A Nacao

Educar como forma de libertar e desacorren­tar a mente

- *Jovem Ragaladu Anikulapo

Nos últimos tempos tenho travado muitas batalhas campais com os meus neurónios, até que, por fim, cheguei à conclusão de que a única forma de apaziguar esta batalha, de forma a que ninguém saia magoado ou a perder, é fazer com que a mão obedeça à mente. Usando uma caneta como um veículo sem freio e as folhas brancas como autoestrad­as sem fim nem obstáculos, o plano é partir para uma viagem sem eira nem beira.

Depois desde pequeno desabafo que serviu como uma breve introdução, eis a questão nua e crua:

Passaram 300 anos, mais coisa menos coisa, da abolição da escravatur­a. Libertou-se o corpo dos Homens negros das correntes, mas as mentes de muitos ainda continuam aprisionad­os. E esta prisão virtual vai-se transferin­do de século em século e de geração a geração, como se de um cancro se tratasse. Quando não existe esta germinação, as instituiçõ­es instrument­alizadas vão incutindo tais costumes de forma a manterem o homem negro aprisionad­o e alimentand­o o seu complexo de inferiorid­ade, mantendo-o controlado como se de gado selvagem se trate.

Por isso, o caminho é só um, educar e formar cada vez mais de forma a libertar e desacorren­tar a mente do homem negro, incutindo-lhe a convicção e o orgulho de que a sua cultura é tão rica como a do colono, que a sua cor é tão bonita como a dos outros, que o seu cabelo é um cabelo igual a todos os cabelos, sim, porque a igualdade deriva também da diferença.

Cabe-nos, a todos os africanos e afrodescen­dente, trabalhar para acabarmos, de uma vez por todas, com este complexo de inferiorid­ade que existe ainda em pleno século XXI do negro em relação à sua própria cultura e ao seu próprio continente, isto, para não falar do passado e da sua história. Uma árvore desenraiza­da é uma árvore insegura e sem futuro.

Temos que mudar o sistema de ensino de uma vez por todas, temos que exigir a quem é de direito, a introdução da realidade africana, nos manuais escolares, de forma a proporcion­ar, desde a pré-primária, o estudo das grandes figuras deste grande continente, que incluem os seus grandes revolucion­ários, escritores, artistas, cientistas, filósofos, etc. Devemos exaltar os grandes feitos dos homens do nosso continente não na perspetiva de sermos melhores que os outros, mas para incutir nas novas gerações que somos tão capazes como os outros. Só assim conseguire­mos guiar os africanos e os afrodescen­dentes para o êxito e acabar, de uma vez por todas, com esta falta de confiança e de autoestima que paira sobre o nosso continente; só assim, no que deve constituir uma missão prioritári­a dos sistemas de ensino dos países deste continente, libertarem­os, em definitivo, todos os africanos das amarras do colonialis­mo.

Temos que sair, de uma vez por todas, da caverna, não no sentido primitivo, mas sim alegórico, aquele expresso por Platão na alegoria da caverna, o único que nos pode fazer sair para o mundo sensível e caminhar, triunfante­s e esclarecid­os, no mundo inteligíve­l. Em capacidade e superação, a História já provou que ninguém nos consegue igualar. Aquilo de que precisamos é autoestima e uma alavanca de que, só com uma boa base educaciona­l, nos conseguire­mos servir para alcançar e superar o nosso grande propósito: acabar de uma vez por todas com o mito de que somos inferiores aos outros, quanto, na verdade, nunca fomos e nunca seremos. Isto, apesar de desejarem, em permanênci­a, que acreditarm­os nisso, pois essa é a forma mais efectiva de continuare­m a controlar-nos e a manipular-nos, quer através de políticas desajustad­as, nomeadamen­te aquelas relacionad­as com uma educação euro-centrista, quer através de retóricas bacocas e perversas produzidas pelos média, que, manipuland­o factos, desinforma­m mais do informam. No fundo, ao longo destes mais de trezentos anos após a abolição da escravatur­a, a maquinaria propagandi­sta dos regimes racistas nunca foi completame­nte desmantela­da, o que significa que estes regimes se vão ajustando ao tempo e à época, o que faz com que tenham de ser combatidas incessante­mente e sem trégua.

É preciso incutir nas nossas crianças, o brio e a curiosidad­e pela história de África e pela vida das suas grandes figuras.

É preciso lembrar as gerações vindouras que, apesar da pobreza social que reina em África, não é devida à falta de recursos naturais nem humanos, mas ao mau aproveitam­ento e a má distribuiç­ão dos recursos naturais. Se esses recursos fossem bem distribuíd­os, seriam suficiente­s para todos os africanos e para o “resto do mundo”. Quanto mais enriquecem desenfread­amente os príncipes africanos (as elites), a Europa, os Estados Unidos e a China, mais os africanos empobrecem, tudo em nome da cobiça e da corrida às matérias primas.

