóstico”, lembra.
Período de luto…como procurar ajuda?
No momento em que recebeu tal informação, a nossa entrevistada diz que sentiu o peso da realidade. “Foi como se eu soubesse, mas tendo ainda uma esperança de estar errada”, explicou, confessando que, após o diagnóstico, precisou de tempo para digerir toda a informação, isto antes mesmo de contar a verdade ao pai da criança. “Eu precisava de um tempo para comigo mesma e vencer aquela fase de questionamento”, contou referindo-se à fase comum em mulheres apanhadas neste tipo de drama, “onde foi que eu errei?”
“Mesmo sem querer, isto vem à cabeça. Eu achava que poderiam ser sequelas do primeiro internamento, alguns dias depois de ele nascer, com a meningite. Ficava a pensar ‘se eu que achava que estava preparada para ouvir este diagnóstico tive esta reação depois de tudo se confirmar, qual seria o impacto desta informação no meu marido que estava muito crente de que o filho não tinha nada de errado?”.
Questionava-se, igualmente, com medo de ver o filho rotulado de “doente” pela sociedade. Esta, no geral, tende a ver a criança autista como doente, deficiente, malcriada e atrasada mental, atribuindo as culpas disso à mãe. Ainda por cima, o drama de Diana acabou por agravar-se no próprio seio familiar, já que o pai do filho, ainda hoje, não consegue lidar com o problema. No meio disso tudo, é com dor que desabafa: “Ninguém quer saber do meu estado como mãe”.
“No meu ponto de vista, a sociedade cabo-verdiana ainda não está preparada para aceitar a diferença e podemos notar isso dentro da própria família. Eu, até ainda, há certos lugares que prefiro não frequentar com o meu filho porque as pessoas não sabem do que realmente se passa, chamam de ‘malcriação’ o comportamento da criança e culpam a mãe por tudo. E para não estar a explicar, ou a estressar-me toda a hora, prefiro não ir a certos lugares porque é uma situação desgastante”.
A sociedade, no dizer desta mãe, não esta preparada para lidar com isso e não é só com os autistas: “A parte psicológica, psiquiátrica, no geral. Não há educação e não há sensibilidade. As pessoas estão sempre disponíveis para comentar, apontando o dedo, mas pouco disponíveis para ajudar. E, para além do filho, gostam de rotular a mãe de ‘aquela que não educou o filho’, sem se preocupar em não magoar-nos”.
Cada história uma história…
Diferente de Diana, Victória (nome fictício) diz que descobriu o TEA (Moderado a Baixo) no seu filho quando este tinha sete anos. De igual forma, entre os dois e os três anos, percebeu que ele era “diferente”, mas preferiu dar tempo ao tempo, na esperança de que tudo se haveria de encaixar no devido lugar.
“Como mãe, não foi fácil. Demorei algum tempo para aceitar a diferença, a sua condição. Evitava o assunto, fazendo de conta que a situação não existia, e, consequentemente, não procurei informação, ajuda, orientação, ou até o acompanhamento mais adequado”, confessa.
“Passei pelas seguintes fases: aceitar a condição do meu filho; pesquisar, informar-me melhor sobre o assunto; partilhar e informar esta condição com toda a família, amigos e todos quantos relacionam com ele. Depois, precisei encarar a realidade de forma tranquila e desmistificada para depois procurar ajuda de profissionais da área de saúde e de ensino, para o meu filho”.
Mas Victória teve ainda que procurar ajuda para si própria, tendo em conta o estado psicológico em que se viu enredada, ter lidar com um quadro para o qual não estava preparada. “Enquanto mãe de uma criança especial, assistida por um profissional, existe uma grande tendência de nos culparmos”.
Ultrapassando essa fase de aceitação, Victória arranjou uma escola para o filho, hoje com 10 anos, e procurou acompanhamento com especialistas no Hospital Agostinho Neto, na Associação Colmeia e na Clínica Cereus.
Principais desafios são financeiros
Victória diz perceber, na rua, que as condições do seu filho despertam alguma “atenção alheia” e que até isso a incomodou no início. “Existem muitas dificuldades para as pessoas autistas, no país, incluindo desafios enfrentados também pelos familiares. Na saúde, temos falta de profissionais (psicólogos, neuropsicólogos, terapeutas da fala, fisioterapeutas, e outros, na rede pública para as terapias de acompanhamento e seguimento contínuo, o que faz com que as famílias, quando podem, recorram às instituições privadas”, avançou.
Uma outra questão, segundo apontou, tem a ver com ausência da comparticipação da segurança social nos custos de seguimento contínuo de saúde, o que faz com que as despesas familiares sejam continuamente maiores.
Outro problema, segundo esta mãe, tem a ver com o sistema de ensino, dado que não existe um seguimento adequado e personalizado para o aluno autista. “Desde professor formado e sensibilizado, turmas com número de alunos reduzidos, elaboração e cumprimento de um plano específico do aluno, elaboração de avaliação personalizada e específica do aluno...”
O que existe, no geral, é feito na base do “amadorismo” ou na sensibilidade ou boa vontade do professor que aceita dedicar a sua atenção ao aluno autista.
“O verdadeiro acompanhamento do aluno com necessidades especiais depende da escola, do director, da vontade ou não do professor em ‘aceitar’ ter o aluno em sala de aula, da pró actividade e dinâmica dos pais, por exemplo”.
Ainda por cima, “as actividades que existem iniciam e acabam em si, sem interligações entre os diferentes sistemas, de ensino, de saúde, de inclusão social. Estão desgarradas umas das outras”, pelo que – apela – “todos os desafios levantados precisam ser melhorados para uma maior inclusão das pessoas autistas em Cabo Verde”. Afinal, autista ou não, um ser humano, cabo-verdiano, a precisar de um atendimento especial, e até particular, no conjunto das ofertas que o país oferece aos seus cidadãos.