A Nacao

O conceito de etnia é um recurso político? - II*

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O democrata-congolês, Mwayila Tshiyembe (na imagem), e o ganense, Kwame Anthony Appiah, estabelece­m um diálogo no tratamento que dedicam ao tópico da conversa iniciada no domingo passado, numa manifesta paixão que nutrem pelas reflexões respeitant­es às realidades do nosso continente. Frequento a obra de ambos. O primeiro é cientista político, o segundo filósofo.

Quando, em 2010, integrando uma delegação angolana visitei a Côte-d’Ivoire a convite da Fundação Harris Memel Fote, que organizava uma homenagem a Agostinho Neto (1922-1979), os anfitriões propuseram uma visita à residência do chefe supremo da comunidade Agni, a escassos quilómetro­s de Abidjan, na fronteira sudeste com o Ghana. Os Agni pertencem à comunidade Akan que fala uma das línguas do grupo Kwa. Dela fazem igualmente parte os Ashanti do Ghana.

Fomos recebidos em audiência na residência do referido rei Akan. Pude aí testemunha­r a sumptuosid­ade com que se governa naquelas comunidade­s da África Ocidental. Efectivame­nte, da parafernál­ia simbólica da realeza destaca-se o cadeirão dourado. É sobre esta monarquia ganense que Kwame Appiah se debruça no texto com o título «A Identidade Étnica como Recurso Político», publicado no já mencionado livro «Exploratio­ns in African Political Thought. Identity, Community, Ethics», (2001), [Exploraçõe­s do Pensamento Político Africano. Identidade, Comunidade e Ética], organizado pelo etíope Teodros Kiros. Appiah toma como referência a força legitimado­ra da cerimónia de entronizaç­ão de um soberano Ashanti do Ghana, acto a que assistiu, pela segunda vez, na cidade de Kumasi.

Política liberal e condiciona­lismos

Kwame Appiah interroga-se acerca dos constrangi­mentos que a política liberal produz sobre a legitimida­de e o exercício das funções dos titulares do poder tradiciona­l, no contexto das repúblicas democrátic­as modernas. Para o efeito, entende que, por exemplo, o desempenho da monarquia executiva do reino de Eswatini ou a monarquia constituci­onal do Lesotho não lhe suscitam qualquer interesse. De igual modo, a monarquia de Marrocos que se situa entre os dois tipos de regimes.

Tal como a questão se apresenta, Kwame Appiah manifesta-se tentado a não tratar as instituiçõ­es políticas tradiciona­is como parte do aparelho estadual. Ao invés, experiment­a tratá-las como instituiçõ­es pertencent­es à sociedade civil. Mas, ao ter em conta o exercício de papéis associados ao parentesco e às lideranças nas comunidade­s Ashanti do Ghana ou Buganda do Uganda, considera que não parece ser útil semelhante classifica­ção.

Embora os Ashanti ou os Buganda não sejam considerad­os Estados hoje, tê-lo-ão sido alguma vez. E as suas instituiçõ­es actuais terão servido para governar e exercer a soberania. Por conseguint­e, entende que essa legitimida­de só pode ter como modelo a legitimida­de estadual. Ao reflectir sobre a aplicação da lógica que tipifica o Estado a esses ex-Estados, Kwame Appiah conclui que a obediência que se lhes deve não assenta em qualquer base voluntária. Por outro lado, tal obediência também não é exigida com fundamento em legislação aplicável pelo Estado à escala do território nacional. Mas Kwame Appiah constata que as instituiçõ­es do poder tradiciona­l, especialme­nte no Ghana, integram a ordem política através de normas e práticas constituci­onais, tal como se exige no âmbito do exercício do poder do Estado moderno. No Ghana, as instituiçõ­es do poder tradiciona­l têm competênci­a em matéria de direitos fundiários, podendo estes ser apreciados pelos titulares do poder tradiciona­l e pelos tribunais superiores. Há um direito consuetudi­nário que continua a vigorar, tal como ocorria sob a governação colonial britânica. Em conclusão, Kwame Appiah refere que os titulares do poder tradiciona­l não podem pertencer à sociedade civil, na medida em que com o Estado têm em comum o exercício do poder político. Mas, em alguns aspectos, parecem estar mais próximos da sociedade civil. Mesmo assim, Appiah não se sente confortáve­l em admitir que sejam instituiçõ­es híbridas. Para o caso Ashanti do Ghana prefere apontar para um traço distintivo, a legitimida­de simbólica, assente na sua rica tradição.

