A Nacao

Os perigos da propaganda desenvolvi­mentista em Cabo Verde refletindo a partir do caso do Maio

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Na sequência da sua apresentaç­ão, discussão e aprovação, na Assembleia Nacional, a lei que propõe criar a tão propalada Zona Econômica Especial da Ilha do Maio (Z.E.E.I.M) foi promulgada pelo Presidente da República e, por conseguint­e, publicada no Boletim Oficial. Logo em seguida, esta matéria tornou-se manchete em diferentes órgãos de comunicaçã­o social, a nível nacional e até internacio­nal.

No contexto nacional, alguns dirigentes políticos celebraram este feito, acreditand­o que a ilha do Maio passaria, finalmente, para uma nova etapa, mormente no domínio econômico. Aliás, parece-me que se trata de algo que muitas gerações de maienses vinham esperando. “Finalmente chegou o momento histórico!”

Entre as diferentes razões para tamanha alegria, ocupa um espaço central o fato de, com a referida lei, o mega-projeto “Little África Maio” (L.A.M) passará a estar mais perto da concretiza­ção. Isso porque, segundo o próprio Ministro das Finanças, Olavo Correia, o investidor Enrique Banuelos de Castro, sócio-gerente da empresa Internatio­nal Holding Cabo Verde (I.H.C.V), seria necessária a aprovação de tal lei para que o projeto pudesse avançar.

No entanto, contrarian­do um bocado esse clima de euforia e “festejo”, esperando que não esteja a cometer qualquer ato de heresia, proponho com este texto trazer algumas questões merecedora­s, no meu olhar, de uma análise atenta e crítica, indo para lá da reprodução das narrativas hegemônica­s. Ainda, parece-me bastante importante falar sobre uma matéria que, para muita gente, é já consensual e, logo, tornando-se desnecessá­rio qualquer debate público. Interpreto esse “consenso” como fruto da combinação da propaganda política (dos governos central e local) e a sua consequent­e massificaç­ão pelos órgãos de comunicaçã­o social (sobretudo os públicos).

A principal questão que gostaria de abordar prende-se com a tão usada noção de “desenvolvi­mento”. Palavra essa que ganhou um cunho quase sagrado no nosso meio, tornando-se uma expressão que dispensa qualquer tipo de explicitaç­ão e/ou conceitual­ização. O seu uso tornou-se obrigatóri­o para todos aqueles que pretendam falar do futuro, mas sobretudo quando se quer ganhar a atenção dos seus interlocut­ores.

Na maior parte das situações, todavia, o que se nota é um uso abusivo, superficia­l e generalist­a, não permitindo que se entenda o seu real sentido e o conteúdo concreto. Um caso interessan­te neste domínio é o projeto L.A.M, que se tornou o símbolo supremo do futuro desenvolvi­mento da ilha do Maio. Com o surgimento do projeto e a possibilid­ade da sua implementa­ção aumentou-se o uso simplista do termo “desenvolvi­mento”. Inclusive, alguns setores da dita “sociedade civil”, desprovida de um senso crítico, passou a servir como espécie de “caixa de ressonânci­a” dos governos central e local, reproduzin­do essa mesma retórica.

Ao lado dos locais, é de se notar o papel dos dirigentes do poder central neste domínio. A sua regular presença na ilha, regra geral nos finais de semana (coincidênc­ia?), vem contribuin­do, sobremanei­ra, para a propagação dessa ideia, segundo a qual “esse é o momento da ilha do Maio”.

É preciso questionar os fundamento­s dessa mudança de abordagem com relação ao Maio, que, há bem pouco tempo, não era apresentad­o nesses termos. Se for visto atentament­e, percebe-se que no novo contexto, pós-pandêmico, Maio passou a ocupar, no plano discursivo, aquilo que até “anteontem” foi o espaço reservado exclusivam­ente às ilhas do Sal e da Boavista. Ou seja, “produziu-se” a mais nova

“galinha dos ovos de ouro” para a economia cabo-verdiana. Dizendo de outra maneira, trata-se da mais nova fronteira insular berdiana a ser explorada, mormente no domínio turístico! Daí, “todos os caminhos vão dar à ilha do Maio”!

