O caso da Câmara Municipal de São Vicente
1.Princípios e quadro legal
O Governo decidiu enviar representantes dos Ministérios das Finanças e da Coesão Territorial a São Vicente para, segundo Mindelinsite, ajudar a resolver o impasse político-administrativo instalado na Câmara.
Com efeito, é necessário entender a intervenção do Estado na Administração Municipal. Com a ajuda dos textos do Professor Diogo Freitas do Amaral, publicados no Curso de Direito Administrativo, Vol II, vejamos o que diz a legislação cabo-verdiana sobre a matéria.
Objecto – A tutela do Estado sobre as autarquias locais só pode ter como objecto a legalidade da atuação destas (art. 232º Constituição da República)
Espécies – A tutela estadual sobre o poder local reveste basicamente duas modalidades, a saber:
a) Tutela inspectiva: consiste na verificação do cumprimento das leis e regulamentos por parte dos órgãos autárquicos e respectivos serviços. Exerce-se através de “inspecções, inquéritos e sindicâncias” (art. 124º Lei nº134/V95);
b) Tutela sancionatória: consiste na “aplicação das medidas sancionatórias” nos casos previstos na lei. Tais medidas são fundamentalmente duas: a “perda do mandato “(art. 59º Lei nº134/V95), se as ilegalidades detectadas tiverem carácter individual e a “dissolução“(art. 133 º Lei nº134/V95), se houverem sido praticadas por um órgão colegial;
Titularidade– A tutela administrativa sobre as autarquias locais é uma atribuição do Estado. A que órgãos do Estado compete exercê-la? Basicamente ao Governo, através do das Finanças no tocante a aspectos de carácter financeiro (art. 126 º Lei nº134/V95)e do Ministério da Coesão Territorial (art. 125º Lei nº134/V95) no que concerne aos demais aspectos (organização, pessoal, legalidade dos actos e contratos, etc).
Exercício da tutela inspectiva – Inspeccionar significa examinar as contas e documentos de um organismo, a fim de verificar se tudo se encontra de acordo com as leis aplicáveis.
Se se suspeita da existência de uma situação geral de ilegalidades numerosas e imputáveis a varias pessoas, procede-se a uma sindicância; pelo contrário, se se pretende fazer apenas uma inspecção de rotina, ou verificar da legalidade de certo acto ou do comportamento de um dado indivíduo, procede-se a um inquérito.
Tanto as sindicâncias como os inquéritos podem ser ordenados pela autoridade competente ex officio (isto é, no normal desempenho das suas funções) ou mediante denúncia de outros órgãos da Administração ou de particulares.
O processo de análise de documentos e recolha de informações, para fins de inspecção, inquérito ou sindicância, é levado a cabo por funcionários do Estado (inspectores) e pode ser mais ou menos demorado.
Os órgãos e agentes visados têm o dever de colaborar com os inspectores, não podendo obstruir a sua acção ou esconder-lhes o que quer que seja, sob pena de responsabilidade disciplinar ou criminal.
Perda de mandato – Os membros dos órgãos autárquicos eleitos estão sujeitos à sanção legal da “perda de mandato” desde que em relação a eles se prove que cometeram determinadas ilegalidades consideradas graves.
Verificada a ilegalidade ou ilegalidades pelos inspectores e reconhecida a sua gravidade pela entidade tutelar, o processo é remetido ao Ministério Publico, a fim de propor, no tribunal competente, a correspondente “acção de perda de mandato”. Dissolução – Qualquer órgão colegial autárquico pode ser dissolvido, cessando simultaneamente o mandato de todos os seus membros, quando lhe forem imputáveis “acções ou omissões ilegais graves”
A dissolução compete ao Governo sob a forma de resolução.
A dissolução é contenciosamente impugnável por qualquer dos membros do órgão dissolvido.
Efeitos das sanções tutelares - Os autarcas a quem tenha sido aplicada a sanção da perda de mandato, ou que fossem membros de um órgão dissolvido ficam sujeitos às seguintes consequências negativas:
Não podem fazer parte da Comissão Administrativa prevista no art.137º Lei nº134/V95;
Não podem ser candidatos nos actos eleitorais destinados a completar o mandato interrompido;
Não podem ser candidatos a nenhum acto eleitoral subsquente que tenha lugar no período de tempo correspondente a novo mandato completo.