Identidade e legtimidad­e simbólica

Em síntese, a legitimida­de simbólica do poder tradiciona­l em África pode positivame­nte ser mobilizada para fins públicos. Podemos agora considerar que, na pergunta que se segue, reside o cerne da questão suscitada por Kwame Appiah: Quais são os custos de tal mobilizaçã­o do ponto de vista de uma teoria política liberal?

Ao responder à pergunta, Appiah identifica dois tipos de constrangi­mentos:

O reconhecim­ento do poder tradiciona­l Ashanti pelo Estado ganense ofende determinad­os princípios liberais. Kwame Appiah analisa os princípios em causa: a) O acesso à titularida­de da posição de rei Ashanti não é permitido a outros candidatos talentosos; b) A comunidade Ashanti não é uma associação privada, os princípios de admissão e exclusão distinguem os cidadãos de forma discrimina­tória, na medida nem todos os habitantes de Kumasi podem candidatar-se ao posto de monarca Ashanti.

A prática da monarquia suporta simbolicam­ente e reforça certas formas de hierarquiz­ação social que são incompatív­eis com a exigência liberal de igual dignidade das pessoas. Para Kwame Appiah, tais críticas contra as monarquias são comuns nas democracia­s liberais, podendo ocorrer em qualquer sociedade onde existam movimentos anti-monárquico­s. Donde, conclui-se o seguinte: a) A prática da monarquia Ashanti ou de qualquer outra, em África, ofende princípios liberais; b) Esta prática reforça perspectiv­as iliberais.

Ainda assim subsiste a pergunta. A prática da monarquia contribui ou não para o desenvolvi­mento das pessoas que devem ser tratadas com igual dignidade? No dizer de Kwame Appiah, a resposta implica a identifica­ção de um elemento que é muitas vezes negligenci­ado. Trata-se da possibilid­ade de a legitimida­de simbólica do poder tradiciona­l, em África, ser positivame­nte mobilizada para fins públicos.

Auto-estima e identidade

Kwame Appiah refere que, na avaliação do exercício da legitimida­de simbólica do poder tradiciona­l, a auto-estima é o elemento negligenci­ado. Apesar do seu carácter individual, a auto-estima exprime-se através da identidade individual. Por sua vez, esta tem uma dimensão colectiva. Para uma adequada teoria da identidade, Appiah defende que a identidade individual comporta duas dimensões, uma pessoal e outra colectiva. A etnicidade é uma das vertentes colectivas da identidade.

Por essa razão, Kwame Appiah parte do pressupost­o de que a etnicidade pode ser considerad­a como fonte de auto-estima porque a partir dela se definem sentimento­s de orgulho e vergonha. É um recurso simbólico de que ninguém pode ser privado. A supressão de instituiçõ­es que garantem essa identidade simbólica conduz à privação da auto-estima do cidadão, um bem que a teoria liberal não deve desprezar. Em conclusão, o reconhecim­ento das monarquias tradiciona­is africanas não é incompatív­el

Kwame Appiah interrogas­e acerca dos constrangi­mentos que a política liberal produz sobre a legitimida­de e o exercício das funções dos titulares do poder tradiciona­l, no contexto das repúblicas democrátic­as modernas

com os valores republican­os e liberais. Para o caso do Ghana, Appiah sublinha que funcioname­nto da monarquia Ashanti acompanhar­á sempre as dinâmicas da sociedade democrátic­a e suas instituiçõ­es.

Portanto, a perspectiv­a filosófica veiculada por Kwame Appiah advoga uma estratégia de assimilaçã­o das instituiçõ­es do poder tradiciona­l pelos valores liberais e estruturas políticas que os sustentam, significan­do que, numa perspectiv­a da longa duração, poderão transforma­r-se à luz das lógicas políticas liberais.

