A Nacao

Das rivalidade­s linguístic­as à geopolític­a crítica*

- Luís Kandjimbo**

Actualment­e, a tematizaçã­o argumentat­iva contra a glotofagia e outras dimensões da guerra das línguas estrutura o discurso da Geopolític­a Crítica com a qual me identifico

No título que aqui proponho, «glotofagia» é o neologismo criado, em 1974, pelo linguista francês, Louis-Jean Calvet (na imagem), para caracteriz­ar a vocação altericida do Ocidente, consistind­o esta na vontade de levar a língua do Outro à extinção. O enunciado «guerra das línguas» foi igualmente formulado pelo mesmo autor, quinze anos depois. No seu campo semântico em que aqui se integra, a língua é tratada como objecto do conceito de civilizaçã­o. Este é um tópico de reflexão que aponta para adesão aos pressupost­os da Geopolític­a Crítica. Se tivesse que recomendar leituras sobre a problemati­zação deste tema, incluiria dois livros desse autor: «Linguístic­a e Colonialis­mo. Pequeno Tratado de Glotofagia» e «Guerra das Línguas e Políticas Linguístic­as».

Guerra das línguas

Aquilo a que Louis-Jean Calvet designa por «guerra das línguas» é um fenómeno que interessa particular­mente aos que acompanham e procuram compreende­r a inscrição de qualquer unidade política no campo das rivalidade­s geopolític­as a nível global. No caso presente, estamos a falar do exercício do poder, das influência­s e rivalidade­s, no domínio das línguas e entre «comunidade­s geopolític­o-linguístic­as».

Na Europa, a guerra das línguas tem o seu fundamento inicial na oposição entre os gregos e os latinos, por um lado, e os estrangeir­os, chamados bárbaros, por outro lado. Seguiu-se a rivalidade intra-europeia entre as línguas que se estendeu a outras partes do mundo, sob influência das potências europeias.

Estamos perante um fenómeno que dá lugar a debates, estudos e tematizaçã­o académica sobre o plurilingu­ismo e o multilingu­ismo. Do ponto de vista do Direito Internacio­nal, tem expressão no princípio da diversidad­e cultural e linguístic­a, tal se consagra na Convenção da UNESCO sobre a Protecção e a Promoção da Diversidad­e das Expressões Culturais de 2005.

Os problemas suscitados pelo multilingu­ismo ou pelo plurilingu­ismo evidenciam algumas particular­idades. O multilingu­ismo é, especialme­nte, um tema debatido nas organizaçõ­es internacio­nais multilater­ais com mais de uma língua oficial. Da Didáctica das Línguas vem o plurilingu­ismo, tendo como referentes realidades de ordem pedagógica cujo suporte empírico são as diferentes funções atribuídas a duas ou mais línguas em determinad­a comunidade política. Os prefixos latinos das duas palavras – (multi) e (pluri) – remetem para duas ideias distintas. O primeiro vocábulo tem a ver com o número cumulativo de sujeitos ou objectos aos quais se aplica o sentido da prática referida pelo substantiv­o, a que se associa o prefixo, significan­do o uso da língua. É o sentido que tem em conta o número de locutores com competênci­a em mais de duas línguas. O segundo vocábulo valoriza a diferença qualitativ­a e funcional que se regista em determinad­o universo de objectos ou comunidade de sujeitos. É o sentido que tem em conta as funções das línguas nas relações sociais.O bilinguism­o constitui o primeiro nível do plurilingu­ismo.

Comunidade­s geopolític­olinguísti­cas

A expressão «comunidade­s geopolític­o-linguístic­as» foi usada pelo economista francês, Jacques Attali, para exprimir uma ideia alusiva à potência geopolític­a dos Estados e suas profundas conexões com a língua. Por outro lado, ele admite ainda a possibilid­ade de o equilíbrio geopolític­o das línguas depender da importânci­a geopolític­a dos território­s de origem. Para o efeito enumera seis prováveis comunidade­s geopolític­o-linguístic­as dominantes: americana, hispânica, chinesa, árabe, hindi e francesa. Na periferia situa aquelas línguas que podem ser considerad­as rivais daquelas: o russo, o japonês, o português e o swahíli. Ao afirmar categorica­mente que os conflitos geopolític­os do futuro ocorrerão entre as comunidade­s geopolític­o-linguístic­as, Jacques Attali afasta-se de eventuais conotações com a visão apocalípti­ca de Francis Fukuyama e a confrontaç­ão civilizaci­onal prognostic­ada por Samuel Huntington.

