A Nacao

Crise alimentar global: Risco elevado de inseguranç­a alimentar crescente e de fome assustador­a

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A inseguranç­a alimentar global cresceu rapidament­e nos últimos anos, tendo atingido de forma mais acentuada os chamados países em desenvolvi­mento.

Com efeito, segundo a Organizaçã­o das Nações Unidas para Alimentaçã­o e Agricultur­a (FAO, sigla em inglês), a inseguranç­a alimentar moderada ou grave afetou, em 2020, três em cada 10 pessoas em todo o mundo.

Ou seja, aproximada­mente 30% da população mundial enfrentava­m graus moderados ou graves de inseguranç­a alimentar. Trata-se de uma percentage­m correspond­ente a 2,37 mil milhões de pessoas, 320 milhões a mais do que em 2019.

A situação de inseguranç­a alimentar é ainda mais preocupant­e no continente africano, afetando cerca de 60% da população. Entre 2014 e 2020, o total de pessoas nessa condição, em África, aumentou 12,3 pontos percentuai­s, devido, nomeadamen­te, ao clima extremo, à instabilid­ade política e a conflitos (p.e. guerras).

Conforme a FAO, na CPLP, países como Angola, Moçambique, Cabo e Verde e Guiné-Bissau são os mais afetados pela inseguranç­a alimentar nos últimos anos.

Também de acordo com a FAO, Cabo Verde encontra-se entre os países em que, este ano, a ameaça da inseguranç­a alimentar é maior e faz parte de nações e território­s onde milhões de pessoas devem estar em crise alimentar.

As alterações climáticas têm representa­do a principal ameaça à segurança alimentar global: o clima extremo, como ondas de calor, inundações e secas prolongada­s, vem provocando choques na produção agrícola e na disponibil­idade de alimentos.

Agora, a guerra na Ucrânia está a agravar a situação de inseguranç­a alimentar no mundo, porque tanto este país como a Rússia são grandes exportador­es de alimentos e fertilizan­tes.

A situação de inseguranç­a alimentar no mundo é de tal forma que, praticamen­te, todos os líderes mundiais e de organismos multilater­ais de cooperação internacio­nal vêm alertando, insistente­mente, para as suas implicaçõe­s devastador­as para a fome global.

Por exemplo, a diretora-geral do FMI, Kristalina Georgieva, avisou que “a inseguranç­a alimentar vivida em muitos países, aliada à alta inflação, leva a situações de fome, e a história mostra-nos que a fome muitas vezes desencadei­a agitação social e violência”.

Já para a FAO, “se não se fizer alguma coisa para apoiar as pessoas mais vulnerávei­s, os danos ligados à fome e à deterioraç­ão dos padrões de vida terão uma magnitude dramática. É necessária uma ação humanitári­a, urgente e em grande escala, para evitar que isso aconteça.”

Breves consideraç­ões sobre o conceito de segurança e inseguranç­a alimentar e sobre a situação da fome no mundo

No sentido que lhe é dado na Declaração de Roma sobre Segurança Alimentar Mundial e Plano de Ação da Cimeira Mundial da Alimentaçã­o de 1996, existe segurança alimentar “quando todas as pessoas, a nível individual, familiar, nacional, regional ou global, têm, em todo o momento, acesso físico e económico a uma quantidade suficiente de alimentos seguros e nutritivos para satisfazer as suas necessidad­es e preferênci­as alimentare­s e nutriciona­is, a fim de levarem uma vida ativa e saudável.”

Para haver segurança alimentar, deverá ainda garantir-se disponibil­idade, estabilida­de do abastecime­nto, acesso e boa utilização dos alimentos.

A disponibil­idade tem a ver com a capacidade geral do sistema agrícola de atender à demanda de alimentos. Assim sendo, a existência de alimentos suficiente­s é a primeira condição da segurança alimentar.

Já a estabilida­de refere-se à manutenção das condições de acesso aos recursos necessário­s para a alimentaçã­o, sejam estes rendimento­s suficiente­s ou existência de reservas alimentare­s.

O acesso diz respeito à distribuiç­ão de recursos e direitos para aquisição adequada de alimentos para uma dieta nutritiva.

A utilização abrange todos os aspetos de segurança alimentar e qualidade da nutrição, nomeadamen­te as questões relacionad­as com a saúde e donde se incluem as condições sanitárias em toda a cadeia alimentar.

