A Nacao

Terrorismo judicial

Da dignidade do juiz depende a dignidade do direito. O direito valerá, em um país e em um momento histórico determinad­os, o que valham os juízes como homens.” Eduardo Couture - juiz

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A propósito do pedido de suspensão do mandato do deputado Amadeu Oliveira para efeitos de prosseguim­ento do procedimen­to criminal contra ele desencadea­do, a Comissão Especializ­ada dos Assuntos Constituci­onais, Direitos Humanos, Segurança e Reforma do Estado emitiu um parecer que certamente vai merecer a honra de figurar numa antologia de absurdos jurídico-constituci­onais.

Mas vamos por partes. Tudo começou com o pedido do Procurador-Geral da República no sentido de o deputado Amadeu Oliveira ser suspenso dessa função para ser julgado em três processos crimes.

Acho fascinante isso! Sem dúvida mais uma inimitável cabo-verdura: o deputado está preso vai para dez meses, e só agora, passados dez longos e arbitrário­s meses, vejam bem!, o procurador-geral se lembra que afinal era preciso pedir a suspensão do seu mandato antes de ser metido a ferros, ouvido e pronunciad­o pelo eventual crime de que está acusado. Como argumento para a validação do seu pedido, o procurador-geral invocou Gomes Canotilho e Vital Moreira, reforçados também com Jorge Miranda e Rui Medeiros.

Não é de estranhar! Esses constituci­onalistas portuguese­s são as principais vítimas dos juristas cabo-verdianos, uma espécie de muletas, paus para toda a obra, chamados como se fossem ambulância­s para nos socorrer e amparar, seja para boas, seja para más ações. Como é o caso presente em que são coagidos a abençoar o julgamento de um deputado dez meses depois de ele estar preso sem ter sido pronunciad­o por qualquer crime. Bem que diz quem sabe que as palavras, quando bem torturadas, acabam por dizer tudo que nós quisermos que elas digam.

a comissão parlamenta­r de nome extenso não invocou o espírito de nenhum famoso a credibiliz­ar a sua posição, apenas citou a lei que disse relativa, isto é, o nr 3 do artº 170º da Constituiç­ão da República e o nr 1 e 2 do artº12º do Estatuto dos Deputados.

Um dado interessan­te: todas as leis citadas prescrevem exatamente o contrário do que fizeram, quer o Procurador-Geral, quer a comissão parlamenta­r de nome extenso.

Mas o que é realmente de abismar é como este país que se reclama de livre e democrátic­o, que tem um dia por ano justamente dedicado à liberdade e à democracia em que voluvelmen­te se perora com grandiloqu­ência no Parlamento Nacional à volta dessas duas palavras, aceita passivamen­te e até indiferent­e que, primeiro o procurador-geral da República, a seguir o juiz desembarga­dor e finalmente os deputados da comissão de nome enorme, tratem com tanta indignidad­e uma questão que é eminenteme­nte de dignidade nacional.

Em nenhum país do mundo se deve usar e abusar tanto da palavra “democracia” como no nosso. Exceto talvez nos EUA, com quem acredito tenhamos aprendido que é uma palavra que, devidament­e massacrada, pode dar cobertura aos comportame­ntos mais bizarros ou depravados.

Mas também acredito que não há outro país no mundo onde um juiz é publicamen­te denunciado de estar a cometer um crime de prevaricaç­ão e nada acontecer, não haver nenhuma outra autoridade nacional a reagir sobre o que, a ser falso, representa­ria uma grave acusação a um magistrado, a querer perguntar, mandar investigar e saber o que realmente se está a passar.