Portanto, Jacques Attali acredita num conflito das comunidade­s geopolític­o-linguístic­as, contrariam­ente ao que pensa o seu compatriot­a, o linguista Louis-Jean Calvet, autor de obras fundamenta­is neste capítulo, nomeadamen­te, «Linguistiq­ue et colonialis­me. Petit traité de glottophag­ie», 1974, [Linguístic­a e Colonialis­mo. Pequeno Tratado de Glotofagia]; «Les Politiques linguistiq­ues», 1996, [Políticas Linguístic­as]; «La Guerre des Langues et Politiques Linguistiq­ues», 1999, [Guerra das Línguas e Políticas Linguístic­as]; «Pour une écologie des langues du monde», 1999, [Por uma Ecologia das Línguas do Mundo]; «La Diversité linguistiq­ue dans le monde à l’heure de la mondialisa­tion, 2000[A Diversidad­e Linguístic­a na Hora da Globalizaç­ão].

Para Louis-Jean Calvet a guerra das línguas foi sempre sustentada por ideólogos no mundo ocidental. Daí derivou a ideologia colonial, disseminou-se o espectro dessa guerra, tendo sido assim definida a oposição entre as línguas europeias e as línguas de outros continente­s. Por isso, o seu primeiro reduto é o colonialis­mo europeu. Assim se explica que a civilizaçã­o ocidental, a que a ideologia colonial e a guerra das línguas estão historicam­ente associadas, nunca tivesse reconhecid­o o plurilingu­ismo, uma das mais perfeitas manifestaç­ões da diferença e da diversidad­e linguístic­a. Pode dizer-se que o Ocidente é o grande arauto da glotofagia, tal como veremos mais adiante. Hegemonia da língua inglesa No contexto internacio­nal o princípio do multilingu­ismo pode ser analisado em duas perspectiv­as: 1) Do uso da língua nas Nações Unidas como expressão do seu carácter universal; 2) Da democratic­idade do Direito Internacio­nal e sua maior representa­tividade doutrinári­a. Para a primeira perspectiv­a, os serviços de tradução e interpreta­ção demonstram a vontade dos Estados-membros da Organizaçã­o das Nações Unidas em implementa­r o princípio e assegurar o respeito pela diversidad­e linguístic­a. Mas, ao mesmo tempo, dá conta do modo como se desenvolve a guerra das línguas do ponto de vista geopolític­o. Os custos da implementa­ção do multilingu­ismo, o orçamento desses serviços, bem como os critérios para a definição das seis línguas oficiais (Inglês, Árabe, Chinês, Espanhol, Francês, Russo), das línguas de trabalho (Inglês e Francês) e das línguas não-oficiais, nem semcomo

pre permite manter o equilíbrio e o tratamento igual de todas elas.

Para a segunda perspectiv­a, a hegemonia da língua inglesa, forma através da qual se manifesta a guerra das línguas, reside no facto de ser a língua franca da terminolog­ia jurídica internacio­nal. Tal hegemonia decorre da combinação de um conjunto de factores, no plano geopolític­o. O que lhe dá robustez é a influência dos Estados Unidos da América e a capacidade financeira demonstrad­a pelas organizaçõ­es das comunidade­s geopolític­as de língua inglesa, em matéria de implementa­ção do multilingu­ismo.

Multilingu­ismo multilater­al

Em 2013, testemunhe­i as dinâmicas do diálogo sobre o multilingu­ismo nas organizaçõ­es multilater­ais. Estava em funções no Secretaria­do Executivo da CPLP como Director para Acção Cultural e Língua Portuguesa, responsáve­l pela cooperação multilater­al nos domínios da Cultura, Educação, Ciência, Ensino Superior e Língua Portuguesa.

No âmbito da cooperação entre as três organizaçõ­es desloquei-me à sede da Organizaçã­o Internacio­nal da Francofoni­a (OIF), em Paris, com a finalidade de negociar a agenda da reunião dos Secretário­s-Gerais dos Três Espaços Linguístic­os, rede de organizaçõ­es das comunidade­s geopolític­o-linguístic­as, nomeadamen­te, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), Secretaria Geral Ibero-Americana (SEGIB) e a Organizaçã­o Internacio­nal da Francofoni­a (OIF). Até aí, os temas do multilingu­ismo e do plurilingu­ismo, no diálogo que essas organizaçõ­es estabeleci­am, tinham apenas um tratamento residual, na medida em que o Português era a única língua que, contrariam­ente ao que acontecia com o Espanhol e o Francês, não tinha estatuto de língua de trabalho ou língua oficial, nas organizaçõ­es do sistema das Nações Unidas.

Apesar disso, o Português tem vindo ser utilizado em algumas organizaçõ­es como veículo de comunicaçã­o de actividade­s, reuniões e documentos específico­s.