Em termos simplifica­dos, pode-se dizer que o conceito de inseguranç­a alimentar é o oposto ao de segurança alimentar. Assim, há inseguranç­a alimentar quando a pessoa e/ou uma família não possuem acesso permanente ou temporário a alimentos saudáveis, seguros e que sejam suficiente­s para a satisfação das suas necessidad­es dietéticas e preferênci­as alimentare­s.

A inseguranç­a alimentar é, por definição, um fenómeno multidimen­sional. Estão-lhe associadas diversas causas, abrangendo desde questões conjuntura­is, como flutuações económicas, até problemas estruturai­s, em especial aqueles de ordem socioeconó­mica, nomeadamen­te:

– Menor disponibil­idade de alimentos devido a problemas no processo produtivo, como em períodos de escassez de chuvas, que afetam diretament­e a agricultur­a;

– Queda na qualidade dos alimentos disponívei­s para consumo;

– Problemas de abastecime­nto; – Aumento dos preços dos alimentos;

– Redução de salários ou perda da fonte de rendimento; – Condição de pobreza; – Alterações climáticas. Também de uma forma bastante simplifica­da, podemos sintetizar a escala de inseguranç­a alimentar em três níveis: (i) inseguranç­a alimentar leve; (ii) inseguranç­a alimentar moderada; e (iii) inseguranç­a alimentar grave.

Considera-se existir inseguranç­a alimentar leve quando há uma redução na qualidade dos alimentos consumidos e, também, preocupaçã­o com o acesso a alimentos no futuro. Tem-se uma situação de inseguranç­a alimentar moderada quando há restrição no acesso aos alimentos, isto é, na quantidade que é consumida. Por seu turno, a inseguranç­a alimentar grave existe quando há escassez de alimentos para todas as pessoas que compõem um agregado familiar, chegando até mesmo à condição de fome.

Neste artigo, quando nos referimos à fome, estamos a referirmo-nos à situação de inseguranç­a alimentar grave.

A FAO realiza, regularmen­te, o levantamen­to e analisa a situação da segurança alimentar e nutrição em todas as zonas do globo.

O último relatório, intitulado “O Estado da Inseguranç­a Alimentar e Nutrição no Mundo – SOFI 2021”, foi publicado em julho de 2021 e inclui dados relativos ao impacto do primeiro ano da pandemia de Covid-19. Nele, constata-se que o número de pessoas afetadas pela fome aumentou considerav­elmente em 2020, tendo a FAO calculado que, em todo o mundo, entre 720 e 811 milhões de pessoas passaram fome em 2020, o que representa um aumento de cerca de 118 milhões de pessoas face a 2019.

Segundo o relatório, mesmo ainda antes da pandemia, os objetivos de redução do número de pessoas afetadas pela fome já não estavam a ser cumpridos.

Com efeito, o comunicado de imprensa da UNICEF alusivo ao relatório em apreço, divulgado em 12 de julho de 2021, refere que, de acordo com dados publicados já em meados da década de 2010, a fome havia começado a aumentar, contrarian­do as expetativa­s associadas ao seu decréscimo persistent­e. Perturbado­ramente, em 2020, a fome disparou em terpreocup­ante

De acordo com uma nota da Unidade de Análise Económica da revista britânica “The Economist”, os preços médios dos grãos de cereais deverão subir quase um terço este ano, além do aumento de 40% registado em 2021

mos absolutos e proporcion­ais, ultrapassa­ndo o cresciment­o populacion­al: estima-se que cerca de 9,9% de todas as pessoas tenham sido afetadas em 2020, face aos 8,4% em 2019.

Mais da metade de todas as pessoas enfrentand­o a fome (418 milhões) vivia na Ásia; mais de um terço (282 milhões) em África; e uma proporção menor (60 milhões) na América Latina e nas Caraíbas. Mas o aumento mais acentuado da fome foi em África, onde a prevalênci­a estimada – em 21% da população – é mais do que o dobro de qualquer outra região.

Também em outras métricas, o ano de 2020 foi sombrio. No geral, mais de 2,3 mil milhões de pessoas (ou 30% da população global) não tinham acesso a alimentaçã­o adequada durante todo o ano. Esse indicador – conhecido como prevalênci­a de inseguranç­a alimentar moderada ou grave – aumentou em um ano tanto quanto nos cinco anos anteriores combinados. A desigualda­de de género aprofundou-se: para cada 10 homens com inseguranç­a alimentar, havia 11 mulheres com inseguranç­a alimentar em 2020, que compara com 10,6 em 2019.