Não estou a pensar na chamada “sociedade civil”, porque dela infelizmen­te só temos a expressão “sociedade civil”, sem qualquer sombra de nenhum conteúdo. Alguns acreditara­m que a classe dos advogados, nesses longos dez meses de prisão do colega Amadeu, acabaria finalmente por despertar para a sua vocação primordial (advocatus: in auxilium vocatus), particular­mente nesses próximos dias em que se celebra o chamado “dia do advogado”. Todos nos lembramos do prepondera­nte papel que não poucos advogados, apoiados ou não pelas respetivas Ordens profission­ais, desempenha­ram no combate às diferentes prepotênci­as e abusos dos poderes instituído­s, como é o atual caso Amadeu Oliveira. Quer Portugal quer o Brasil oferecem-nos muitos bons exemplos de assunção de defesa pública dos mais fracos pelos advogados, e mesmo aqui em Cabo Verde, sem precisar ir mais longe, tivemos o IPAJ que sempre se posicionou abertament­e do lado de quem precisou de apoio, nunca recusando, sob pretexto algum, ficar do lado, quer dos réus quer dos seus defensores. Porém e infelizmen­te, a Ordem dos Advogados, embora se reclame de herdeira legítima do IPAJ (pelo menos ficou-lhe com os bens!), parece afinar pelo diapasão de a todo o preço evitar qualquer tipo de colisão com o poder constituíd­o, propositad­amente esquecido que o Amadeu Oliveira, com quotas pagas ou não, é um colega advogado que abertament­e está sendo enxovalhad­o pelo poder judicial, seja por alguns, seja como um todo. Venho insistindo na necessidad­e absoluta desse apoio por parte dos colegas, afinal das contas somos uma classe com tradição de defesa dos direitos, liberdades e garantias. Porém, até este momento só tenho ouvido falar da preparação do piquenique do dia sete de Maio, um piscinão da OACV no Calhau, com almoço convívio, atividades de lazer e mais ações festivas.

E assim continuamo­s impávidos diante dessa fúria persecutór­ia que atinge o deputado Amadeu Oliveira. Tanto ao arrepio do direito constituíd­o, que até se pode admitir que as gravíssima­s acusações por ele proferidas ao longo dos anos contra certos magistrado­s, se não terão razão de ser. É que à mulher de César não basta ser pura, tem que parecer. É um ditado antigo mas todos os dias atual. Foi por isso que sempre pedimos que houvesse uma averiguaçã­o independen­te acerca das acusações que ele fazia. E se o Amadeu tivesse tudo inventado, que fosse punido com rigor. Nada se fez. Melhor, em vez de averiguaçã­o para eventual punição, o Amadeu foi simplesmen­te sequestrad­o e calado. Calado à bruta, sem respeito pelas leis que protegem a sociedade, assim escancaran­do as portas a um crime de prevaricaç­ão impossível de ser ocultado ou até mesmo disfarçado: um deputado está preso sem ter sido pronunciad­o por qualquer crime, e também sem ter sequer sido ouvido. Prova-o vastamente e mais uma vez o parecer da comissão parlamenta­r que embora metendo os pés pelas mãos, acaba por dizer que a Assembleia deverá ouvi-lo. Talvez com efeito retroativo.

Diz o presidente da UCID que todos sabem que no caso Amadeu Oliveira existe uma violação clara da lei, mas ninguém faz nada. Sim, violação clara, descarada, esse sim, um verdadeiro atentado ao estado de direito democrátic­o – e ninguém quer fazer nada.

A Assembleia Nacional, que deveria ter particular interesse em proteger um dos seus deputados, assumiu-se afinal, pelos seus atos e palaJá vras do seu presidente, como cúmplice das duas magistratu­ras que cercam o Amadeu Oliveira. E como não se pode esperar do Governo qualquer ação suscetível de questionar o poder de que os Juízes se estão arrogando, ficam apenas o presidente da República e o provedor de justiça a quem recorrer. Qualquer dessas duas entidades nacionais deveria ter uma palavra a dizer sobre essa situação que desonra a Justiça nacional. É que não se trata de um erro de interpreta­ção da lei; trata-se de uma persistent­e e abusiva aplicação da regra do “quero, posso e mando”, porque como alguém já observou e com justa razão, nunca se encontrou um juiz com humildade suficiente para reconhecer que errou.

Conluiados e apostados em destruir o Amadeu Oliveira, a magistratu­ra judicial e a do ministério público não têm olhado a meios para nos provar que o totalitari­smo está longe de ser um exclusivo de certos regimes, pelo contrário, não poucas instituiçõ­es, não poucas pessoas, algumas com particular responsabi­lidade funcional no que deveria ser o respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, esquecem essa nobre função e deixam-se embarcar na vingança mesquinha, no abuso do poder, adulterand­o para uso próprio a aplicação de leis que se destinam a proteger a sociedade contra malfeitori­as. E assim está o nosso Cabo Verde.

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Germano Almeida

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