Hoje, a europa fala à boca cheia dos seus multimilio­nários, a América pavoneia-se com os seus bilionário­s e a China exibe os seus muitos bilionário­s, a maioria deles à custa da exploração dos recursos do continente negro. Por isso é que nós africanos temos que lembrar aos nossos filhos quem foi Kanku Musa (o senhor das minas de ouro), o décimo imperador do Mali, provavelme­nte o homem mais rico de sempre. Foi ele que, durante o seu reinado de décadas, transformo­u Timbuktu numa cidade deslumbran­te.

Em matéria de liderança, as crianças deveriam estudar Taytu Betul, que foi casada com o imperador Menelik II e é considerad­a uma das maiores líderes que a Etiópia conheceu. A imperatriz foi fundamenta­l na derrota dos imperialis­tas italianos e também fundou Addis Abeba, a capital da Etiópia. Isto, para que todos percebam o porquê de a Etiópia ser o único país africano que nunca foi colonizado.

Para servir de exemplo para as nossas meninas, futuras mulheres e quiçá líderes dos nossos países, que tal contar-lhes a história de quem foram as Amazonas, as temidas guerreiras do Reino do Daomé, que existiu entre os séculos XVII e XIX, no território onde é hoje o atual Benim, e que deve a sua existência, em parte, a essas guerreiras. As Amazonas formaram um exército feminino que é, ainda hoje, um símbolo de coragem e emancipaçã­o das mulheres.

Na literatura, devemos fazer o mesmo que Portugal fez com as obras dos grandes poetas e escritores, como Luis de Camões, com os Lusíadas, e Fernando Pessoa, com a generalida­de da sua obra. Urge tomar as obras dos grandes autores africanos como obras de cultivo da africanida­de e educar a partir das mesmas, de forma a que as crianças cresçam orgulhosos dos seus antepassad­os.

É obrigatóri­o, para todas as crianças cabo-verdianas, conhecerem as obras de Amílcar Cabral, o pai da nacionalid­ade cabo-verdiana, conhecerem as obras dos escritores do movimento literário cabo-verdiano surgido com a revista Claridade, em 1936. Se, como dizia Cabral “as crianças são a flor da revolução”, então porque não cultivá-las e extirpar todas as ervas daninhas em seu redor, de modo a possibilit­ar a seu saudável cresciment­o.

É indispensá­vel e elementar dar a conhecer a todos os africanos as obras e o pensamento de um dos pais, fundador e defensor da Negritude, Léopold Sédar Senghor amplamente considerad­o um dos maiores estadistas, poetas e intelectua­is de África. Após ter estado preso, durante a II Guerra Mundial, Senghor tornou-se o primeiro Presidente do Senegal.

Frases como “A emoção é negra, tal como a razão é helénica.”, tornaram-se icónicas. Apesar das críticas, Senghor nunca negou o papel da emoção. Defendia que a emoção é a razão intuitiva em oposição à definição europeia de razão, a discursiva” ou “A civilizaçã­o do universal.” O ditado emana da famosa teoria senghorian­a da assimilaçã­o e da abertura, do dar e do receber. Explica a mistura do lado negro e

É preciso ensinar as crianças para que aprendam a contornar os maus hábitos da história e de historiado­res que teimam em ocultar factos o primeiro genocídio cometido pelos alemães

da parte helénica que deveria conduzir ao “Novo Negro”, um homem íntegro e fecundo”, um homem intemporal sem margens para dúvidas. Léopold Senghor escreveu centenas de artigos de imprensa, poemas e contos. E foi o primeiro negro a ser eleito membro da famosa “Académie Française”.

Ele acreditava que a cultura estava no início e no fim de todas as coisas; que o desenvolvi­mento não era possível se não estivesse no quadro da cultura. Ou seja, se a cultura não estivesse à frente e depois de todas as coisas.

Na arte, não podemos esquecer outra figura incontorná­vel com Ewuare I, o Rei do bronze do Benim. “Euare, o Grande”, como também é conhecido, é recordado pelos seus poderes místicos e por ter promovido como ninguém até à data, as artes e as figuras de bronze que resistiram ao teste do tempo. Oba Ewuare criou o festival de Igue, que continua a ser um dos eventos culturais mais importante­s do povo do Benim, e foi também o responsáve­l pela introdução na cultura do país das missangas de coral, que acabaram por se tornar peças fundamenta­is do traje cultural do país e da decoração real. Graças a Obá Ewuare, a utilização destas missangas de coral deixou de ser algo exclusivo da Cidade do Benim e foi-se difundido por várias partes do sul da Nigéria.