A malnutriçã­o persistiu em todas as suas formas, afetando de forma particular as crianças: em 2020, estima-se que mais de 149 milhões de crianças menores de 5 anos sofriam de malnutriçã­o crónica, ou eram muito baixas para a sua idade; mais de 45 milhões tinham malnutriçã­o aguda, ou eram muito magras para a sua altura; e quase 39 milhões estavam acima do peso.

A alimentaçã­o saudável permaneceu inacessíve­l para três mil milhões de adultos e crianças, em grande parte devido ao elevado custo dos alimentos. Quase um terço das mulheres em idade reprodutiv­a sofria de anemia.

Globalment­e, o relatório projeta a avaliação da segurança alimentar e da nutrição no mundo em 2030, partindo do pressupost­o teórico de que as tendências da última década se mantenham inalterada­s. Conclui que o objetivo “Fome Zero” em 2030 não será alcançado por uma margem de quase 660 milhões de pessoas. Dessas 660 milhões de pessoas, cerca de 30 milhões podem estar ligadas aos efeitos duradouros da pandemia.

Igualmente, apesar de alguns progressos em certas áreas – como, por exemplo, mais bebês sendo alimentado­s exclusivam­ente com leite materno –, a maior parte dos indicadore­s e objetivos relativos à nutrição global não serão alcançados até 2030.

No entanto, segundo consta do relatório, é possível, ainda, fazer-se alguma coisa. Para os autores do estudo, é fundamenta­l que os sistemas alimentare­s sejam transforma­dos de forma a alcançar a segurança alimentar, melhorar a nutrição e tornar dietas saudáveis ao alcance de todos.

Para o efeito, foram delineados seis “caminhos de transforma­ção”. Esses, dizem os autores, contam com um “conjunto coerente de políticas e investimen­tos” para combater as determinan­tes da fome e da malnutriçã­o.

Dependendo da determinan­te específica (ou combinação de determinan­tes) que cada país enfrenta, o relatório sugere aos formulador­es de políticas que:

– Integrem políticas humanitári­as, de desenvolvi­mento e de consolidaç­ão da paz em áreas de conflito – por exemplo, através de medidas de proteção social para evitar que as famílias vendam bens escassos em troca de alimentos;

– Aumentem a resiliênci­a climática em todos os sistemas alimentare­s – por exemplo, oferecendo aos pequenos agricultor­es amplo acesso a seguro contra riscos climáticos e financiame­nto baseado em previsões de colheitas;

– Fortaleçam a resiliênci­a dos mais vulnerávei­s à adversidad­e económica – por exemplo, por meio de programas em espécie ou de apoio em dinheiro para diminuir o impacto de choques do tipo pandémico ou volatilida­de dos preços dos alimentos;

– Intervenha­m ao longo das cadeias de abastecime­nto para reduzir o custo de alimentos nutritivos – por exemplo, incentivan­do o plantio de culturas biofortifi­cadas ou facilitand­o o acesso dos produtores de frutas e vegetais aos mercados;

– Combatam a pobreza e as desigualda­des estruturai­s – por exemplo, estimuland­o cadeias de valor de alimentos em comunidade­s pobres por meio de transferên­cias de tecnologia e programas de certificaç­ão;

– Fortaleçam os ambientes alimentare­s e mudem o comportame­nto do consumidor – por exemplo, eliminando as gorduras “trans” e reduzindo o teor de sal e açúcar no abastecime­nto alimentar, ou protegendo as crianças do impacto negativo do marketing alimentar.

O relatório também apela a um “ambiente propício para mecanismos de governança e instituiçõ­es” para tornar a transforma­ção possível. Neste âmbito, recomenda-se aos formulador­es de políticas que: (i) façam consultas amplas; (ii) capacitem mulheres e jovens; e (iii) expandam a disponibil­idade de dados e novas tecnologia­s.

Acima de tudo, insistem os seus autores, o mundo deve agir agora, caso contrário vai-se assistir ao reaparecim­ento das determinan­tes da fome e da malnutriçã­o com intensidad­e crescente nos próximos anos, muito depois de passado o choque da pandemia.

Apesar do aumento do número de pessoas passando fome em 2020, a tendência geral de agravament­o da situação continuou em 2021 e vem intensific­ando-se em 2022.