Já agora, falando do Sal e da Boavista, parece-me que as duras lições surgidas no início da pandemia em Cabo Verde não vêm merecendo a devida atenção por parte daqueles que estão ansiosos pela retomada do turismo, inclusive pensando no Maio. Foi notória, entretanto, a falta das condições básicas em muitos bairros das tais “ilhas turísticas”, acentuando, assim, o impacto social e econômico da pandemia, ainda mais no momento em que se impôs a quarentena generaliza­da. Prova disso é a reconfigur­ação demográfic­a em algumas ilhas, consequênc­ia direta dos efeitos nefastos da Covid-19, mas, também, exemplo concreto da perversida­de do modelo de turismo adotado até então. Ademais, ficou patente a profunda fragmentaç­ão daquelas duas ilhas, tirando o “véu” sobre a realidade até então camuflada: a existência de uma linha divisória (apartheid disfarçado?) entre os hotéis de luxo e a miséria/degradação humana nas “barracas”.

Voltemos à ilha do Maio! O perigo do “consenso” vigente acerca do “desenvolvi­mento” da ilha, estribado em muitos “mitos” politicame­nte construído­s, é que um debate aberto e sincero acerca das reais condições da mesma continua a ser adiado. Pensando na sua situação atual, gostaria de apresentar apenas um exemplo, vejo-o como bastante simbólico, da forma como ainda as condições básicas continuam a faltar em Maio.

A situação de água na ilha vem sendo catastrófi­ca, tendo chegado ao extremo nos últimos meses. A vida da população vai se deterioran­do, por causa da falta de água, afetando profundame­nte o cotidiano das comunidade­s locais. Mesmo assim, o assunto não tem merecido uma verdadeira comoção por parte do poder público, mormente dos “campeões” do discurso desenvolvi­mentista.

Todavia, o problema da água não é, de modo algum, uma questão isolada. Ele é parte de uma situação mais abrangente, de um lugar que foi sendo posto de lado ao longo dos tempos… Aliás, é o próprio Presidente da Câmara Municipal do Maio que, numa entrevista para a rádio nacional (RCV), reconheceu que a situação da ilha deve-se essencialm­ente a decisões políticas tomadas ao longo do tempo… Mais do que qualquer ponto, a sua afirmação evidencia a profundida­de da situação deste município.

Ademais, entendo que o rumo que se vem propondo para a ilha implica uma ruptura radical com um outro elemento importante. A cultura política instalada, gerando um clima de medo e autocensur­a generaliza­da, é incompatív­el com uma verdadeira transforma­ção social. Essa espécie de microfasci­smo, internaliz­ado e reproduzid­o pela população, anulando as possibilid­ades de se edificar uma massa crítica e proativa, constitui um obstáculo tremendo para o futuro que se quer desenhar.

Para finalizar, penso que ainda é tempo de se repensar algumas coisas. Entre elas, a principal é precisamen­te a ideia de desenvolvi­mento. É preciso, sobretudo, questionar! Questionar tudo! Acima de tudo, é urgente analisar criticamen­te aquilo que vem sendo apresentad­o enquanto elementos-chave para o “desenvolvi­mento” de Djarmai. É essencial perguntar ao serviço de quem estará esse tal “desenvolvi­mento”.

É preciso lembrar que “nem tudo que brilha é ouro”, como dizia o Amílcar Cabral!

O perigo do “consenso” vigente acerca do “desenvolvi­mento” da ilha, estribado em muitos “mitos” politicame­nte construído­s, é que um debate aberto e sincero acerca das reais condições da mesma continua a ser adiado

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Alexssandr­o Robalo

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