A poluição sonora como ameaça à segurança comunitária*
No decurso das últimas semanas, a segurança da comunidade a que pertencemos mereceu atenção da Polícia Nacional, quando ouvimos o seu porta-voz reagindo ao clamor dos pescadores angolanos que denunciaram assaltos e falta de segurança nas águas da costa angolana, onde desenvolvem a sua actividade profissional. Mas há outros actos nocivos sobre os quais as denúncias são, aparentemente, silenciosas. Por isso, não têm a notoriedade desejada. É o caso da poluição sonora, considerada, por vezes, como invisível ameaça à paz ambiental, mas ao mesmo tempo tida como um perfeito exemplo de impunidade. Com a presente reflexão desejo abordar um tipo de poluição sonora cuja fonte de ruído é a execução de música alta ao ar livre. Vou ao longo do texto designá-la como poluição musical.
Ruído indesejado
A paisagem urbana de Angola tem vindo a ser perturbada por agentes e prática de actos que configuram exemplos de ruído indesejado. Os intermitentes alívios e agravamentos dos confinamentos a que nos sujeitámos, durante os sucessivos estados de calamidade devido à Covid-19, permitiram desvendar a tipologia de fontes de ruído e comportamentos imorais dos habitantes que residem nas cidades no nosso País. Uma das demonstrações de tais vícios passou a ser a execução pública de música ao ar livre, nas igrejas, estradas e ruas dos bairros ou ainda nos condomínios, apartamentos e quintais com vizinhanças. Parece necessário reflectir sobre essas fontes de ruído, tendo em conta, especialmente, a sua duração e o período do dia em que se tornam activas.
Portanto, a poluição musical o tópico da nossa conversa. Esta proposta assenta no seguinte pressuposto. Se o comportamento predatório dos humanos, perante a natureza e o ambiente, ocorre sempre no quadro de uma sociedade organizada, o critério basilar para a sua qualificação tem fundamento comunitário. Assim, ao atomismo ou à supremacia do princípio da liberdade do indivíduo sobre a comunidade, não pode ser atribuída função axiológica, porque quem não pensa nos seus concidadãos, não pode exigir retribuição do respeito desejado. Colocada a questão nestes termos, não posso ignorar a controvérsia que aí está implícita. Mais uma vez, faz-se alusão ao debate que nos campos da filosofia política e na ética opõe comunitaristas a liberais.
Liberdade e produção de ruído
A actividade de poluição musical ou produção intensa de ruído é muitas vezes confundida com manifestações do exercício de liberdade. Neste sentido, este tipo de poluição pareceria exprimir o exercício de uma liberdade negativa. É o que acontece, por exemplo, quando argentários e falsos melómanos, detentores de estabelecimentos comerciais ou empresários de entretenimento, igrejas e seitas religiosas promovem a execução pública de música ao ar livre, com o sentimento de não existir qualquer tipo de impedimento ou coacção para a realização de tais actividades, fora dos recintos destinados para actividade religiosa, festas, entretenimento ou espectáculos. Trata-se de uma interpretação dos tipos de «liberdade negativa», tal como a classificava o filósofo russo-britânic, Isaiah Berlin (19091997) ou simplesmente «liberdade de agir», centrada na acção, de acordo com o filósofo italiano, Norberto Bobbio (1909-2004).
Se se tratasse de verdadeiros exercícios de liberdade, esses comportamentos obedeceriam a uma orientação moral e teriam uma sustentação jurídica. No contexto angolano, qual seria o enquadramento para semelhantes formas perversas de moralidade?
Para o teólogo democrata-congolês, Bénézet Bujo, o exercício da liberdade em África, enquanto comportamento moral, obedece a um princípio fundamental do pensamento africano, segundo o qual «eu sou porque somos e porque somos, eu também sou». É o princípio que tem a sua síntese na expressão latina «Cognatus sum, ergo sum». As formas perversas de moralidade a que me refiro constituem uma manipulação desse princípio, já que privilegiam o sentimento de que o indivíduo é uma ilha, um átomo isolado. Do ponto de vista sociológico, pode dizer-se que estamos perante uma ostensiva forma de anomia na sociedade angolana. Na perspectiva da filosofia política, é a advocacia do estado de natureza, o vazio de segurança individual.
Como veremos em seguida, faz sentido procurar respostas para saber se o exercício de liberdade religiosa e da liberdade cultural é compatível com a produção de ruído, quando assistimos a manifestações e efeitos devastadores das tecnologias do som na paisagem ambiental angolana. Por isso, a produção de ruído vai progressivamente dando sinais de triunfos e danos. Afecta a paz urbana com poluentes sonoros, emitidos através de altifalantes e colunas estereofónicas em recintos abertos, ao ar livre. Isto ocorre em lugares onde se concentram pessoas, rezando, dançando, divertindo-se e consumindo bebidas alcoólicas, como se não existissem normas. Mas não há anomia. Existem dispositivos legais que qualificam a poluição musical como transgressão administrativa. Além disso, regista-se ainda a violação dos direitos de autor, em virtude de se proceder à execução pública de música ao ar livre, sem a devida autorização, de acordo com a legislação sobre a propriedade intelectual.
Embora estejamos perante casos de comportamentos imorais, juridicamente censuráveis com multas e outras sanções de carácter administrativo, há quem admita a possibilidade da criminalização da poluição sonora. Representando uma prova de exercício abusivo da liberdade e de ofensa à propriedade intelectual dos artistas, esse exercício verifica-se de igual modo nos cultos religiosos em que se recorre à produção ruidosa de música ao ar livre.
Um poluente ambiental
Não sendo apenas um poluente ambiental, o ruído é uma ameaça à ordem e segurança públicas. Se a saúde pública constitui uma dimensão importante da existência de uma comunidade, não há dúvidas. A poluição sonora é um problema de segurança.
De acordo com as definições da engenharia acústica, o ruído é um som indesejado produzido pela acção humana e que se propaga a uma velocidade que depende da qualidade do material ou substância por meio do qual se produzem as ondas e a pressão sonoras. Existe uma unidade de medida por meio da qual se determina a intensidade ou o volume do ruído. Designa-se por decibéis. A este propósito, facilmente se conclui que nas nossas cidades, principalé
As denúncias acerca do sentimento de impunidade que os cidadãos experimentam, perante os flagrantes casos de poluição musical, requerem uma vigorosa intervenção policial, tendo em vista a manutenção da ordem pública, evitandose assim que sejam violados os direitos e liberdades fundamentais consagrados na Constituição da República