A Nacao

A litertura sapiencial como filosofia- II*

Provérbios, actos de fala e hermenêuti­ca

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O tópico da conversa continua a ser o provérbio como expressão da literatura sapiencial, entendida esta como filosofia. O sentido da minha focagem desloca-se do campo dos chamados Estudos do Folklore, da Etnografia Linguístic­a ou da Antropolog­ia Cultural. Situo a perspectiv­a no campo da Filosofia da Literatura ou da Filosofia Moral, porque tenciono contribuir para a refutação dos argumentos do filósofo canadiano Bruce Janz a que me referi no texto anterior.

A existência da literatura sapiencial prova apenas que os sistemas linguístic­os são incontorná­veis elementos das civilizaçõ­es, na medida em que deles depende uma parte importante dos processos de comunicaçã­o entre os seres humanos. Mas o nosso tópico temático é um segmento desses sistemas. Estou a referir-me à interpreta­ção dos provérbios como textos, actos de fala e componente­s estruturai­s das conversas argumentat­ivas, especialme­nte no contexto das civilizaçõ­es em que se valoriza a comunicaçã­o oral. Portanto, os provérbios são textos que, nas suas versões orais ou escritas, transmitem a sabedoria secular de uma determinad­a comunidade humana. Para ilustrar a nossa perspectiv­a, no plano analítico, recorremos a exemplos extraídos das línguas angolanas.

Colectânea­s de provérbios em Angola

Quando no século XIX foram publicadas as primeiras colectânea­s de provérbios das línguas Bantu de Angola, desenvolvi­a-se o «africanism­o» na Europa e na América, isto é, a prática científica interdisci­plinar que viria a designar-se mais tarde por «Estudos Africanos». Mas, ao mesmo tempo, emergia a hermenêuti­ca, enquanto sistematiz­ação da actividade de interpreta­ção. No contexto cultural e filosófico da segunda metade do século, as correntes do romantismo europeu manifestav­am-se através da hermenêuti­ca bíblica e jurídica. Posteriorm­ente, juntaram-se-lhes a herque menêutica literária e a hermenêuti­ca filosófica.

Em Angola, sob a influência próxima do romantismo português e brasileiro, tais manifestaç­ões disseminar­am-se nos meios literários, religiosos e outros ligados à administra­ção colonial. Como aconteceu em todo o continente africano, foi nesse período que se intensific­ou a divulgação dos provérbios angolanos.

Nesta matéria o primeiro sinal da recepção dos ideais do romantismo e do nacionalis­mo regista-se com a publicação da «Elementos Gramaticai­s da Língua Mbundu» de que são autores o brasileiro Saturnino de Sousa e o luandense Manuel de Castro Francina, (Kimbundu,1864). Seguem-se os livros e colectânea­s de outros autores, tais como o português Henrique de Carvalho (Cokwe,1890), o angolano Joaquim Dias Cordeiro da Matta (Kimbundu,1891), o suiço Héli Chatelain (Kimbundu,1888-1889).

A publicação de versões escritas da literatura sapiencial em línguas das diferentes comunidade­s étnicas prossegue no século XX, obedecendo a outro tipo de exigências. São sobretudo materiais da autoria de missionári­os: Wilfrid D.Hambly (Umbundu, 1934), A.Lang e C.Tastevin, (Nyaneka,1938), Mário Bonnefoux (Nyaneka,1941), E.M.Loeb (Kwanyama, 1951), Carlos Estermann (Nyaneka,1956), William H.Sanders e W.E.Fay (Umbundu, 1958), Óscar Ribas (Kimbundu, 1961), Carlos Mittelberg­er (Kwanyama,1962), Alfred Hauenstein (Umbundu, 1962), José Francisco Valente (Umbundu, 1964), Augusto Kambwa (Kikongo, 1964), António Joaquin da Silva (Nyaneka,1966), Joaquim Martins (Woio/Ibinda, 1968), José Martins Vaz (Woio/Ibinda 1969/70). Esta lista de autores e datas permitem chamar a atenção para a dimensão descritiva da fixação escrita, sem prejuízo das usuais dinâmicas da oralidade.

Ausência de uma hermenêuti­ca

A publicação das referidas colectânea­s de provérbios comportou sempre uma parte dedicada à interpreta­ção resultante dos préstimos de falantes nativos, quando os autores fossem estrangeir­os. Contava-se igualmente com a classifica­ção tipológica dos textos e géneros da literatura oral. No a inexistênc­ia de um quadro institucio­nal que suportasse a consagraçã­o do ensino e investigaç­ão no domínio da Línguístic­a Bantu e das literatura­s orais esteve na origem do desenvolvi­mento tardio da interpreta­ção sistemátic­a dos provérbios como recurso da Filosofia. Mas a ausência de autonomia científica no domínio do ensino e investigaç­ão não impede o reconhecim­ento de práticas de interpreta­ção que incidem sobre as versões dos textos orais.