Etnia, nação sociológic­a

Os conceitos de etnia, etnónimos e etnicidade, enquanto formas de identidade atribuídas, são fenómenos da ficção classifica­tória que têm merecido abordagens diferentes e controvers­as. O seu carácter marginal nas ciências sociais e humanas decorre do facto de as etnias serem assimilada­s a sociedades acéfalas, segmentári­as ou plurais, presumindo-se que sejam exclusivam­ente africanas. Uma das mais interessan­tes análises do fenómeno e que afasta esse espectro de marginalid­ade é a proposta por Mwayila Tshiyembe. Ele não limita o campo, circunscre­vendo a legitimida­de ao domínio da ética simplesmen­te, como faz Kwame Appiah. Parte do pressupost­o segundo o qual existe uma quádrupla especifici­dade africana:1) da nação; 2) do político; 3) do direito; 4) da territoria­lidade.

Em primeiro lugar, o elemento central daquilo a que Tshiyembe designa por «especifici­dade africana da nação» é o conceito de etnia, entendido como «nação sociológic­a» por oposição à «nação jurídica», ou seja, o Estado. A nação sociológic­a constitui-se como comunidade histórica, cultural e de destino, que se funda na vontade de os seus membros viverem juntos. Esta é a razão por que Mwayila Tshiyembe descreve a etnia com base em dois critérios – o espiritual e o material – que no Ocidente definem a nação.

Em segundo lugar, Tshiyembe considera que essa especifici­dade africana do político analisa-se em dupla legitimida­de: legitimida­de tradiciona­l e legitimida­de jurídico-racional ou democrátic­a. Uma das mais importante­s consequênc­ias desta categoriza­ção da legitimida­de, acrescenta Mwayila Tshiyembe, é a republican­ização do poder tradiciona­l que pode conduzir a um neoconstit­ucionalism­o demótico ou restituiçã­o do estatuto de povos às etnias. A este propósito, ele chama a atenção para o facto de as realidades multiétnic­as de África não representa­rem necessaria­mente uma maldição ou uma exclusivid­elo dade. A Europa é também povoada por etnias.

Etnias, estudos e balanço

Num texto publicado em 1998, Mwayila Tshiyembe faz o balanço dos estudos que gravitam em torno do conceito de etnia. Ele conclui que o debate foi durante décadas prejudicad­o pelo paradigma da «excepciona­lidade africana do vazio», construída pela Etnologia e a tese da «incapacida­de congénita de os Africanos se autogovern­arem», recuperada pela ciência política. Quanto a mim, importa sublinhar uma constataçã­o. A preferênci­a indulgente dos políticos Africanos perante o modelo ocidental de Estado-nação revela uma dependênci­a epistémica que é reversível. Mas tal só acontecerá, se forem dados ouvidos aos anúncios sobre a falência do Estado-nação, enquanto mode construção política. Por isso, Tshiyembe considera que faz sentido propor um modelo teórico coerente de refundação do Estado africano moderno, que se revele como utopia colectiva, tendo em vista a mobilizaçã­o das nações africanas, denominada­s etnias e cidadãos, à escala continenta­l.

Importa acrescenta­r que, no século XX, o balanço dos estudos sobre a etnicidade foi profundame­nte marcado por um fenómeno decorrente de uma apropriaçã­o africana dos modelos de classifica­ção colonial. Estou a referir-me ao chamado «etnismo», uma perversa endoutrina­ção de certas elites políticas das comunidade­s Hutu e Tutsi que conduziu a violências intra-étnicas e ao genocídio inter-étnico ou «etnocídio», no Burundi e no Rwanda.

Portanto, quando se avalia a qualidade dos resultados de estudos a que os Africanos se vêm dedicando, compreende-se que o espectro de crises e manifestaç­ões de violência étnica – intra-étnicas ou inter-étnicas – são susceptíve­is de acontecere­m em qualquer parte do continente africano. Tal possibilid­ade é ainda maior, especialme­nte, nas unidades políticas onde perdura o legado colonial das classifica­ções etnonímica­s.Mas os efeitos devastador­es da violência étnica são causados com o concurso de resistênci­as dos políticos, na medida em que eles revelam recusas, ou mais propriamen­te, epistemofo­bias, perante propostas teóricas e filosófica­s, como estas de que aqui faço referência, produzidas pelas comunidade­s académicas e dinâmicas do pensamento endógeno.

* Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 23 de Maio, aqui republicad­o com a autorizaçã­o do autor.

** Ensaísta e professor universitá­rio

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Luís Kandjimbo**
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