Exceptuam-se os membros que demonstrarem não terem cometido ilegalidades que provocou a dissolução (ponto 2. art. 138º Lei nº134/V95)
2. Que esperar da intervenção do Governo na CMSV? 2.1 A verificação da legalidade
Vimos ao longo de vários artigos exprimindo o facto de que o que se passa na CMSV é, pura e simplesmente, uma questão de (i)legalidade dos actos do Presidente Augusto Neves.
Ele vem desde o início do mandato, sistematicamente, assumindo uma atitude de que, o que se fizer na Câmara tem que ser aquilo que ele concordar, fazendo tábua rasa do que estabelece a lei.
Ele pensa que por ser Presidente da Câmara pode fazer o que bem entender, incluindo não cumprir as deliberações da Câmara, infringindo a alínea b) do art. 98 º Lei nº134/V95.
Ele quer rejeitar na prática o facto de a Câmara deliberar por maioria, como estabelecido na lei (art. 48 º Lei nº134/V95) e assim não quer aceitar toda a decisão desse órgão que não lhe agrada.
E isso, mesmo quando ele, Augusto Neves, a contragosto, porque não podia recusar, acabou por aceitar a elaboração e aprovação, com o voto dele, dum Regimento que regula o funcionamento da Câmara e que está publicado no Boletim Oficial.
E não se coíbe de adoptar expedientes baixos como convocar uma reunião ao Domingo, fazendo troça de todos aqueles para quem não é aceitável passar dos limites do razoável.
Até agora, ninguém reclamou poderes do Presidente sendo essa uma narrativa de autojustificação de Augusto Neves.
Com efeito, quem praticou actos passíveis de ilegalidade é Augusto Neves, que, por isso mesmo, deve ser investigado, e, consequentemente, após apuramento inequívoco da situação, ser objeto de medidas sancionatórias, previstas na lei.
Afinal é (foi) isso que foi solicitado à TUTELA.
2.2 A aplicação de medidas sancionatórias
A lei, como vimos, sujeita os prevaricadores a sanções que podem chegar, no limite, a perda de mandato.
Augusto Neves é Presidente da CMSV, por definição da lei existente, embora esteja em situação de minoria no órgão Câmara Municipal.
Razoavelmente, quem preside deveria deter a maioria no órgão respectivo.
Não é suposto pretender eleger o Presidente fora de eleições, mas, também, não se pode permitir que, impunemente, ele se aproprie e deturpe a vontade expressa pelos eleitores, sem fundamentos que o legitimam a não ser sua vontade pessoal.
Para ser claro, Augusto Neves, a cair, cairá por culpa dos seus erros e das suas atitudes.
Isso quer dizer que é de esperar que, no quadro da intervenção do EsMinistério tado, no mínimo, Augusto Neves receba um claro e público aviso de que, se não arrepia caminho, não restará outra via senão promover a sua perda de mandato, e isso, por culpa própria, não por vontades alheias.
Sendo a responsabilidade individual não há atitude colectiva que possa justificar a eventual dissolução do órgão Câmara Municipal. E muito menos da Assembleia Municipal, como se vai aventando por aí.
2.3 A situação dos outros vereadores
Os demais vereadores da Câmara estão todos numa posição tranquila já que têm limitado a expressar o seu voto nas situações para as quais foram chamados a se pronunciar.
Não há lugar a considerar uns da oposição e outros da situação, pois todos se limitaram a votar a favor ou contra o que lhes foi submetido à apreciação e disso não podem ser responsabilizados de nenhuma forma.
Mas foi a maioria da Câmara que solicitou a intervenção do Estado pelo que nada tem a temer.
Talvez, essa maioria não tenha até agora utilizado todas as possibilidades de natureza legal para fazer face aos desmandos de Augusto Neves.
A isso não será alheio a sua inexperiência e a tendência para auto-afirmação, o que é habitual em quem começa o desempenho de cargos de natureza política e administrativa.
Uma consideração final sobre a famosa reunião de domingo promovida por Augusto Neves. Nos termos do Artigo 147º (Executoriedade dos actos) 1. As deliberações dos órgãos municipais tornam-se executórias depois de aprovadas as respectivas actas ou depois de assinadas as respectivas minutas, quando assim tenha sido deliberado, salvo nos casos sujeitos à tutela correctiva.
Não havendo acta aprovada pela Câmara Municipal, as deliberações não são executórias, nos termos da lei.