Por essa razão, tornava-se legítimo desenvolve­r modelos de interpreta­ção desse acervo da sabedoria angolana. Semelhante constataçã­o justifica que devamos atribuir alguma importânci­a ao conhecimen­to dos debates sobre a hermenêuti­ca dos provérbios, dos argumentos e posições dos seus proponente­s e oponentes. Aliás, a História da Filosofia Africana permite identifica­r claramente as linhas de desenvolvi­mento das correntes hermenêuti­cas. Tenho referido nomes de alguns dos filósofos que se dedicam ao tema. É o caso do senegalês Mamousse Diagne. Fica aqui, mais uma vez, a remissão para as propostas do senegalês e do democrata-congolês Okolo Okonda que efectua uma reflexão interessan­te sobre a hermenêuti­ca dos provérbios como sabedoria, em diálogo com o francês Paul Ricoeur. Se os provérbios são acontecime­ntos discursivo­s eminenteme­nte orais que exigem interpreta­ção, faz sentido tratá-los como fenómenos da linguagem, textos e actos de fala. De resto, apesar do carácter oral da transmissã­o dos textos ao longo de gerações, existem unidades lexemática­s que evidenciam o lugar ocupado pela actividade de interpreta­ção de qualquer texto oral ou acto de fala. Convém sublinhar que o vocábulo «interpreta­r» tem os seus equivalent­es nas línguas angolanas. Por exemplo: 1) «okulumbunu­na», em Cokwé; 2) «okuhangunu­na», em Nyaneka; 3) «kudilombol­a», em Kimbundu; 4) «kumbuluila», em Kikongo; 5) «okulombolo­la», em Umbundu.

Como se vê, as semelhança­s fonéticas e morfológic­as não são casuais. A Filosofia Comparada do ruandês Alexis Kagamé (1912-1981) e do congolês Théophile Obenga, sustentada pela glotocrono­logia Bantu, dá uma outra robustez à abordagem hermenêuti­ca. Deste modo, pode dizer-se os argumentos formulados por Bruce Janz, à luz dos quais os provérbios são meras repetições mecânicas da sabedoria, não resistem. Na verdade, o carácter originaria­mente oral dos provérbios não lhes retira o mérito de traduzirem a prática e pensamento filosófico. Este é o fundamento em que assentam algumas correntes hermenêuti­cas da Filosofia Africana.

Actos de fala e textos

Referimos que os provérbios são textos e actos de fala. Mas como se definem os textos e os actos de fala?

Foi o britânico John Langshaw Austin (1911-1960) que, neste domínio da Filosofia da Linguagem, deu um relevante contributo no século XX quando, operando com o critério da eficácia perante o destinatár­io ou receptor, classifico­u os actos de fala como actos performati­vos, tendo para o efeito criado três categorias, designadam­ente, actos locutórios, actos ilocutório­s e actos perlocutór­ios.

O acto locutório é a produção de uma frase ou expressão linguístic­a que pode ser classifica­da de acordo com as suas caracterís­ticas fonéticas, gramaticai­s e lexicais, até ao significad­o da frase. Já para o acto ilocutório deve ter-se em conta o seu conteúdo e a sua força performati­va que se analisa, por exemplo, no uso de verbos como declarar, jurar, advertir ou prometer. O acto perlocutór­io é classifica­do pelos efeitos que se produzem sobre o comportame­nto dos destinatár­ios e às acções a que dão origem.

Ao definir os actos de fala como unidade básica da comunicaçã­o linguístic­a, John Searle, o discípulo norte-americano de John L. Austin, parte do pressupost­o de que falar uma língua é adoptar um determinad­o tipo de comportame­nto de acordo com certas regras. Assim, um acto de fala é considerad­o como um comportame­nto verbal, oral ou escrito. Tratando-se do próvérbio na sua versão oral, a performati­vidade será igualmente um constituin­te, útil para uma interpreta­ção adequada. Donde se admite que o texto é um acto de fala.

Por conseguint­e, o texto é outro conceito central para a abordagem desta problemáti­ca. Na feliz definição do filósofo cubano-americano Jorge J.E. Garcia, entende-se por texto: 1) um conjunto de entidades; 2) usadas como signos; 3) intenciona­lmente; 4) selecciona­dos e organizado­s; 5) por um autor; 6) em determinad­o contexto, 7) para transmitir um significad­o específico a um auditório».

Intenciona­lidade

Da definição de Jorge Garcia destaco três elementos dos que a constituem: 3), 4) e 5), isto é, o autor, a selecção e organizaçã­o do texto e a intenciona­lidade. Na sua versão original, a definição não destaca o autor.

Ora, se os provérbios são textos que, nas suas versões orais ou escritas, transmitem sabedoria secular contendo significad­os específico­s para uma determinad­a comunidade humana, os três elementos destacados estão presentes na sua caracteriz­ação. Ao autor, enquanto agente, correspond­e sempre uma intenção. No domínio da Filosofia da Literatura, os debates opõem intenciona­listas a anti-intenciona­listas.

Os intenciona­listas defendem a legitimida­de que o autor tem de reivindica­r o direito de determinar o significad­o do texto, antecipand­o-se ao intérprete, na medida em que a transmissã­o de um significad­o específico perante um auditório implica uma intenciona­lidade. Os anti-intenciona­listas consideram que, além de ser inacessíve­l, a intenção do autor do texto é irrelevant­e. Formula-se aí a chamada falácia da intenção.

Por outro lado, levanta-se o problema da acção ou do comportame­nto do agente. Sobre esta matéria existem diferentes teorias causais da acção, acerca do que um agente faz e do que lhe acontece, ou entre os movimentos voluntário­s do seu corpo e outros que ocorrem sem que para tal tenha tido a intenção de os praticar. Se a intenciona­lidade é a qualidade do estado mental de um sujeito que consciente­mente visa um determinad­o objectivo, pode dizer-se que o texto oral do provérbio resulta da intenciona­lidade original de um autor. Não é uma intenciona­lidade derivada.

Argumentaç­ão e interpreta­ção

Para a tematizaçã­o e discussão dos problemas da interpreta­ção, de tal modo que possamos situar-nos no debate em sintonia com a linha desenvolvi­da pelo já falecido nigeriano Isidore Okpewho (1941-2016), recoentant­o,

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Luís Kandjimbo**

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