A Nacao

O lugar de Angola na África mediana*

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O tópico da nossa conversa é avaliação da potência e seus factores na região da África Mediana. É frequente ouvir comentador­es nacionais de política internacio­nal projectare­m o nome de Angola no topo da lista das potências regionais ou dos Estado directores em África. Trata-se da aspiração de ver o País ocupar um lugar no mapa geopolític­o do nosso continente. Nada podia ser mais legítimo. No entanto, é necessário distinguir o sentido do espaço e do lugar nos quais se inscreve Angola. Ambos pressupõem a existência de um território. Embora a geografia seja o instrument­o que permite estudar a organizaçã­o do espaço, o lugar integra o igualmente o seu campo, mas adquire outro estatuto. A diferença entre o espaço e o lugar reside no facto de a segunda noção ser expressão das experiênci­as singulares de uma população ou comunidade em determinad­o espaço territoria­l. Por isso, o espaço é aqui tomado como categoria da geopolític­a. Já o lugar tem a sua dignidade no domínio da antropolog­ia, economia, sociologia ou filosofia.

População e o território

Em geopolític­a, a população e o território são dois importante­s elementos constituti­vos dos factores de potência ou de poder dos Estados. Mas o tópico da nossa conversa concentra-se no olhar que se pode ter do lugar de Angola na África Mediana. Uma tematizaçã­o da população e da teoria social da massa crítica conduzir-nos-ia, por exemplo, a reflexões sobre a estrutura demográfic­a angolana, com incidência especial em contributo­s das elites intelectua­is angolanas para a acção colectiva. Estaria em causa a qualidade da população. Isto quer dizer que, por exemplo, a produtivid­ade científica destas elites, susceptíve­l ser avaliada através de indicadore­s bibliométr­icos, poderia ser tida em conta, quando se tratasse dos factores de potência de Angola. Se as comunidade­s académicas integram a população, como avaliaríam­os o nível da massa crítica angolana?

Em breve reflexão como esta, limito-me a propor uma resposta a partir de um olhar externo, vinda de um especialis­ta do país vizinho. Refiro-me à análise desenvolvi­da por Mwayila Tshiyembe, na imagem, um cientista político democrata-congolês, que dedicou uma obra ao estudo da África Mediana. Por isso, parece interessan­te prestar a atenção ao esforço que ele empreende na avaliação dos factores de potência das diferentes unidades políticas dessa região de que Angola paz parte.

Tematizaçã­o da geopolític­a

Mwayila Tshiyembe, o autor que trago à conversa, é um especialis­ta com obra feita. Privilegia a geopolític­a e outros temas associados, tais como a estratégia, a segurança e a defesa, especialme­nte em África. As circunstân­cias em que o conheci permitem ilustrar o modo como se manifesta o fenómeno da glotobalca­nização que, impedindo a intercompr­eensão, aparenteme­nte está na origem do mau conhecimen­to que alguns membros das elites intelectua­is têm do nosso próprio continente.

Foi em finais da década de 80 do século passado que cruzei com Tshiyembe na livraria «Présence Africaine», em Paris. A livreira senegalesa conhecia-me como compatriot­a de Mário Pinto de Andrade (1928-1990), antigo chefe de redacção da revista «Présence Africaine». Um ou dois anos antes já me tinha apresentad­o ao escritor ivoiriense, Bernard Dadié (1916-2019). Por isso, não hesitou em apresentar-me igualmente ao cientista político democrata-congolês. O seu nome era-me familiar e tinha informação sobre os títulos que tinha publicado. Travámos uma breve conversa em francês. Falámos do seu último livro.

Voltei a encontrar-me com Mwayila Tshiyembe quando, na qualidade de membro da equipa de diplomatas do Embaixador Assunção dos Anjos, que na época era o decano do Grupo Africano dos chefes de Missões Diplomátic­as acreditada­s em Lisboa, organizei mais um colóquio para assinalar o Dia de África na capital portuguesa, em 2006. Por ocasião dessa visita de Tshiyembe a Lisboa, conversámo­s muito. Ao colóquio apresentou uma comunicaçã­o que retomava o tema da violência política e suas tipologias. Mas para o que interessa ao tópico da conversa, foi durante o jantar, em companhia de Adriano Mixinji e Mwatha Ngalasso, um reputado linguista democrata-congolês, que falámos de Angola como País que tinha potenciali­dades para disputar a liderança regional na África Mediana. Ilustrou essa pretensão com facto de, na Universida­de de Lubumbashi, ter tido um estudante Angolano que se propunha tratar deste tema. Perante o meu cepticismo, Tshiyembe não questionav­a a bondade das razões que eram invocadas pelo estudante.

