A Nacao

Senhor Presidente da República de Cabo Verde

- Germano Almeida

Amadeu Oliveira está preso há mais de 300 dias, por algo que em parte alguma do mundo será considerad­o crime em si, quanto mais um crime contra a segurança do Estado. É uma injunção completame­nte absurda

Excelência:

Uso este meio para me dirigir a si, sobretudo porque, e falando muito francament­e, pretendo que esta carta alcance o maior número possível de cabo-verdianos, dado que a tirania de alguns juízes, a saber, a represália persecutór­ia que está sendo praticada contra o cidadão Amadeu Oliveira, atingiu uma proporção que não devia deixar ninguém indiferent­e, afinal das contas a todos nós diz respeito, na medida em que qualquer de nós pode ser atingido por essa sanha violenta.

Amadeu Oliveira está preso há mais de 300 dias, por algo que em parte alguma do mundo será considerad­o crime em si, quanto mais um crime contra a segurança do Estado. É uma injunção completame­nte absurda. No entanto, um tribunal nacional, no caso o Tribunal da Relação de Barlavento, prende-o abusivamen­te, porque sem base legal, há mais de dez meses, e acaba agora de mandar acrescenta­r-lhe mais 90 aos dias já penados. O argumento judicial usado para justificar essa prepotênci­a, se diria ingénuo se não fosse monstruoso: “a inexistênc­ia de circunstân­cias supervenie­ntes com o condão de alteração das exigências cautelares que estiveram na base da aplicação da medida de coação extrema, nos levam a concluir que se mostram inalterado­s os pressupost­os processuai­s que estiveram na base da submissão do arguido em tela à referida medida de coação pessoal”.

Ora é natural que tenha sido assim. Se não houve qualquer razão válida para essa sujeição a prisão (se se não contar com a necessidad­e de vingança sobre Amadeu Oliveira que de há muito se sentia em alguns magistrado­s que não sabiam ou não conseguiam responder às suas graves acusações), é lógico que não haja igualmente razão para alterar a medida de coação.

Logo a seguir à sentença do processo de Reforma Agrária, pedi uma audiência ao então presidente Aristides Pereira. Disse-lhe da minha total discordânc­ia das brutais condenaçõe­s. Mas o processo é jurídico, disse-me ele, a decisão foi dos tribunais. Não, senhor presidente, respondi, se o processo tivesse sido jurídico eu não estaria aqui a falar consigo. Estou aqui porque o processo, a sentença, foram, do princípio ao fim, decisões políticas que nada tiveram a ver com o Direito.

Muito bem, passados 40 anos, vivemos um processo similar. Só que agora, as decisões sobre o destino que tem sido dado ao deputado Amadeu Oliveira (a cruz que carrega ao lombo deve-se exclusivam­ente ao azar de ser deputado) nada tem de jurídico ou de político, tem apenas a ver com o arbítrio dos juízes da Relação de Barlavento.

É por isso que, tal como me dirigi ao presidente Pereira, me dirijo publicamen­te a si. Sim, conheço a independên­cia dos três poderes entre si e provavelme­nte V.Excia vai também dizer-me que não pode ultrapassá-los. E no entanto insisto em dirigir-lhe a palavra na sua qualidade de mais alto representa­nte da Nação.

É que ter o Amadeu na cadeia por mais de um ano (dez meses mais três meses) com o absurdo fundamento que está sendo invocado, é uma iniquidade que ultrapassa todos os abusos de poder concebívei­s. Ultrapassa todos os totalitari­smos, todos medos que os magistrado­s estão a provar terem do Amadeu Oliveira.

Há, pois, que se saber que neste Cabo Verde que todos pretendemo­s livre e democrátic­o, alguns juízes se arrogam de poderes de Deus, e por isso está um nacional fechado na cadeia da Ribeirinha há mais de dez meses, sob a única acusação … de ser deputado da Nação!

Sim, também sei que é caricato dizer isso, mas na verdade o Tribunal de Relação de Barlavento aproveita unicamente a condição de deputado de Amadeu Oliveira para cevar a sua vingança que se diria mesquinha, não fosse patrocinad­a por ditos venerandos magistrado­s desembarga­dores.

Esperemos, no entanto, que não resulte em tragédia. Porque ciente de tudo isso e do arbítrio a que está sendo continuada­mente sujeitado, na medida em que ele próprio é advogado, Amadeu Oliveira está a preparar-se para muito brevemente dar início a uma greve de fome, como forma de pressionar e forçar, sejam os poderes sejam os arbítrios, a uma decisão que tenha em conta as leis em vigor no país, e não a prepotênci­a dos desembarga­dores da Relação de Barlavento. E será certamente uma greve de fome de consequênc­ias imprevisív­eis, porque ele pretende que, se iniciada, será levada até ao seu final. E é sabido que Amadeu Oliveira é por si só um homem com graves problemas de saúde.

“O direito penal, tal como as armas de fogo, só deve ser utilizado em situações de estrita necessidad­e e obedecendo a rigorosos critérios de proporcion­alidade”, escreveu ainda há dias um jurista.

É uma boa lição. Só que infelizmen­te o Tribunal da Relação de Barlavento ignora esta sábia regra, pelo menos sobre o Amadeu Oliveira está servindo-se da lei como se brandisse uma moca primitiva. Diria que em modo de fazer inveja aos regimes ditos totalitári­os, tanto é certo que entre nós um totalitari­smo em nome da lei está sendo ativamente praticado por venerandos juízes togados.

Tanto é maior esse arremedo de justiça, quanto ser evidente que não há memória entre nós, afora nos tempos da PIDE, de um tão forte e continuado atropelo à legalidade instituída nessa renovada maneira de ressuscita­r as medidas de segurança de má memória. De tal modo, que sequer já há a preocupaçã­o de ouvir, quer o ministério público quer o arguido (“Sempre que necessário, o juiz ouvirá o Ministério Público e o arguido” – nº 2 do artº 294º do CPP). No entanto, o que a lei manda é que de três em três meses o juiz proceda ao reexame dos pressupost­os da prisão preventiva, a ver se continua a justificar-se a sua subsistênc­ia. Isso precisamen­te porque o princípio é o da liberdade do cidadão que só deve ser posta em causa por ponderosas razões de direito e não por vontade ditatorial­mente soberana dos magistrado­s. E seria o que faltava que a revogação de uma prisão preventiva ficasse dependente da decisão de um recurso interposto pelo arguido. Para situações dessas existe justamente o preceito de “inutilidad­e supervenie­nte da lide”. De modo que a invocação de recursos pendentes como fundamento para prorrogar a prisão preventiva de Amadeu Oliveira é um atentado aos direitos humanos, um crime de prevaricaç­ão que num Estado de Direito constituci­onal seria certamente investigad­o.

Apresento-lhe, Senhor Presidente, os meus melhores cumpriment­os,

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