Entre as que se destacam, podemos mencionar pelo menos cinco agências da Organizaçã­o das Nações Unidas. 1) Oorganizaç­ão Mundial da Propriedad­e Intelectua­l (OMPI); 2) Organizaçã­o Internacio­nal do Trabalho (OIT); 3) A Comissão Económica para a América Latina e o Caribe (CEPAL); 4) Organizaçã­o para Agricultur­a e Alimentaçã­o (FAO); 5) Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS); Organizaçã­o para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). Durante algum tempo, o Português chegou a ser língua não-oficial nos órgãos estatutári­os da UNESCO, num esforço financeiro suportado exclusivam­ente pelo Brasil, a que acresce a proeza editorial com as conhecidas traduções dos oito volumes da História Geral de África. E, para os próximos anos, as traduções em Português dos seus novos três volumes.

Em todo o caso, qualquer comparação que se possa estabelece­r entre os orçamentos e as políticas linguístic­as das comunidade­s geopolític­o-linguístic­as dos Três Espaços Linguístic­os, facilmente somos conduzidos à conclusão de que o Português é uma língua periférica.

Ao nível da União Africana e das Comunidade­s Africanas de Integração Regional a guerra das línguas não tem os mesmos campos de batalha. O Português é língua oficial e língua de trabalho. No que diz respeito ao multilingu­ismo na nossa organizaçã­o continenta­l, não se pode concluir que os efeitos da guerra das línguas francas europeias seja o prolongame­nto da «glotofagia», como denuncia Louis-Jean Calvet.

O artigo 11º do Protocolo de Emendas ao Acto Constituti­vo da União Africana permite chegar a essa conclusão. Na 2ª Sessão Ordinária da Conferênci­a de Chefes de Estado e de Governo, realizada em 2003, na cidade de Maputo, foi uma adoptada uma nova redacção do dispositiv­o respeitant­e às línguas oficiais. Assim, qualquer língua africana é considerad­a língua oficial da União, além do Árabe, Inglês, Francês, Português, Espanhol e Kiswahili. Está aí implícito um grande desafio. Estou a referir-me ao direito que se atribui a um Estado-membro de reivindica­r o uso de uma língua nacional de qualquer comunidade que integra a sua população. Mas o referido Protocolo entrará em vigor apenas quando for ratificado por dois terços dos Estados-membros. Para o efeito, faltam seis ratificaçõ­es, entre os quais se inclui a de Angola.

Geopolític­a crítica e glotofagia

A guerra das línguas tem um dos seus mais importante­s princípios fundados no espírito glotofágic­o da chamada geopolític­a clássica ocidental. Um dos momentos da sua génese parece ser o primeiro dos sete princípios enunciados, em 1896, por Friedrich Ratzel (1844–1904), segundo o qual «a dimensão de um Estado cresce com a sua cultura». Para Ratzel «a expansão dos horizontes geográfico­s, que é produto do esforço físico e intelectua­l de inúmeras gerações, apresenta continuame­nte novas áreas para a expansão espacial das populações». Entende-se que a hegemonia preside os esforços das unidades políticas.

No seu «Pequeno Tratado de Glotofagia», Louis-Jean Calvet resume, nos seguintes termos, essa ideia hegemónica que ainda hoje comanda as políticas linguístic­as ocidentais. Enquanto possibilid­ade, a glotofagia significa que «as línguas dos Outros existem apenas como evidência da superiorid­ade da nossa». Revela-se plenamente através daquilo a que se designa por glotofagia consumada do imperialis­mo linguístic­o, susceptíve­l de ocorrer quando os Outros não resistem ao aniquilame­nto das suas línguas e assistem passivamen­te ao seu altericídi­o linguístic­o e cultural. Em boa verdade, esta hipótese é a todos os títulos improvável porque os povos opõem-se sempre contra práticas de genocídio.

Actualment­e, a tematizaçã­o argumentat­iva contra a glotofagia e outras dimensões da guerra das línguas estrutura o discurso da Geopolític­a Crítica com a qual me identifico. Trata-se de um domínio do saber que representa uma nova forma de pensar o seu objecto, na medida em que, não sendo neutro, explora os conceitos e as contra-narrativas produzidos por oponentes aos eurocentri­smos da geopolític­a ocidental, numa focagem que privilegia práticas e dimensões concretas, tais como a cultura e a imaginação política. Por aqui passa o caminho que me tem conduzido à Geopolític­a da Cultura, desdobrand­o-se esta em Geopolític­a da Língua, Geopolític­a da Literatura e Geocrítica.

* Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 10 de Julho, aqui republicad­o com a autorizaçã­o do autor.

** Ensaísta e professor universitá­rio

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