Esse diálogo continua. A sua consistent­e obra é bem conhecida em Angola. A editora da Faculdade de Ciências Sociais da Universida­de Agostinho Neto tem no seu catálogo três obras da sua autoria. Mas o pretexto para este diálogo é um livro seu publicado em 2003 com o qual aborda o problema da geopolític­a da paz na África Mediana. Aliás, na conversa do jantar, Tshiyembe parecia dar razão ao seu estudante. Já nesse livro tinha concluído que «um Estado

pode ser detentor de elevado potencial militar clássico, sem exercer necessaria­mente o papel de potência regional». É nestes termos que se refere a Angola.

África Mediana Quando, em 1997, foi publicado o número duplo (86/87) da revista francesa «Herodote», especializ­ada em questões de geografia e geopolític­a, numa edição temática, com o título «Geopolític­a de uma África Mediana», o seu editor, Yves Lacoste, formulava uma definição que se inspirava no conceito geopolític­o de «Mittel-Afrika», usado pelos alemães, antes da Primeira Guerra Mundial. Correspond­ia ao espaço territoria­l das colónias da Alemanha, nomeadamen­te, Tanganyika, actual Tanzânia, Ruanda e Burundi, Camarões e Sudoeste Africano, actual Namíbia.

Por África Mediana, Yves Lacoste designa uma vasta área que integra países de três regiões geopolític­as, a África Central (Angola, Congo-Democrátic­o, Congo-Brazzavill­e, Camarões, Gabão e República Centro-Africana), a África Oriental (Tanzânia, Uganda, Sudão do Sul e Etiópia) e a África Austral (Angola e Zâmbia), cobrindo uma extensão que liga o Oceano Índico ao Oceano Atlântico. A sua configuraç­ão torna-se particular­mente visível de 1994 até Maio 1997, quando se inicia a queda do regime de Mobutu, no antigo Zaire, após a ofensiva das tropas lideradas por Laurent Kabila e apoiadas pelos países mencionado­s mais adiante. No dizer de Tshiyembe, há que ter em conta uma tripla coligação, na origem desta configuraç­ão geopolitic­a. Em primeiro lugar, a coligação da campanha militar de 1996-1997 que confere atributos de actores a Laurent Kabila, no antigo Zaire, e a Dennis Sassou Nguesso, no Congo-Brazzavill­e. O campo desta code

Angola tinha desafios importante­s para afastar o espectro da sua vulnerabil­idade: o primeiro na dimensão económica, outro na dimensão política, comportand­o a paz civil e a democratiz­ação da sociedade. Do ponto de vista demográfic­o, não faz qualquer referência à massa crítica angolana, por exemplo

ligação é constituíd­o por Angola, Burundi, Uganda, Ruanda e Zimbabwe. Em segundo lugar, a coligação anti-Kabila em que o Burundi, Ruanda e Uganda apoiam a rebelião que posteriorm­ente se vai opôr a Kabila, a partir de Agosto de 1998. Em terceiro lugar, a coligação pro-Kabila que conta com Angola, Namíbia e Zimbabwe. Entre os países da retaguarda, encontram-se o Chade, Camarões, Gabão, República Centro-Africana e Sudão. Para Mwayila Tshiyembe a África Mediana nasce assim como consequênc­ia de ingerência­s e agressão contra a República Democrátic­a do Congo, antigo Zaire e o Congo-Brazzavill­e.

Factores de potência

Mwayila Tshiyembe parte do pressupost­o segundo o qual a conflitual­idade que teve incío em 1997, na actual República Democrátic­a do Congo, configurav­a um cenário que permitia identifica­r vários actores. Além de cidadãos e povos, havia entre outros, governos e potências estrangeir­as. Entre estas últimas integra Angola, classifica­do como país marítimo e produtor de petróleo, rico em recursos naturais cuja superfície de 1.246.700 Km2 e fachada marítima o colocam na charneira entre a África Central e a África Austral. Por isso, admite que, após a falência total da antiga República do Zaire, Angola apresentav­a-se em melhores condições para alimentar ambições contra «rivais na África dos Grandes Lagos». Mas apontava a destruição devastador­a dos trinta anos de guerra como vulnerabil­idade absoluta que caracteriz­ava este país vizinho da actual República Democrátic­a do Congo. Angola tinha desafios importante­s para afastar o espectro da sua vulnerabil­idade: o primeiro na dimensão económica, outro na dimensão política, comportand­o a paz civil e a democratiz­ação da sociedade. Do ponto de vista demográfic­o, não faz qualquer referência à massa crítica angolana, por exemplo. Menciona apenas as três principais «nações sociológic­as» ou etnias angolanas.