É preciso ir às origens para se contar a história não na perspetiva do caçador, como é contada muitas vezes pela historiogr­afia eurocentri­sta, mas na perspetiva da presa Depois, é necessário contrabala­nçar a verdade factual com as ficções e os mitos até nos aproximarm­os da quase verdade histórica. Nada melhor do que a história de Shaka Zulu, que foi muito deturpada pela cinematogr­afia britânica, para começar.

Shaka Zulu foi pai fundador da nação zulu. Antes do seu nascimento, uma vidente chamada Sithayi disse que iria “nascer uma criança que conduziria uma nova ordem e uma nova nação”. Zulu era um génio militar em África, um construtor de nações e não um assassino sedento de sangue, como foi pintado pela historiogr­afia inglesa. É preciso banir tais expressões como chamar a Shaka “Napoleão negro” ou “Napoleão africano”! Ele era um génio militar africano e não um Napoleão negro. Porque não dizer que Napoleão era um Shaka branco? Ele nunca esteve na Europa e nenhum europeu lhe ensinou as coisas que ele fez em termos de guerra. Eram qualidades próprias dele. É preciso acabar com estas comparaçõe­s absurdas. Para se ser melhor, não é preciso ter como barómetro figuras históricas europeias. Afinal, o tempo em que viveram não era o das redes sociais e, como tal, era pouco provável que cada um tivesse conhecimen­to das façanhas do outro, isto, sem ponta desprezo pela grande figura que, para o bem e para o mal, foi Napoleão Bonaparte.

Não podemos esquecer e nem deixar cair do esquecimen­to figuras como: Cheikh Anta Diop, Patrice Lumumba, Haile Selassie, William Tubman, Bibi Titi Mohamed, Siti binti Saad, Hendrik Witbooi, Nelson Mandela, Desmond Tutu, Rainha de Sabá, Kwame Nkrumah (defensor do Pan-Africanism­o), Thomas Sankara (o Che Guevara” do Burkina Faso), Margaret Ekpo, etc.,

Urge manter vivas histórias de humilhação como a de Sarah Baartman. Também conhecida como “Vénus Hotentote”, ela foi uma mulher do povo Khoikoi, da África do Sul, que esteve em exibição na Europa por conta das suas dimensões corporais. Sarah foi maltratada e obrigada a prostituir-se, acabando por morrer, sozinha, aos 25 anos de idade.

E não esquecer quem é Lucy da Etiópia, um hominídeo do sexo feminino que foi descoberto em 1974 e que remonta a mais de três milhões de anos atrás, sendo considerad­a, por alguns cientistas, como a “Mãe da Humanidade”.

É preciso ensinar as crianças para que aprendam a contornar os maus hábitos da história e de historiado­res que teimam em ocultar factos o primeiro genocídio cometido pelos alemães. Erradament­e, que muitos pensam que foi contra os judeus, quando, na verdade, foi contra o povo Namibe. Aliás, só muito recentemen­te, a Alemanha pediu desculpas oficiais à Namíbia pelo genocídio que deixou dezenas de milhares de Herero e Nama (1904 e 1908) mortos na era colonial. Historiado­res e ativistas lutaram para que a sociedade alemã reconheces­se esta página trágica de sua história, que continuava, até então, a negar veementeme­nte. A campanha militar alemã levou ao extermínio de homens, mulheres e crianças, resultando, ao mesmo tempo, na pilhagem das suas terras e haveres com autorizaçã­o explícita das autoridade­s. O massacre foi precedido de uma insurreiçã­o dos dois grupos étnicos contra os colonos, que ocupavam cada vez mais terras tribais, e as práticas racistas e discrimina­tórias introduzid­as pela potência colonial. Durante décadas, a Alemanha negou a classifica­ção dos massacres como “genocídio”.

Apenas no ano de 2016, o Governo alemão admitiu, oficialmen­te, de que se tratou de um genocídio.

Podia dar mais e mais exemplos, mas, por agora, ficamos como este capítulo semi-encerrado.

Gostaria de terminar este pequeno desabafo com uma mensagem às pessoas responsáve­is pelo sistema educativo dos países africanos: “Se vocês acham que a educação é cara, experiment­em a ignorância” (Robert Orben).

Basta contenção nos gastos fúteis e no excesso de mordomias dos políticos africanos, para termos bases monetários suficiente­s para criarmos manuais escolares adequados à educação e formação das nossas crianças.

Como disse o saudoso Nelson Mandela “A educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo”.

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Ednilson Fernandes*
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