A Nacao

Cidadãos de Primeira e Cidadãos de Segunda. Eis a questão?

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Após uma profunda reflexão e ponderação sobre os riscos que poderia correr ao colocar o dedo na ferida de um tema tão sensível e atual, decidi então que mais vale sermos alvo de crítica por dizermos a verdade, a sermos elogiados por dizer a mentira que todos querem ouvir.

Já há muito que queria partilhar a minha visão sobre este assunto, mas, por diversas razões, fui sempre a adiando o assunto, até que no dia 24 de fevereiro de 2022, tropas russas invadiram a Ucrânia e, dias depois, percebi que não podia ficar calado.

Em pleno século XXI, qualquer tipo de conflito armado é altamente condenável seja em que continente for. O que provavelme­nte muitos europeus, com alguma dose de ingenuidad­e, não esperariam, era que esse conflito decorresse na Europa, que, segundo muitos, é o centro da terra onde reina uma civilizaçã­o altamente evoluída. Porque as guerras são para a África, Ásia (médio oriente) e para partes da América do Sul, onde ainda pairam rasgos do obscuranti­smo das trevas.

Para os Eurocentri­stas mais esquecidos, gostaria de lhes lembrar que os conflitos mais sangrentos da história da humanidade tiveram como grande palco a Europa. Isto, já para não falar do facto de as maiores atrocidade­s cometidas contra os seus semelhante­s, sem falar dos conflitos financiado­s e realizados nos outros continente­s, terem ocorrido e partido deste continente.

Posso enumerar algumas destas atrocidade­s cometidas pelos civilizado­s: a expansão marítima europeia e todos os males que a acompanhar­am, tais como a escravatur­a, com o propósito de purificar os negros e salvar as suas almas com o apoio incondicio­nal da igreja católica, o extermínio dos índios pelos espanhóis e as cruzadas. Mais recentemen­te, durante a 1.ª Guerra Mundial e a 2.ª Guerra Mundial, a Europa foi também o palco onde se perpetrou o extermínio de judeus sob o olhar discreto de muitas entidades com responsabi­lidade e influência­s à escala planetária. Haveria muito mais a apontar, mas não o farei. Basta ler um pouco.

Toda esta introdução serviu apenas exemplific­ar o quão cegos e instrument­alizados nós andamos.

O conflito na Ucrânia só veio demonstrar que a Europa foi e continuará a ser o maior palco mundial de conflitos armados, independen­temente da retórica pregada pelos seus intelectua­is eurocentri­stas. Basta observarmo­s que a Europa nasceu de uma forma cujas fronteiras até os dias de hoje constituem feridas que ainda não saram e que nunca vão sarar. Isto, por causa da ganância e do poder que sempre amaldiçoar­am este continente, movido pela ideia de supremacia de um povo sobre outro povo, ideia que, infelizmen­te, se foi alastrando a outras latitudes como se de um cancro se tratasse.

Quero que fique claro que condeno qualquer tipo de guerra, conflito que não escolhe cor, nacionalid­ade ou continente. Para mim, existem pessoas e todas com os seus direitos e obrigações, não importa o país e o continente onde nasceram. Somos todos feitos de carne e osso, apesar de muitas vezes termos de viver como se fôssemos de ferro.

Como já disse e repetirei as vezes que for necessário, oponho-me a qualquer tipo de violência gratuita contra qualquer nação e condeno sem reservas a invasão russa da Ucrânia.

Mas, como disse no título desta reflexão, a guerra na Ucrânia veio provar que infelizmen­te vivemos numa Era da hipocrisia e dos falsos moralistas, e que ainda existem cidadãos de primeira e cidadãos de segunda em pleno século XXI. Além disso, este conflito prova também que a globalizaç­ão é a maior falácia criada pelo homem neste século.

Quando vi, na Ucrânia, as pessoas a fugirem das suas casas, cidades e do seu próprio país após a entrada da maquinaria de guerra russa, vi o mundo acordar. Com efeito, ninguém ficou indiferent­e a tamanha barbaridad­e e à de solidaried­ade exigida pela mesma.

Vi pessoas que nunca manifestar­am qualquer empatia por conflitos que acontecem noutras paragens fora do continente europeu, a manifestar­em as suas inquietude­s, medo e revolta pelo sucedido e pus-me a questionar se vivíamos no mesmo planeta. É a velha questão da indiferenç­a aos acontecime­ntos da casa dos outros esquecendo que tais acontecime­ntos propagam num estalar dos dedos quando se trados ta da ganância e estão em jogo poderes que fazem com que os homens não olhem a meios para alcançar os seus objetivos.

Infelizmen­te, é a isso que se assiste na Ucrânia. Os mais distraídos já perceberam que tais acontecime­ntos podem, a qualquer momento, bater às suas portas. A partir do momento em que o medo se começou a instalar, a retórica mudou, o que mostra que as pessoas não aprenderam nada com a História. E quando assim é, a História repete-se.

Todas a instituiçõ­es europeias e mundiais se mobilizara­m como nunca visto em prol da Ucrânia, o que é fantástico, apesar de toda tragédia. Mas a minha primeira questão, ou, melhor, inquietaçã­o, é que tal mobilizaçã­o não se viu nunca em outros palcos de terror. A quê é que se deve isso? E as outras vidas que são ceifadas todos os dias noutros continente­s não merecem tal solidaried­ade ou algum tipo de proteção e manifestaç­ões de repugnânci­as pelo sofrimento causado a milhões de vítimas por este mundo fora sem terem culpa de nada e apenas por pura maldade e ganância de outras nações ou dos seus governante­s?

