Cozinha e identidade cabo-verdiana
Maria de Lourdes Chantre, a primeira mulher cabo-verdiana gastrónoma, há muito radicada em Portugal, vai lançar, aos 92 anos, um novo livro: “História, Tradição e Novos Sabores da Cozinha de Cabo Verde”. A obra revela, através dos alimentos, a identidade cabo-verdiana.
Com vários capítulos, da responsabilidade da editora Rosa de Porcelana, o livro – volumoso – será apresentado em Julho. A autora, lúcida e autónoma, que vive em Portugal há mais de 40 anos, contemporânea da gastrónoma portuguesa Maria de Lourdes Modesto, é uma mulher a quem não importa a idade cronológica.
Tal como na sua juventude, num contexto político e social controverso, em que ousou romper ideias e preconceitos no mundo do trabalho, sendo tradutora e secretária, Lourdes Chantre continua acompanhando o seu tempo, o nosso tempo, com a lucidez e inteligência para compreender as mudanças do mundo.
Mulheres
Por isso, na sua nova obra destacou, especificamente, mulheres que através da pintura - arte que à época era mais reconhecida aos homens - destacam os alimentos ou os artefactos com eles relacionados. Por exemplo, Rita Fernandes e a sua pintura sobre as mulheres que carregam à cabeça o pote de água, o peixe num batique de Luísa Queiroz, a cerâmica de Lourdes Vieira com mulheres a reflectirem o quotidiano como o pilar do milho ou ainda Chantrinha e o seu trapiche a fazer o grogue.
Ao longo da sua nova obra, a gastrónoma investiga a relação dos alimentos com lendas, tradições, festividades e o artesanato. Através deles, das suas cores e texturas, faz emergir também a multiculturalidade, mostrando que o acto de comer revela identidade cultural e oferece informações sobre a organização e a estrutura da sociedade. Pelos ingredientes empregados reporta a História, as invasões sofridas, a colonização, a cultura praticada, as relações humanas e sociais, o clima e o solo. Enfim, revela as memórias do povo cabo-verdiano.
A autora não se limita às dimensões de um espaço grupal, antes procura sempre a amplitude de outros espaços públicos no sentido da expansão do seu saber e da divulgação deste património cabo-verdiano.
Em Portugal desde 1973
Fixou residência em Portugal em 1973, quando a sua filha única, Ana Isabel, iniciava os seus estudos superiores e por Portugal ficou, na sequência de uma doença que a levou ao internamento durante dois meses. Em Cabo Verde já sopravam, entretanto, os ventos de mudança, rumo à independência, em Julho de 1975.
Ao longo da sua vida, Maria de Lourdes Chantre sempre pugnou pela difusão e inclusão do seu país em palestras, conferências, instituições culturais, de ensino, profissionais ou mesmo lúdicos como as múltiplas confrarias em que participou.
A gastrónoma ensina-nos que a amplitude do conhecimento inclui um conjunto de conceitos, regras e práticas de convivência social, com pormenores que nos provocam os sentidos: preparar uma mesa para um banquete protocolar, saborear uma refeição sobre uma toalha de linho, um almoço buffet sobre toalhas de papel, são atos distintos que exigem contextos e saberes diferentes.
Condecorada em Cabo Verde
Lourdes Chantre tem também a forte convicção de que
uma chávena de chá servido num tabuleiro forrado a “panu di terra” leva-nos a memória a indagar de um povo e que este é mais do que o seu somatório físico ou espaço territorial. Terá sido pela consciência do seu valor cultural, que o governo cabo-verdiano, dirigido por José Maria Neves, hoje Presidente da República, lhe atribuiu, em 18 de Outubro de 2005, a medalha de mérito de 1º grau, do reconhecimento deste domínio dos alimentos na cultura de Cabo Verde.
É também uma mulher com um apurado sentido de liberdade e consciência das assimetrias sociais, influência do seu pai, Manuel Ribeiro de Almeida, mais conhecido por Leça Ribeiro, figura sempre muito presente na sua vida. Além de empresário, foi jornalista e o fundador e director do jornal “Notícias de Cabo Verde”, cuja caricatura está emoldurada em lugar de destaque, na sua casa.