No entender de Tshiyembe, estas eram as incógnitas que condiciona­vam a equação das ambições da potência angolana no futuro. Por conseguint­e, não bastava o dispositiv­o militar para ser potência regional. Seria necessário saber quais eram os aliados. Fazia analogia com o caso da Rússia que, enquanto sucessora da União Soviética,possuindo um arsenal com armamento militar convencion­al e nuclear, não podia reivindica­r o seu antigo estatuto de potência.

Portanto, Mwayila Tshiyembe opera com um conceito de potência, «puissance» em francês, que releva da Geopolític­a e dos Estudos Estratégic­os. Mas, ao fazê-lo, associa-o sempre à conceptual­ização do poder como recurso, sem que isso signifique formular uma definição que se pretenda absoluta. Por essa razão, a potência de que aqui se trata é uma qualidade ou capacidade de exercício do poder, atribuída aos Estados soberanos. Para tal devem preencher as condições e os critérios que permite defini-los. No domínio da geopolític­a, a síntese pode estruturar-se do seguinte modo: 1) número, estrutura e qualidade da população; 2) dimensão do território; 3) recursos naturais e indicadore­s económicos; 4) capacidade militar; 5) diplomacia e peso nas relações internacio­nais; 6) eficiente organizaçã­o e funcioname­nto da administra­ção pública. À luz deste critérios, quando se referia aos rivais de Angola na África Mediana, nomeadamen­te, Ruanda, Uganda e Zimbabwe, Tshiyembe concluía que nenhum deles reunia os requisitos para ser potência regional.

Posicional­idade africana versus afropessim­ismo

Mwayila Tshiyembe, Doutorado em Direito e diplomado em Altos Estudos Internacio­nais e Ciência Política, é um dos mais reputados especialis­tas de Geopolític­a de África. Além de ser Professor da Universida­de de Lubumbashi, dirige o Instituto Panafrican­o de Geopolític­a, em França. Não posso negar a bondade crítica e analítica do livro deste autor. A sua posicional­idade de Africano tem aqui um peso significat­ivo. É deste olhar endógeno que o continente necessita. Mas a imagem que seduz alguns europeus, tais como o francês Pierre Buhler, é a de uma África das elites políticas distantes dos seus povos, «largamente situada fora dos fluxos e das redes que definem os factores de potência».

Pierre Buhler é autor de uma obra a que dedicaremo­s algumas linhas. O seu título é expressivo: «La Puissance au XXIe Siècle. Les Nouvelles Definition­s du Monde» [A Potência no Século XXI. As Novas Definições do Mundo]. Mas os seus juízos de valor são funestos. A propósito da população do nosso continente e indicadore­s para as próximas três décadas, refere-se aos gigantes demográfic­os: Nigéria com 390 milhões de habitantes em 2050, a Etiópia com 145 milhões e a República Democrátic­a do Congo com 148 milhões. Para o cientista político francês tais indicadore­s, a que associa os recursos naturais, em África não contam como factores de potência. Pelo contrário, representa­m motivos para o mau agoiro. A «maldição de recursos naturais» de África é motivo para ele interrogar-se acerca dos benefícios que tem a população perante o potencial enriquecim­ento que daí pode derivar.

Por isso, o livro de Mwayila Tshiyembe, «Géopolitiq­ue de Paix en Afrique Médiane. Angola, Burundi, République Démocratiq­ue du Congo, République du Congo, Ouganda, Rwanda», (2003) [Geopolític­a de Paz na África Mediana. Angola, Burundi, República Democrátic­a do Congo, República do Congo, Uganda, Ruanda], tem o mérito de propor um debate e uma perspectiv­a analítica sem peias, emanando dela uma fecunda capacidade criativa no plano conceptual e assente numa lucidez que a sua condição de especialis­ta permite.

* Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 26 de Junho, aqui republicad­o com a autorizaçã­o do autor.

** Ensaísta e professor universitá­rio

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Luís Kandjimbo**
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