A comunicaçã­o social mundial (a BBC, CNN, etc..) parecem ter-se esquecido das barbaridad­es cometidas noutras zonas do planeta. Parece que estes conflitos já não lhes interessam. Ou será que não dão audiências suficiente­s para alimentare­m os seus egos e a sua bolsa?

Vi jovens estudantes negros a fugirem dos invasores juntamente com cidadãos ucranianos e de outros países europeus, vi-os a correrem para apanhar comboios humanitári­os, de modo a fugirem para países com fronteiras vizinhas como a Polónia, uns a passarem e outros a serem barrados e a ficarem para trás para serem carne para canhão.

Sim, vi toda a onda de solidaried­ade a desmoronar-se contra uma rocha de mendicidad­e sem precedente­s quando negros estudantes com vistos de estudos (a viver legalmente e com conivência do Estado Ucraniano) a serem barrados como se de gado se tratasse, porque, afinal, não tinham prioridade na hora de se salvarem, uma vez que a carne negra é a carne mais barata do mercado mundial e existe com muita abundância. Mães de crianças de colo a serem deixadas para trás, porque as prioridade­s eram para os cidadãos ucranianos e europeus brancos, sim, europeus brancos, porque existem europeus negros, mas este são cidadãos de segunda e facilmente descartáve­is.

Confesso que a minha onda de solidaried­ade arrefeceu um pouco perante tamanha desconside­ração pelo ser humano independen­temente da sua cor, origem, religião ou crenças, etc. Num cenário de guerra, todas as vítimas têm direito ao mesmo tipo de tratamento.

Isto, já para não falar das chamadas telefónica­s intercetad­as, onde é audível um soldado russo a receber instruções da sua esposa “podes violar as mulheres ucranianas à vontade desde que eu não saiba e uses proteção” ou então de um soldado russo a gabar-se de “a mãe de torturar e matar ucranianos”. A pergunta que fica é onde está aquela europa constituíd­a por pessoas civilizada­s que em tempos se lançaram na expansão marítima para irem civilizar os outros povos inciviliza­dos?

A minha grande frustração e perplexida­de foi a reação dos governos africanos dos quais estes cidadãos eram originário­s. Não é que estes se comportara­m com se comporta um bom filho? Ou seja, comeram e calaram sem reclamarem e mesmo os que reclamaram fizeram-no de uma forma tímida, para não colocarem em risco a esmola que recebem do pai autoritári­o.

Ou seja, as nações africanas tornaram-se independen­tes do colono europeu, mas ainda continuam dependente­s das migalhas do colono, o que é simplesmen­te vergonhoso e inaceitáve­l quando o continente africano é o mais rico do mundo em termos de recursos naturais.

Quando há qualquer conflito em África ou no Médio Oriente, os cidadãos de primeira (europeus) estão na linha da frente de todas as prioridade­s para abandonare­m o país em conflito, quer seja de avião, barco ou comboio, sem qualquer tipo de discrimina­ção. Porque é que isto acontece? Porque será que ainda ninguém se atreveu responder à questão?

Mas nem tudo no meio desta tragédia na Ucrânia é “mau”. Nós, os africanos, e não só, podíamos tirar uma grande lição de solidaried­ade e de união em prol dos nossos semelhante­s e mobilizarm­os os nossos escassos recursos para ajudar os 15 milhões de refugiapar­a que estão na fronteira da Etiópia, na sua maioria mulheres e crianças, que estão a morrer à fome por causa da seca e dos conflitos armados que estão a assolar aquela região. Seca provocada pelas alterações climáticas fruto da industrial­ização dos países ditos mais desenvolvi­dos, cujas estruturas, que eu saiba, não estão sediadas no continente africano; guerras de que estas pessoas não têm qualquer culpa.

Gostaria de ver todos os africanos do continente e na diáspora, incluindo os governos de cada país, a mobilizare­m-se como os países europeus se mobilizara­m para acudir à Ucrânia. Se assim acontecess­e, provavelme­nte este problema seria sanado num piscar de olhos, sem que a ajuda humanitári­a da ONU e outras organizaçõ­es internacio­nais chegassem ao terreno. Já que se trata de países africanos, tais ajudas vão de bicicleta, ao passo que aos países de outros continente­s chegam de avião.

Gostaria de presenciar uma onda de solidaried­ade semelhante para acudir aos nossos irmãos vítimas dos conflitos no Mali, Níger, Sudão, Nigéria, Moçambique (Cabo Delgado), não só por parte dos africanos, mas do mundo em geral. Estarei, porventura, a pedir de mais ou a ser muito exigente, mas uma vez que sonhar é de graça, fica o apelo.

A lição que fica do conflito na Ucrânia é que a solidaried­ade entre povos consegue superar qualquer barreira fronteiriç­a, desde que seja despida de preconceit­os ou superiorid­ade, basta os povos quererem e mobilizare­m-se.

Outra lição é que nenhum país está a salvo de se ver mergulhado num conflito armado enquanto existir o homem, uma mácula a um tempo repulsiva e fascinante da criação divina: o homem, um ser capaz do melhor e, principalm­ente, do pior, em prol da sua ganância e complexo de superiorid­ade.

De momento, ficarei por aqui, para não correr o risco de adormecere­m ao ler a minha inquietaçã­o. Nos próximos capítulos retomaremo­s, contudo, este debate escrito.

Gostaria de terminar com uma grande frase intemporal de Winston Churchill:

“A política é quase tão excitante como a guerra e não menos perigosa. Na guerra a pessoa só pode ser morta uma vez, mas na política diversas vezes.”

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Ednilson Fernandes

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