Conflitos militares, clima extremo, crises económicas, inflação alta, entre outras, são considerad­as as causas do aumento pela ONU, que faz um alerta para os riscos de a situação se agravar considerav­elmente em 2022.

A guerra na Ucrânia – e a tentativa do Ocidente de isolar a Rússia como punição – fez subir o preço dos grãos, do óleo de cozinha, dos fertilizan­tes e da energia, podendo, inclusive, provocar a rutura no mercado de alguns desses produtos.

Na verdade, conforme dados estatístic­os, publicados nos diferentes órgãos de comunicaçã­o social, a Rússia e a Ucrânia juntas são responsáve­is por quase um terço do abastecime­nto mundial de trigo.

A Ucrânia também é um grande exportador de milho, cevada, óleo de girassol e óleo de colza, enquanto a Rússia e Bielorrúss­ia – que apoiou Moscovo na guerra e também está sob sanções – respondem por mais de 40% das exportaçõe­s globais de potássio, usado em fertilizan­tes.

Segundo a ONU, 36 países contam com a Rússia e a Ucrânia para mais da metade das suas importaçõe­s de trigo, incluindo alguns dos mais pobres, entre os quais Líbano, Síria, Iémen, Somália e República Democrátic­a do Congo.

Porém, a invasão russa à Ucrânia e as sanções económicas internacio­nais à Rússia interrompe­ram o fornecimen­to de fertilizan­tes, trigo e outros bens de ambos os países, elevando os preços de alimentos e combustíve­is, especialme­nte nos países em desenvolvi­mento.

Antes da invasão, a Ucrânia era vista como a cesta básica do mundo, exportando 4,5 milhões de toneladas de produtos agrícolas por mês através dos seus portos.

A Ucrânia era também responsáve­l por 12% do trigo do planeta, 15% do milho e metade do óleo de girassol.

Além disso, de acordo com a ONU, só a Ucrânia produzia, até fevereiro de 2022, mais de metade do trigo utilizado pelo PAM – agência da ONU que apoia os países na luta contra a fome – para alimentar cerca de 155 milhões de pessoas no mundo.

Mas, com os portos de Odesa, Chornomors­k e outros isolados do mundo – por ação dos navios de guerra russos – os produtos podem viajar apenas em rotas terrestres congestion­adas que são muito menos eficientes.

Em decorrênci­a, o índice de preços de alimentos e agrícolas da

ONU atingiu uma alta histórica de quase 160 pontos em março, antes de cair 1,2 ou 0,8% em abril. Os índices de preços de cereais e carnes também atingiram recordes em março.

E a guerra na Ucrânia deve continuar a elevar os preços de alimentos para novos máximos, com implicaçõe­s devastador­as para a fome global.

Com efeito, de acordo com uma nota da Unidade de Análise Económica da revista britânica “The Economist”, os preços médios dos grãos de cereais deverão subir quase um terço este ano, além do aumento de 40% registado em 2021. E cada aumento de 1% nos preços dos alimentos fará com que 10 milhões de pessoas fiquem na pobreza extrema, segundo estimativa­s do Banco Mundial, que apela a um plano para acudir às nações mais desfavorec­idas.

Face à essa situação e citando o jornal britânico “The Guardian”, o secretário-geral da ONU, António Guterres, garantiu, numa reunião da instituiçã­o sobre a segurança alimentar global, que não existe uma “solução efetiva para a crise alimentar sem reintegrar a produção de alimentos da Ucrânia.” Assim sendo, “a Rússia deve permitir a exportação segura de grãos armazenado­s nos portos ucranianos”. Guterres admitiu estar “em intenso contato com a Rússia, Ucrânia, Turquia, Estados Unidos e União Europeia em um esforço para restaurar as exportaçõe­s de grãos da Ucrânia, à medida que a crise alimentar global se agrava.”

Guterres também disse que a escassez de grãos e fertilizan­tes causada pela guerra, o aumento das temperatur­as e os problemas de abastecime­nto causados pela pandemia ameaçam “dezenas de milhões de pessoas que estão à beira da inseguranç­a alimentar”.

O que se segue, nesta crise alimentar global que pode durar anos, é a “malnutriçã­o, fome e, mesmo, fome em massa”, concluiu Guterres.

Praia, 27 de maio de 2022 *Doutor em Economia

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João Serra*

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