Nos seus escritos e apesar do regime político da época, o seu pai não se coibia de criticar o que considerava discriminatório, bem como veicular ventos independentistas de África. Aliás foi na Sociedade de Tipográfica e Publicidade LDA, de que era proprietário, que foi impresso o primeiro número da revista Claridade em S. Vicente, que marca a renovação da literatura cabo-verdiana desde então.
A Rosa de Porcelona, editora de Márcia e Filinto Elísio, refere que o novo livro de Maria Lourdes Chantre “é uma obra emblemática sobre a gastronomia cabo-verdiana, a partir de uma perspetiva antropológica e cultural”.
Segundo a escritora Dina Salústio, a obra “ultrapassa a dimensão de um grande e belo livro de cozinha para ser um livro que, em subtítulo, poder-se-ia chamar: Cabo Verde uma viagem gastronómica pela história dos alimentos”.
“É um livro de culinária produzido por uma intelectual que nas suas paixões literárias inscreve um António Aurélio Gonçalves, um Jorge Barbosa, dois grandes escritores, amigos e gourmets, de quem usa particulares preferências para nos seduzir.”
E acrescenta a escritora: “História, Tradição e Novos Sabores da Cozinha de Cabo Verde”, de Maria de Lourdes Chantre, “pretende ser um livro/objeto de qualidade estética e conteudística”.
Herança educacional
Num olhar intimista pelos objectos que decoram a casa de Maria de Lourdes Chantre são visíveis elementos de uma vivência social e culturalmente elevadas, herança educacional de seus pais e também da cooperação do seu marido, o recém-falecido Guilherme Chantre, que foi professor e pioneiro da Escola Industrial e Comercial de S. Vicente.
Pelas fotos cuidadosamente emolduradas e expostas que recordam familiares, amigos da sua convivência, personagens e personalidades que passaram pelo seu quotidiano inquieto e atento, é possível discernir-se a presença de Cabo Verde e os seus diferentes contextos.
Intelectuais como Baltasar Lopes, Jorge Barbosa, Gabriel Mariano, António Carreira, Teixeira de Sousa, Manuel Ferreira, Mesquitela Lima, Nuno de Miranda, são referências da sua na sua formação e convivência espelhadas nessas fotos que, como sabemos, englobam também elementos europeus, em resultado de uma génese materna identitária.
Nas estantes de sua casa vê-se o seu avô materno, oficial do exército, a receber os reis de Portugal, D. Manuel ou a rainha D. Amélia, ao tempo da monarquia. Ali um jantar com Baltasar Lopes em Cabo Verde. Acolá objectos minuciosos de heranças de seus ancestrais, ocupam lugares específicos na sua estante de livros e de afectos.
Honrando esta herança do seu pai, Lourdes Chantre revela-se também uma pessoa irreverente que recusa cruzar de braços: com a consciência que todos, enquanto formos vivos, temos o dever de dar o nosso contributo e o que fizermos será o nosso legado, Lourdes depressa se apercebeu que era necessário aprender a dominar a informática e a navegar na internet para evitar a infoexclusão. E fê-lo.
Ela foi a primeira mulher cabo-verdiana a editar um livro de cozinha tradicional em 1979, “Cozinha de Cabo Verde”, obra que usei e abusei quando trabalhei em Cabo Verde (1996/1998). Por isso o meu livro - 4ª edição de 2001- , já está um pouco estragado do uso.
Hoje Lourdes Chantre tem cinco livros publicados e prestado o seu saber em cursos de formação, em pedidos para cocktails ou jantares especiais: Além de “Cozinha de Cabo Verde” com novas edições em 1989, 1993, e 2001, é ainda autora de “111 Receitas da Cozinha Africana” (1981) da Editorial Europa América, “Comida Saudável para o coração” (1990), Fundação Portuguesa de Cardiologia, “Plantas Medicinais- Recolha da Sabedoria Popular“, editada por convite do Ministério da Coordenação Económica da República de Cabo Verde para o “Prix d’Excellence de la CEDEAO – Farmacopeia Africana” e “Na Cozinha Cabo-verdiana com Ceris”(1995), edição da CERIS – Sociedade Cabo-verdiana de Cervejas.
Há registos do seu trabalho em blogues e sites como no “Musealogando”, “Praia do Bote”, “Receitas e Sabores de Cabo Verde”, na Revista Latitudes, nos sites do Museu do Trabalho Michel Giacometti, Rede Nacional de Bibliotecas, na biblioteca Ciências Domésticas e Economia.